Até hoje o Etios tem apenas um amortecedor para a tampa do porta-malas e um barbante para o tampão (Quatro Rodas)
Júlia Lewgoy
Publicado em 26 de novembro de 2016 às 15h32.
Reduzir, reutilizar e reciclar. Os três “R” da sustentabilidade preveem uma melhor interação entre o homem e o meio ambiente, mas estas filosofias também ajudam a indústria automotiva a criar carros mais baratos – de se fabricar, não necessariamente de comprar.
O design é importante, mas o grande desafio no desenvolvimento de um carro está em atender a todas as expectativas e demandas da forma mais barata possível. Isso envolve desde um novo componente que necessitará de um grande investimento – seja do fabricante ou de seu fornecedor – para ser desenvolvido até a espessura da manta acústica que será usada sob o capô. “Tudo vale a pena se a escala de produção não é pequena” diria Fernando Pessoa caso fosse engenheiro de produção.
Não necessariamente. Na verdade, não há nada que impeça um carro barato de ser bonito. As linhas de um farol ou de um para-choque não aumentam obrigatoriamente seu custo, mas sim seu tamanho, o número de componentes necessários e a estrutura. De acordo com Luiz Alberto Veiga, ex-designer da Volkswagen, são as soluções empregadas no carro que aumentam seu custo de produção.
Um ótimo exemplo está nas portas. Volkswagen Gol, Fiat Palio e o próprio Etios possuem vidros com uma curva no canto superior mais próximo da coluna B. Isso indica que suas portas são compostas por uma chapa externa e outra interna, permitindo o uso de uma guarnição de borracha extrudada.
O segundo tipo, mais caro, é de portas compostas pelas chapas interna e externa e por um frame soldado que resulta em um canto vivo na mesma região: é mais caro de ser produzido e as borrachas utilizadas na vedação precisarão ser injetadas, que também são mais caras. É o que se encontra em Hyundai HB20 e Ford Fiesta, por exemplo.
Também é possível reduzir o número de componentes. Usar apenas um limpador de para-brisa (como no Etios e no Renault Kwid, que será lançado em 2017) não elimina apenas o custo de um braço e um limpador, mas também diminui o mecanismo do motor, elimina um furo na carroceria a ser vedado e diminui o tempo de produção em alguns segundos.
Ter apenas um amortecedor no porta-malas e um único barbante para sustentar o tampão vai no mesmo sentido. Curioso é ver a tampa de vidro do Mobi sustentada por dois amortecedores enquanto o tampão tem apenas um barbante.
A presença de apenas uma luz de ré (algo permitido pela leia) também entra nessa conta, inclusive em carros não necessariamente baratos ou populares, como Chevrolet S10, Fiat Bravo e o Golf da geração 4,5.
Para reduzir gastos, a melhor saída é evitar o custo de desenvolvimento. Um carro tem de 3.000 a 5.000 componentes. Cada um deles precisa passar por inúmeros testes de validação. Se for um componente eletrônico, ainda passará por homologação junto a órgãos fiscalizadores – que podem se repetir em cada mercado onde o carro será vendido. É muito dinheiro e tempo (que também é dinheiro) envolvido.
A tarefa fica bem mais fácil caso haja uma peça com a mesma função em um outro carro que já seja vendido pela empresa, seja naquele mercado ou em qualquer outro lugar do mundo. É por isso que quase todo Fiat tem os mesmos botões para controlar o computador de bordo, ou porque o Uno e o Mobi usam saídas de ar de Doblò. Isso também explica o fato do Peugeot Hoggar usar as mesmas lanternas do 1007, monovolume que só foi vendido na Europa.
O antigo Ford Ka europeu (que usava plataforma do Fiat 500) tinha o mesmo quadro de instrumentos do Palio brasileiro. Mas ninguém supera o primeiro Logan: o mesmo retrovisor poderia ser usado dos dois lados do carro.
Também pode ser que a solução esteja do outro lado do muro da fábrica. A empresa pode encomendar o componente a um fornecedor. Este receberá uma lista de especificações que a nova peça deverá atender e, com sorte, encontrará uma semelhante ou idêntica que já seja fornecida para outro fabricante. Isso explica alguns casos de carros aleatórios que compartilham peças.
O componente em questão pode ser desde uma presilha plástica até uma transmissão completa. Ford e General Motors já dividiram o custo de desenvolvimento de transmissões algumas vezes (Fusion e Captiva já usaram o mesmo câmbio automático de seis marchas). Fiat, Land Rover, Peugeot, Citroën e Mini compram câmbio automático de seis marchas da Aisin (que pertence à Toyota). O C4 Lounge usa o mesmo AWTF-80 SC do BMW i8 e a transmissão automática ZF da Amarok é praticamente a mesma dos Rolls-Royce!
Isso tudo pode ficar ainda mais fácil se você compartilhar uma plataforma, seja ela modular ou não. A economia não estará apenas nos componentes compartilhados, mas também no fato dos carros seguirem um mesmo princípio de montagem, terem planta elétrica semelhante e powertrain compatível. É como um conjunto de peças de Lego: você tem várias peças semelhantes que podem fazer coisas completamente diferentes.
Quando se trata de sistemas de segurança, o fabricante o pode dividir o custo do desenvolvimento com seu fornecedor, que pode ser a TRW ou a Bosch, por exemplo. O contrato envolve um período de exclusividade. É por isso que depois de alguns anos algo que é exclusivo de um fabricante começa a aparecer em outras marcas, em carros dos mais variados segmentos. Alerta de colisão, de mudança de faixa e de pontos cegos são bons exemplos.
As últimas reestilizações do Fiat Doblò e do Chevrolet Classic são bom exemplo de reúso. Quando o Fiat Doblò ganhou uma nova geração na Europa, em 2010, os carros fabricados no Brasil receberam a reestilização que fora estreada na Europa em 2005. O Classic herdou o design do Sail vendido na China desde 2007, e que havia saído de linha em 2010, quando estreou por aqui.
A propósito, a plataforma 4200 do velho Corsa e o Classic foi reutilizada para dar origem ao Agile (que ainda é fabricado na Argentina) e à atual Montana. E quando a antiga Ford Ranger passou por sua última reestilização, em 2010, não mudaram a caçamba da versão cabine simples: reaproveitaram a que era usada desde 1996 com enormes plásticos escondendo um vinco que não casava com a cabine.
O Toyota Etios também tem outro exemplo para dar. O câmbio automático de quatro marchas que estreou este ano – e hoje está em mais da metade dos Etios vendidos – é o mesmo que o Corolla utilizou na geração anterior, que deixou de ser produzida em 2013. Tudo bem: em 2011 o Renault Duster não só ressuscitou o motor 2.0 do Mégane (morto em 2010) como o fez virar flex e ainda reaproveitou seu câmbio de quatro marchas.
Claro que o fabricante de automóveis evita o desperdício de material. Os cortes nas chapas de aço que vão para as prensas são calculados para que haja um mínimo de sobra, e o que sobra volta a ser derretido. Isso também vale para as peças de metal usinadas e para as partes defeituosas. Até o vidro que se quebra ganha uma nova chance.
Plásticos provenientes de reciclagem, fibras e óleos naturais também já são utilizados em peças de acabamento, substituindo materiais sintéticos com produção mais poluente ou cara.
É difícil mensurar o impacto financeiro total de utilizar estes truques, e se o carro que nasce de tudo isso é, realmente, o que queremos pagar. Mas é fato que elas reduzem substancialmente o custo de produção dos carros. E isso vale para qualquer fabricante. Impossível é saber o quanto desta economia é repassada ao preço final de cada carro.