Mercado Livre: serviços de pagamento são a aposta da companhia para crescer nos próximos anos (Mercado Livre/Divulgação)
Carolina Riveira
Publicado em 8 de agosto de 2019 às 06h00.
Última atualização em 8 de agosto de 2019 às 17h25.
Fundado em 1999, o Mercado Livre ficou conhecido por ser um lugar em que se podia não só comprar como vender de tudo na internet. Mas seus dias de foco único no comércio eletrônico ficaram definitivamente para trás.
A empresa anunciou em seus resultados do segundo trimestre, nesta quarta-feira, 7, um número marcante em meio aos esforços para tornar seus serviços de pagamento tão conhecidos quanto seu braço de vendas por marketplace: no mês de junho, pela primeira vez na história, o valor total dos pagamentos transacionados pelas plataformas da empresa foi maior fora do Mercado Livre do que nas compras internas.
Isso significa que mais pessoas estão usando as soluções do Mercado Pago, braço da companhia que oferece opções como carteira digital, QR Code posicionado em estabelecimentos físicos e maquininhas de cartão de crédito para pequenos lojistas.
A área de pagamentos fora do Mercado Livre teve alta de 233% em volume transacionado no trimestre, sendo a maior responsável pelo crescimento de 90% no volume total transacionado no período (em câmbio constante). Uma alta bem maior do que a de vendas brutas no marketplace, que subiram 33% no período.
Assim, dos 6,5 bilhões de dólares transacionados pela empresa argentina no trimestre, 3,1 bilhões foram em compras no marketplace do Mercado Livre (48%) e 3,4 bilhões de dólares foram realizados em outros lugares (52% do total).
O diretor financeiro do Mercado Livre, Pedro Arnt, disse em conferência com analistas nesta quarta-feira que os pagamentos devem “trazer muito mais aquisição de usuários nos próximos anos”. “Mas não significa que não há espaço para atrair usuários do marketplace também”, disse o executivo. “Ter esses dois negócios juntos [fintech e marketplace] é uma das maiores vantagens competitivas que temos.”
Em sua transição para fintech, a empresa argentina passou a oferecer um aparato de possibilidades a seus mais de 290 milhões de usuários cadastrados, como usar a carteira digital do Mercado Pago para pagar boletos, recarregar o celular ou fazer compras na rua pagando com QR Code em vez de cartão.
Mas uma mostra da verdadeira realidade da América Latina é que, de todas essas inovações financeiras, o melhor negócio até agora vem sendo as boas e velhas maquininhas de cartão.
De todas as tão celebradas compras fora do Mercado Livre, a Point, maquininha da empresa, respondeu por 42% das transações. O produto existe desde 2015 no portfólio, mas ganhou modelos diferentes e investimento nos últimos trimestres, com foco em pequenos lojistas e microempreendedores individuais. Foram quase 3 milhões de maquininhas ativas em junho, o dobro do mesmo período do ano passado.
A carteira digital, embora tenha crescido mais de 400% em volume de transações, está na casa dos 20% do total transacionado fora do marketplace. São 4,5 milhões de clientes ativos, grande parte na Argentina, onde o serviço foi lançado primeiro.
A empresa abriu ainda um braço de empréstimos, o Mercado Crédito, que cresceu 75% em relação ao segundo trimestre do ano passado e, na Argentina, já começou a ser oferecido para transações fora do Mercado Livre. O produto mais recente foi um cartão de crédito em parceria com o Itaú e bandeira Visa, lançado em julho e que será sem anuidade e controlado pelo aplicativo do Mercado Livre.
Ter as maquininhas como principal produto, contudo, faz o Mercado Livre precisar fincar o pé em um mercado que nunca esteve tão disputado. A "guerra das maquininhas" virou também guerra do QR Code e da carteira digital, desencadeada pela entrada de novos concorrentes como PagSeguro e Stone fazendo frente às tradicionais Rede (do Itaú), Cielo (de Banco do Brasil e Bradesco) e GetNet (do Santander).
Ao falar sobre o Brasil em conferência com analistas nesta quarta-feira, Arnt usou a expressão em inglês late for lunch ("atrasado para o almoço"), para dizer que os argentinos, de fato, “chegaram atrasados” na alta das maquininhas e dos pagamentos digitais no Brasil.
O número de transações feitas com cartões cresce na casa dos dois dígitos trimestre após trimestre, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços. Só a procura por maquininhas no Google cresceu 129% nos últimos cinco anos, segundo estudo da Azulis.
Apesar de "atrasado", a empresa argentina tentará usar os 20 anos de marca construída entre seus clientes e o fato de ter no portfólio, só entre usuários ativos, 29 milhões de compradores e 7 milhões de vendedores no primeiro semestre de 2019.
Como toda transação do Mercado Livre precisa ser paga com Mercado Pago, e como o aplicativo do marketplace e da carteira digital é o mesmo, essa base de usuários é vista pelos analistas como uma grande carta na manga. “Vemos o tamanho da base de usuários de cada carteira como a chave do sucesso de longo prazo, porque é uma base de usuários crescente que pode criar um efeito cascata”, escreveram analistas do Bradesco BBI em relatório em junho.
Só no Brasil, que respondeu por 62% do faturamento total da empresa no segundo trimestre (ante 21% da Argentina), o Bradesco estima que estejam cerca de 60% dos usuários ativos do Mercado Livre.
Assim, há mais de 20 milhões de potenciais usuários brasileiros para o Mercado Pago, mais que os 10 milhões de usuários do atual líder do mercado nacional, o PicPay.
Para chegar até eles, o Mercado Livre tem, além de marca consolidada, muito dinheiro para queimar. A empresa levantou neste ano 1,85 bilhão de dólares de recursos em ofertas de capital, para investir, principalmente, em seu marketplace e em sua divisão financeira, Mercado Pago. (Boa parte do dinheiro veio do rival americano PayPal, que quer investir em pagamentos na América Latina.)
Com marketing, tecnologia e descontos para quem usar os pagamentos digitais, os gastos operacionais do Mercado Livre subiram 26% e fecharam o trimestre em 256 bilhões de dólares, com perspectiva de que aumentem ainda mais nos próximos trimestres. O que não é visto como um problema: a empresa afirmou que vai continuar investindo “agressivamente” para conseguir mais usuários, mesmo que “à custa da lucratividade de curto prazo”, segundo Arnt.
Afinal, ainda que o lado fintech continue dominando as conferências do Mercado Livre nos próximos trimestres, fazer a empresa ser vista como uma prestadora de serviços financeiros mais do que é vista como uma plataforma que “vende tudo” ainda vai exigir alguns bilhões de dólares.