Daniel Helene, coordenador do Vera nos anos finais do Ensino Fundamental (Tiago Queiroz)
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Publicado em 7 de novembro de 2025 às 12h25.
Última atualização em 7 de novembro de 2025 às 13h54.
Antes mesmo de a lei paulista proibir o uso de celulares em sala de aula, a Escola Vera Cruz, em São Paulo, já havia adotado uma medida semelhante.
Em outubro de 2024, a escola decidiu restringir o uso dos aparelhos em todos os espaços, inclusive nos intervalos e na entrada, após um processo de escuta entre famílias, alunos e professores.
“Os próprios estudantes sugeriram experimentar uma semana sem celular”, conta Daniel Helene, coordenador do Ensino Fundamental II. “Eles queriam entender o que mudaria na atenção, no convívio, na rotina.”
A experiência, que começou como um teste, mostrou efeitos discretos, mas concretos. Houve menos distrações, mais interação entre os colegas e uma atmosfera mais silenciosa e colaborativa. A escola, que já proibia o uso de aparelhos dentro das salas, estendeu a regra para toda a rotina escolar.
O movimento do Vera Cruz se antecipou à legislação estadual e ao debate sobre intoxicação eletrônica, conceito usado por especialistas para descrever a sobrecarga cognitiva e emocional provocada pelo excesso de telas.
Pesquisas recentes associam o uso prolongado de dispositivos eletrônicos à queda de desempenho escolar, aumento da ansiedade e dificuldade de concentração entre adolescentes. “As famílias traziam essas preocupações à escola”, lembra Helene. “Decidimos, então, estudar o problema juntos.”
Em 2022, a escola promoveu rodas de conversa com especialistas, gravou os encontros, publicou um e-book com os principais aprendizados e manteve o tema em pauta. Em 2024, restringiram o uso completamente.
Mas a decisão do Vera Cruz não se limitou à proibição. Ela se desdobrou em um projeto pedagógico que integra a tecnologia à formação dos alunos.
“Proibir ou liberar é uma questão menor. Regular é importante, mas é preciso acompanhar o uso que os adolescentes fazem das telas dentro e fora da escola”, diz o coordenador.
A escola passou a tematizar o uso digital nas aulas de orientação educacional, com discussões sobre convivência on-line, cyberbullying, economia da atenção, privacidade e racismo algorítmico. Um grupo de estudantes, chamado Guardião das Diferenças e da Equidade, pesquisa e debate casos de discriminação e agressões em ambientes digitais.
A escola também utiliza celulares institucionais em atividades pedagógicas, como viagens de campo e projetos audiovisuais – aparelhos sem redes sociais, voltados apenas para pesquisa e registro.
O apoio das famílias também é fundamental nesse processo. “Tudo isso só funciona se as famílias estiverem junto com a escola e, na Escola Vera Cruz, a gente pode contar com esse apoio”, explica o coordenador.
Helene conta que a comunidade de pais e responsáveis participaram ativamente do processo de escuta e de adaptação. “A Frente pela Educação Digital da Organização de Famílias da Escola Vera Cruz é coautora de muitas de nossas ações”, revela.
Para os estudantes, a experiência sem celular trouxe novas rotinas e formas de convivência. “Sem o celular, comecei a jogar mais esportes, principalmente basquete com o pessoal da minha sala”, diz Pedro Pascoal, do 9º ano. “Antes, eu usava o celular para jogar e deixava de usar a quadra.”
A colega Beatriz Duque percebeu mudanças no convívio. “Esse tempo longe do celular me permitiu conversar mais com meus amigos no intervalo. Antes, a gente estava junto, mas distante, cada um no seu aparelho.”
Fora da escola, ambos continuam conectados, mas com mais consciência. Pedro reconhece que ainda passa tempo nas redes, “mas tenta equilibrar”, enquanto Beatriz relata que seus pais impõem limites desde cedo – um controle que, segundo ela, agora faz mais sentido.
Helene evita superlativos. “Seria bonito dizer que tudo mudou de uma hora para outra, mas não é assim. Atenção e disciplina continuam sendo desafios da adolescência.”
Ainda assim, ele nota ganhos perceptíveis: menos dispersão nos intervalos e maior envolvimento entre os alunos.
Os números também mudaram. Em 2022, 89% dos estudantes do sexto ano tinham celular próprio. Em 2024, esse índice caiu para cerca de 50%.
“As famílias estão mais dispostas a adiar o primeiro celular dos filhos. Isso é fruto de diálogo, não de imposição”, afirma.
O caso do Vera Cruz reflete um dilema que vai além das escolas: como educar jovens que cresceram em meio a notificações e estímulos constantes. Helene defende que a solução não está em demonizar a tecnologia, mas em ensinar o uso consciente.
“A escola não pode ser o único lugar sem tela, enquanto o quarto de casa é um festival de notificações”, diz. “A gente precisa atravessar a rua com eles, mostrar o caminho até que aprendam a andar sozinhos.”
O impacto mais duradouro da medida, segundo a escola, não foi o fim do celular em si, mas o aprendizado que veio junto: o de formar uma comunidade escolar mais atenta, crítica e colaborativa.
“A gente não quer criar aversão às telas”, resume Helene. “Queremos formar alunos capazes de viver bem com elas, sabendo quando é hora de desligar.”