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Os 'anjos' e a cultura da misoginia na Victoria's Secret

Entrevistas recentes mostraram uma cultura de misoginia, bullying e assédio dentro da empresa

Victoria's Secret: novo capítulo na história da companhia (Taylor Hill / Colaborador/Getty Images)

Victoria's Secret: novo capítulo na história da companhia (Taylor Hill / Colaborador/Getty Images)

Guilherme Dearo

Guilherme Dearo

Publicado em 25 de fevereiro de 2020 às 13h04.

A Victoria's Secret definiu a feminilidade para milhões de mulheres. Seu catálogo e seus desfiles de moda eram exemplos populares de excelência. Para as modelos, conseguir um lugar como "anjo" garantia o estrelato internacional.

Mas, dentro da empresa, dois homens poderosos presidiam uma cultura de misoginia, bullying e assédio, de acordo com entrevistas com mais de 30 executivos atuais e ex-executivos, funcionários, contratados e modelos, além de processos judiciais e outros documentos.

Ed Razek, por décadas um dos principais executivos da L Brands, a empresa mãe da Victoria's Secret, foi alvo de repetidas reclamações sobre conduta inadequada. Ele tentava beijar as modelos. Pedia-lhes que se sentassem em seu colo. Apalpou uma delas antes do desfile da Victoria's Secret de 2018.

Executivos disseram ter alertado Leslie Wexner, fundador bilionário e executivo-chefe da L Brands, sobre o padrão de comportamento de seu braço direito. Algumas mulheres que reclamaram enfrentaram retaliação. Uma modelo, Andi Muise, disse que a Victoria's Secret parou de contratá-la para seus desfiles de moda depois que ela rejeitou os avanços de Razek.

Algumas das modelos da marca concordaram em posar nuas, muitas vezes sem serem pagas, por um proeminente fotógrafo da Victoria's Secret que mais tarde usou algumas fotos em um livro caro – um arranjo que deixou os executivos da L Brands desconfortáveis com o fato de as mulheres se sentirem pressionadas a tirar a roupa.

A atmosfera foi definida no topo. Razek, o diretor de marketing, era visto como representante de Wexner, deixando muitos com a impressão de que ele era invencível, de acordo com funcionários atuais e antigos. Em várias ocasiões, o próprio Wexner foi ouvido humilhando mulheres.

"O mais alarmante para mim, como alguém que sempre foi criado como uma mulher independente, era quanto esse comportamento era arraigado. Esse abuso era apenas ridicularizado e aceito como normal. Era quase como uma lavagem cerebral. E qualquer um que tentasse fazer algo a respeito não era apenas ignorado. Era punido", disse Casey Crowe Taylor, ex-funcionária de relações públicas da Victoria's Secret, que disse ter testemunhado a conduta de Razek.

As entrevistas com modelos e funcionários se somam à imagem da Victoria's Secret como uma organização problemática, uma imagem que já aparecia no ano passado, quando os laços de Wexner com o criminoso sexual Jeffrey Epstein se tornaram públicos. Epstein, que gerenciava a fortuna multibilionária de Wexner, atraiu algumas jovens ao posar como recrutador de modelos da Victoria's Secret.

A L Brands, empresa de capital aberto que também é dona da Bath & Body Works, está à beira de uma grande transição. O desfile anual da Victoria's Secret foi cancelado após quase duas décadas na TV. Razek, de 71 anos, deixou a L Brands em agosto. E Wexner, de 82, aventa planos de se aposentar e vender a empresa de lingerie, disseram pessoas familiarizadas com o assunto.

À medida que esses planos avançam, o tratamento das mulheres pela L Brands provavelmente passará por um escrutínio ainda mais aprofundado.

Em resposta a perguntas detalhadas do "The New York Times", Tammy Roberts Myers, porta-voz da L Brands, forneceu uma declaração em nome dos diretores independentes do conselho. Ela disse que a empresa "está intensamente focada" nas práticas de governança corporativa, local de trabalho e adaptabilidade e que "avançou significativamente".

"Lamentamos qualquer ocorrência em que não tenhamos alcançado esse objetivo e estamos plenamente comprometidos com a melhoria contínua e a responsabilização completa", disse ela. A declaração não contestou nenhuma das reportagens do jornal.

Razek disse em um e-mail: "As acusações nessa reportagem são categoricamente falsas, mal interpretadas ou retiradas do contexto. Tive a sorte de trabalhar com inúmeras modelos de classe mundial e profissionais talentosas e me orgulhar muito do respeito mútuo que temos." Ele se recusou a comentar uma lista detalhada de alegações.

Thomas Davies, porta-voz de Wexner, também não quis comentar.

Explosões de fogo

A Victoria's Secret, que Wexner comprou por US$ 1 milhão em 1982 e que se transformou em uma potência do mercado de lingerie, está em dificuldades.

As normas sociais que definem beleza e sensualidade vêm mudando há anos, com maior valor em uma ampla gama de tipos corporais, cores de pele e identidades de gênero. A Victoria's Secret não manteve o ritmo. Algumas de suas campanhas publicitárias, por exemplo, parecem mais uma fantasia masculina estereotipada – o diretor Michael Bay filmou um anúncio para a TV no qual modelos pouco vestidas se exibiam em frente a helicópteros, motocicletas e explosões – do que um encapsulamento realista do que as mulheres querem.

Com suas vendas em declínio, a Victoria's Secret vem fechando lojas. As ações da L Brands caíram mais de 75 por cento em relação ao pico de 2015.

Razek era fundamental na seleção das supermodelos da marca – conhecidas como "anjos", pois desfilavam com asas enormes com plumas – e na criação dos anúncios de TV machistas da empresa.

Mas seu maior legado era o desfile anual de moda, que se tornou um fenômeno cultural global. "Esse foi realmente seu maior envolvimento no negócio", disse Cynthia Fedus-Fields, ex-executiva-chefe da divisão de catálogo da Victoria's Secret. Em 2000, disse ela, Razek tornou-se tão poderoso que "falava por Les (Wexner)".

Alyssa Miller, que tinha sido modelo ocasional da Victoria's Secret, descreveu Razek como alguém que exalava "masculinidade tóxica". Ela resumiu a atitude dele como: "Tenho o poder. Posso fazê-la ou destruí-la."

Na escolha do elenco, Razek às vezes pedia o número de telefone às modelos de calcinha e sutiã, de acordo com três pessoas que testemunharam seus avanços. Pediu que outras se sentassem em seu colo. Duas disseram que ele pediu que jantassem sozinhas com ele.

Uma delas foi Muise. Em 2007, depois de dois anos usando as cobiçadas asas de anjo no desfile da Victoria's Secret, a jovem de 19 anos foi convidada para jantar com Razek. Ela conta que estava animada em cultivar uma relação profissional.

Razek foi pegá-la em um carro com motorista. No caminho para o restaurante, ele tentou beijá-la, contou ela. Muise o rejeitou; Razek insistiu.

Durante meses, ele lhe enviou e-mails íntimos, lidos pelo "The Times". Em certo momento, sugeriu que fossem juntos para sua casa em Turks e Caicos. Outra vez, pediu que Muise o ajudasse a encontrar uma casa na República Dominicana que pudessem compartilhar. "Preciso de um lugar sexy para te levar!", escreveu ele.

Muise manteve um tom educado em seus e-mails, tentando proteger sua carreira. Quando Razek pediu que ela viesse à sua casa em Nova York para jantar, Muise disse que a perspectiva de jantar sozinha com Razek a deixou desconfortável; ela não compareceu.

Então, descobriu que, pela primeira vez em quatro anos, a Victoria's Secret não a havia escalado para seu desfile de 2008.

'Uma jornada voyeurística'

Russell James era um dos fotógrafos da Victoria's Secret. A empresa às vezes lhe pagava dezenas de milhares de dólares por dia, de acordo com os contratos revisados pelo "The Times".

Ao fim das sessões com as modelos, James às vezes perguntava se elas poderiam ser fotografadas nuas, de acordo com modelos e executivos da L Brands. James era popular; ele tinha um dom para fazer as mulheres se sentirem confortáveis. Além disso, tinha uma relação próxima com Razek. Elas muitas vezes consentiam.

As sessões de fotos de nudez não eram cobertas pelos contratos das modelos com a Victoria's Secret, o que significava que não eram pagas pelo trabalho extra.

Em 2014, James publicou um livro, "Angels", que incluía algumas das fotos das modelos nuas. Elas concordaram em ter suas fotos no livro, de acordo com Martin Singer, advogado de James.

Duas versões dos livros atualmente são vendidas no site de James por US$ 1.800 e US$ 3.600. A Victoria's Secret organizou um evento de lançamento para "Angels" durante a Semana de Moda de Nova York em 2014. Entre os participantes estavam supermodelos e a executiva-chefe da empresa na época, Sharen Turney.

"Esse amplo volume oferece uma visão pessoal e sem precedentes das sessões de fotos mais íntimas de James. Os leitores serão levados em uma jornada voyeurística a um mundo de provocação sutil", diz a orelha do livro, observando que James conheceu muitas das mulheres durante seus 15 anos trabalhando para a Victoria's Secret.

Em certo momento, uma versão em tamanho de pôster de uma das fotos do livro foi exibida em uma loja da Victoria's Secret em Las Vegas. O agente da modelo reclamou com a empresa, dizendo que a foto de sua cliente estava sendo usada na loja sem o consentimento dela. James também reclamou disso e pediu que a foto fosse removida, de acordo com Singer. A empresa assim o fez.

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