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“Hoje, a Ben & Jerry's tem mais capacidade de fazer o bem”, diz fundador

Criada por hippies, a Ben & Jerry’s queria ser diferente, mas foi comprada pela Unilever. O fundador Jeff Furman fala a EXAME sobre as dores do processo

Ben & Jerry's: campanha em favor do ativismo é uma herança dos fundadores hippies (Ben & Jerry’s/Divulgação)

Ben & Jerry's: campanha em favor do ativismo é uma herança dos fundadores hippies (Ben & Jerry’s/Divulgação)

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Rodrigo Caetano

Publicado em 13 de setembro de 2019 às 12h16.

Última atualização em 13 de setembro de 2019 às 15h43.

Mendoza, Argentina – Quem entra na moderna loja da sorveteria Ben & Jerry’s na Oscar Freire, uma das mais luxuosas ruas da capital paulista, não vê indícios de que a marca, hoje pertencente à anglo-holandesa Unilever, já foi o símbolo de uma contracultura corporativa nos Estados Unidos. Criada pelos amigos Ben Cohen e Jerry Greenfield, hippies assumidos, com ajuda de um terceiro hippie, o advogado ativista Jeff Furman, a empresa foi pioneira em estabelecer políticas de responsabilidade socioambiental em sua estratégia, ainda nos anos 80.

Algumas delas são consideradas avançadas até os dias de hoje, como estabelecer um teto de pagamento para os executivos proporcional ao menor salário da companhia. Mas, em 2000, os “hippies de Vermont”, como eles próprios se intitulavam, tiveram de se render à força financeira da multinacional, sob o risco de perderem o controle da empresa, que era de capital aberto, em disputas judiciais com os acionistas.  

A mudança de dono não aconteceu de forma suave. Apesar de os fundadores terem mantido certo controle sobre as estratégias da sorveteria, Furman contou a EXAME que, nos primeiros oito anos, a relação com a multinacional foi conturbada. “Lutamos muito para estabelecer uma convivência pacífica”, afirma.

As disputas envolviam duas visões de gestão distintas, diz ele, uma centrada no retorno ao acionista, a da Unilever, e outra centrada na geração coletiva de valor, a dos fundadores da Ben & Jerry.

No fim, os hippies tiveram de fazer concessões. Furman, por outro lado, está certo de que eles conseguiram transformar a cultura de uma grande organização. “A Unilever mudou e ainda está mudando”, ressalta Furman, que participa de um evento do Sistema B, movimento global que defende a responsabilidade socioambiental nas empresas, realizado em Mendoza, na Argentina.

Para entender o desenrolar dessa história, e como os hippies de Vermont mantiveram algum poder decisório mesmo depois de terem vendido totalmente a empresa, é preciso voltar ao início. Em 1978, recém-formado em direito e administração, Furman dirigia um ônibus escolar e atuava como professor substituto quando conheceu Ben Cohen.

O novo amigo, que ensinava artes e artesanato na mesma escola, pediu que ele preparasse um plano de negócios de uma sorveteria. Apesar de ter estudado o assunto, Furman nunca havia elaborado um desses planos, mas conseguiu com um colega o esquema de uma pizzaria.

Cohen levou o trabalho ao seu amigo de infância Jerry Greenfield e, após dividirem os custos de um curso por correspondência, fundaram uma pequena sorveteria na cidade de Burlingtonno estado de Vermont (EUA). Assim nasceu a Ben & Jerry’s, marca de sorvete famosa por seus sabores inusitados, geralmente cheios de pedaços de chocolate.  

Hippies e engajados em movimentos ativistas (Furman, por exemplo, defendia desertores que se recusaram a lutar na Guerra do Vietnã), os três fizeram da Ben & Jerry’s um experimento de gestão responsável. Desde o início, a empresa buscou quebrar paradigmas do mundo corporativo. Eles estabeleceram regras para os fornecedores de leite, por exemplo, que não podiam usar hormônios (e recebiam um valor a mais por isso).

Também definiram um teto salarial que não poderia ultrapassar o valor de cinco vezes o menor salário da empresa. Em 1981, um ranking da revista Time elegeu o sorvete dos hippies como o melhor dos Estados Unidos. Foi o impulso para que empresa ganhasse força o suficiente para abrir seu capital, três anos depois.  

Inicialmente, a Ben & Jerry’s limitou seu IPO apenas ao Estado de Vermont. Os empresários foram, literalmente, de porta em porta vendendo ações aos próprios clientes, ao valor de cerca de 100 dólares cada. Levantaram 750 mil para construir uma nova fábrica.

No ano seguinte, fizeram uma nova oferta na Nasdaq, arrecadando, dessa vez, mais de 5 milhões de dólares. Com o dinheiro, a empresa expandiu nacionalmente, se tornando uma das marcas mais conhecidas dos EUA. O que Furman, Cohen e Greenfield não esperavam era que, 15 anos depois, eles lutariam contra o próprio mercado ao tentar repelir uma oferta hostil de compra.  

Em 2000, Cohen, que na época ocupava o cargo de CEO, resolveu fechar o capital da empresa, e até chegou a um acordo no conselho. Mas uma oferta mais atrativa feita pela concorrente Dreyer’s, que hoje faz parte da Nestlé, precipitou uma revolta de acionistas, que ameaçava parar nos tribunais.

Para não perder totalmente o controle da empresa, Cohen decidiu se render aos interesses dos investidores: vendeu a empresa para a anglo-holandesa Unilever por 326 milhões de dólares, o que representava um prêmio de 25% sobre o valor dos papeis. Para se curvarem perante a força de uma multinacional, que na época faturava 45 bilhões de dólares, no entanto, os hippies impuseram algumas condições.  

A ideia partiu de Furman. Ele queria garantir que a Unilever respeitasse os princípios e valores da Ben & Jerry’s, em especial o tratamento aos fornecedores e funcionários. A solução foi redigir um contrato que criava um conselho de administração independente, cuja função é zelar pelas políticas socioambientais e pela qualidade dos produtos.

Para dar algum poder de fato ao órgão, ficou estabelecido que o conselho poderia processar a multinacional em caso de descumprimento das diretrizes, sendo que a responsabilidade pelos custos legais caberia integralmente à Unilever. “Surpreendentemente, eles aceitaram”, recorda Furman, que presidiu esse conselho até o ano passado.  

Em parte, o sistema funcionou. A empresa permanece até hoje comprometida com diversas políticas originais. Os fornecedores de laticínios continuam recebendo compensações por não usarem hormônios. A política salarial é de garantir um pagamento digno, cujo piso é equivalente a mais de duas vezes o salário mínimo nos EUA – atualmente em 7,25 dólares por hora.

A Ben & Jerry’s também se engaja em uma série de campanhas sociais. A marca apoia o movimento negro americano Black Lives Matter, defende os direitos dos imigrantes e da comunidade LGBT, em especial dos transgêneros. Na semana passada, a marca lançou um sabor limitado chamado “Justice ReMix’d”, que protesta contra racismo estrutural do sistema de justiça americano. No final do ano passado, a administração Trump foi criticada por meio de outro sabor limitado, “Pecan Resist”, que celebrava os ativistas resistentes à agenda opressora do atual governo.  

Mas a chegada da Unilever também trouxe revesesNo primeiro ano, o teto salarial, que já havia subido para 7 vezes o menor salário, saltou para 17, com a chegada de um novo CEO. Logo depois, a empresa parou de divulgar a compensação dos executivos. Em 2010, a marca teve de retirar a expressão “ingredientes naturais” das embalagens, pois já utilizava alguns elementos artificiais na composição, diferentemente do que acontecia sob a administração dos fundadores 

Ao olhar para o passado, Furman disse a EXAME que, frequentemente, se pergunta o que teria sido melhor: vender ou se manter independente. Ele não tem uma resposta direta a essa pergunta. “Não queríamos vender, definitivamente”, afirmou. Por outro lado, ele reconhece que contar com o poder financeiro de uma multinacional ajudou a difundir a cultura da companhia.

“Hoje, a Ben & Jerry tem mais capacidade de fazer o bem”, afirma. Ele também se diz feliz com a evolução da própria Unilever. Embora ainda considere que há uma jornada pela frente, ele acredita que a multinacional incorporou parte da cultura da pequena sorveteria que, um dia, sonhou em mudar os padrões do capitalismo. O esforço dos hippies de Vermont não foi em vão.   

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