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Os 15 anos de vaivém entre Cade, Garoto e Nestlé

Quando a Nestlé comprou a Garoto, FHC ainda era presidente. O imbróglio entre as duas empresas e o Cade tornou-se um exemplo para a mudança na legislação

CHocolate: a Nestlé tem até outubro deste ano para se desfazer de uma série de marcas (Istock/Getty Images)

CHocolate: a Nestlé tem até outubro deste ano para se desfazer de uma série de marcas (Istock/Getty Images)

GK

Gian Kojikovski

Publicado em 20 de setembro de 2017 às 18h49.

Última atualização em 20 de setembro de 2017 às 19h12.

Quando o grupo suíço Nestlé anunciou a compra da fabricante brasileira de chocolates Garoto, em fevereiro de 2002, Fernando Henrique Cardoso era presidente, a seleção brasileira ainda era só tetracampeã do mundo, e Jorge Vercilo estava entre os artistas mais tocados do país. Foi no dia 28 daquele mês que o grupo suíço pagou 250 milhões de dólares para levar a combalida companhia com sede em Vila Velha, no Espírito Santo.

Na época, a Garoto era dona de 24% do mercado brasileiro de chocolates, e a Nestlé, era líder com 31%. Analistas já previam dificuldades de aprovação no Cade, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Mas nem os mais pessimistas imaginavam o que estava por vir. Nesta quarta-feira 20 de setembro de 2017, o negócio continua nas manchetes dos veículos de negócios.

Segundo foi revelado, as duas companhias fecharam ano passado um acordo para, enfim, sacramentar a união. A Nestlé tem até outubro deste ano para se desfazer de uma série de marcas, como os chocolates Serenata de Amor, Chokito, Lollo e Sensação. O detalhamento de todos os ativos que a empresa terá de vender é mantido sob sigilo.

Mesmo assim, o Cade deve controlar para quem será realizada a venda. De acordo com informações do jornal O Estado de S. Paulo, o acordo entre a Nestlé e o Cade, assinado em 2016, veta que as marcas sejam repassadas para outra empresa de grande porte para evitar uma nova concentração no mercado.

“Para efeitos concorrenciais, o mero desinvestimento pode não resolver. É preciso que o comprador use daquele ativo para impor um padrão de competição maior ao mercado”, diz a advogada especialista em direito concorrencial e ex-conselheira do Cade, Ana Frazão. Por isso, a Mondelez (antiga Kraft), dona da marca Lacta, deve ficar de fora da operação. A tendência é que os ativos fiquem com companhias menores, como Arcor e Hershey's.

A complicada história da Garoto/Nestlé

A união das duas companhias começou a se complicar em 2004, quando, em uma decisão inédita, o Cade anulou a compra. Foi a primeira vez que a autarquia reprovou uma operação desde que fora criada, em 1962. E aí a confusão estava formada. A Nestlé já havia investido 250 milhões de dólares na aquisição e começado a organizar a sinergia entre as operações. Poucos anos antes, em 2000, o mesmo conselho havia aprovado a fusão das cervejarias Brahma e Antarctica para criar a Ambev, que nasceu com 70% de um mercado de 12,5 bilhões de reais ao ano , aproximadamente dez vezes maior que o de chocolates.

Após a derrota inesperada, a Nestlé foi para a justiça e o caso se arrastou. A multinacional suíça obteve diversas vitórias pontuais, mas a operação nunca chegou a ser completamente concretizada, e as duas empresas continuaram independentes.

“Aos poucos, o judiciário foi, de certa forma, revertendo vários pontos da decisão do Cade. Eles preocuparam-se mais em manter a gestão separada do que de fato as operações”, diz José Del Chiaro, advogado que defendeu a Kraft, uma parte interessada que trabalhava pela impugnação do negócio durante o processo na autarquia. Assim, Garoto e Nestlé puderam passar a fazer compras em conjunto, bem como a distribuição de alguns produtos.

Mesmo assim, a Nestlé nunca pode unir totalmente as operações, as fábricas e a administração das duas empresas – embora tenha investido e tornado a Garoto, uma empresa familiar envolta em brigas, uma companhia lucrativa.

O processo é tão surreal que foi emblemático para mudanças no próprio Cade. Com a mudança feita em 2011 na lei da concorrência, o Cade passou, a partir de 2012, a analisar o impacto concorrencial de fusões e aquisições antes de elas de fato acontecerem. Isso porque, até então, as empresas podiam informar a autarquia da operação somente depois das operações serem consumadas.

“O Brasil era um dos únicos países que fazia esse tipo de controle a posteriori e a mudança na legislação aconteceu para adequar o país à realidade do Direito internacional. Então, esse caso não foi fundamental para isso, mas é o maior exemplo da dificuldade de desfazer uma operação diante de um ato que já tinha efeitos práticos”, diz Ana Frazão.

Antes da nova lei, para evitar situações como essa, foi criado o Acordo de Preservação de Reversibilidade da Operação, para que os danos de uma reversão fossem mitigados. Na prática, no entanto, isso de fato não ocorria. Desde 2012, o Cade tem prazo máximo de 240 dias para analisar as fusões, prorrogável por mais 90 dias em caso de operações complexas.

A mudança na lei das concorrências foi fundamental para que a autarquia pudesse ter uma postura mais dura em relação à concentração de mercado, como tem acontecido nos últimos tempos. Recentemente, por exemplo, vetou a compra da universidade Estácio pelo grupo de ensino Kroton e da rede combustíveis Ale pela Ipiranga.

“As operações que foram vetadas recentemente eram realmente complexas e não se encontrou uma solução de desinvestimento adequada. Em partes porque, com o tempo, o mercado vai se tornando gradativamente mais concentrado. Mas, antes da nova lei, sem dúvida era muito mais difícil de se vetar uma operação”, diz Del Chiaro.

Advogados afirmam que a postura mais rígida do Cade nos últimos casos tem levado até mesmo empresas a recuarem de processos de compra de ativos que veem como muito difíceis de serem aprovados pelo órgão. Melhor desembarcar antes, do que esperar por 15 anos.

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