Eric Ries, autor de "A Startup Enxuta": visão otimista sobre a nova geração de empreendedores, mais focada em visão de longo prazo e na geração de um impacto positivo para o mundo (Bloomberg/Bloomberg)
Editor de Negócios e Carreira
Publicado em 25 de agosto de 2023 às 19h45.
Última atualização em 25 de agosto de 2023 às 20h14.
Os últimos dois anos foram pesados para startups e fundos de venture capital ao redor do mundo. O capital ficou mais caro. As rodadas de investimento minguaram. Muita gente de startup até recentemente queridinha do mercado e da mídia acabou na rua. Neste período, o americano Eric Ries viu o interesse na obra dele florescer. Ries é um dos pioneiros a falar em startup.
O primeiro livro dele, A Startup Enxuta, de 2011, virou obra de cabeceira de muito empreendedor de sucesso ao nomear, pela primeira vez, conceitos importante na expansão de um negócio de tecnologia – o mínimo produto viável, ou MVP na sigla em inglês, foi popularizado por ele e hoje é peça obrigatória de qualquer negócio prestes a ir para a rua. Mais do que isso, A Startup Enxuta é para muita gente de tecnologia um manual de como tomar decisões considerando o maior retorno do dinheiro investido.
A obra virou best-seller em vários países, inclusive no Brasil, inspirou gente que cresceu muito (Uber, Airbnb são alguns dos unicórnios que beberam nesta fonte) e inspirou um movimento global de empreendedores conectados à ideia – e, também, uma consultoria sobre como implantar a metodologia.
Até a pandemia, quando o mundo vivia taxas de juro negativas e o capital fluía livremente para empresas de tecnologia dispostas a tudo para conquistarem clientes (o chamado blitzscaling), a ideia de startup enxuta andava meio fora de moda.
“Na época da bonança, muita gente me falava que não precisava mais ler os meus livros. E que o meu conteúdo estava obsoleto num mundo de dinheiro farto e fácil”, disse Ries em entrevista à EXAME poucas horas antes de fazer a palestra de encerramento do Startup Summit, evento de empreendedorismo que reuniu 10.000 pessoas em Florianópolis nesta semana e donos de 3,5 mil startups de todos os estados brasileiros em competições sobre as ideias mais inovadoras.
O Startup Summit foi o primeiro destino internacional de Ries desde o início da pandemia. De 2021 para cá, diz ele, com o fim do dinheiro fácil para startups, muito empreendedor encrencado em dívidas o procurou. E, desde então, o interesse no tema voltou a florescer. “Uma boa gestão financeira vale tanto para os ciclos de alta como os de baixa do ecossistema de startups”, diz ele.
Ries é otimista com o futuro. Uma nova geração de empreendedores mais focada em gerar um impacto positivo para o mundo está a caminho. Inclusive, em 2020, ele criou a Long Term Stock Exchange (LTSE), uma bolsa de valores que mira os negócios com visão de longo prazo, e conectados a temas como sustentabilidade, e menos nos resultados trimestrais aos investidores.
A inteligência artificial (IA), para ele, vai promover outra revolução no jeito de comandar um negócio. “O desafio dessa nova era da IA é um desafio de gestão”, diz ele. “Como gerir todos esses custos de integração da IA no dia a dia das empresas.” Leia os principais trechos da entrevista a seguir:
Quando vou falar normalmente as pessoas esperam que eu fale sobre startups. Vou, claro, falar da minha experiência pessoal de empreendedorismo, que tem sido bem-sucedida até aqui, mas quero falar também sobre futuro, com tantas novidades rolando, como inteligência artificial, mas também pelas mudanças geracionais.
Há muito jovem empreendedor pensando no propósito dos negócios e em como os negócios podem ser importantes para as pessoas. É uma visão muito otimista do mundo, num momento em que a mídia, pelo menos dos Estados Unidos, é muito pessimista.
Muita gente não se dá conta de que faz parte de um movimento de startup, porque entende que ter uma startup é, de fato, ter um negócio. Mas na verdade é uma ideia verdadeiramente transformadora, a de sociedades que abraçam a inovação e veem ela como uma forma de alavancar a prosperidade do mundo, e não ficam com medo do novo.
Muita coisa. Eu tive um negócio na bolha dos negócios ponto-com, há 20 anos. Naquela época não havia exatamente um conceito de startup. Havia apenas muita gente falando do tema e querendo abrir mais e mais startups. Era uma mania. E naquela época os livros de gestão não tinham uma palavra sobre o tema. Só falavam sobre "firmas". Os exemplos eram antigos. Henry Ford criou uma 'firma' (a montadora Ford, fundada na virada do século 20). E, se alguém falasse que queriam ser novos Henry Fords, outras pessoas olham para ela com uma cara de espanto, achando que a pessoa está louca.
Eu consegui entender isso porque naquela época eu tinha um negócio, falhei na condução dele porque segui as coisas que via na televisão. Então, ao longo dos anos, no caminho para a redação do livro Startup Enxuta eu me dei conta de que havia um novo conjunto de ideias e faltava uma definição do que era startup, como gerir esse tipo de negócio. E como melhorar essa gestão. Não havia nada disso. E por isso esse movimento de Startup Enxuta deu tão certo. Creio que conseguimos isso ao catalogar as práticas da gestão de um startup com um rigor científico.
De lá para cá, creio que ganhamos a batalha de ideias sobre o que é startup. E o outro lado, de quem achava que essa ideia de negócio não daria em nada, colapsou. E eu acho ainda que conseguimos desmistificar a ideia de que um empreendedor de startup tem que nascer sabendo como gerir um negócio.
Essa é uma visão muito fatalista sobre a gestão. Com método, é possível ter sucesso. Entendo que com o livro consegui mudar isso. Pelo menos há alguma metodologia para ter controle sobre o processo de ter um negócio. Milhares de empreendedores ao redor do mundo seguiram esse caminho e tiveram sucesso.
Eu pensei que era óbvio que como movimento a gente estava ajudando empreendedores a criarem empresas de sucesso para mudarem o mundo para melhor. Mas às vezes acho que esquecemos de reforçar o ponto do "para melhor". Temos muitos exemplos de empreendedores que fizeram muito sucesso, ficaram ricos e alguns deles criaram negócios que acabaram fazendo mal ao mundo.
Há gente muito deprimida sobre esse mundo criado por algumas das empresas de tecnologia. Elas deveriam dinamizar a economia, mas, em vez disso, algumas dessas companhias cresceram tanto e ficaram tão burocráticas quanto os gigantes de mercados que elas supostamente iriam 'disruptar'. E algumas são piores do que só lentas: elas se tornaram também empresas do mal.
Não era sobre isso que falávamos no movimento Startup Enxuta. E, olhando agora, vejo uma nova energia ao redor da ideia de que não devemos construir companhias só para ficarmos ricos, mas para promover o desenvolvimento da humanidade como um todo, para ajudar as pessoas e para resolver os problemas do mundo. Há muitos deles: aquecimento global etc. Muitos requerem inovação para serem solucionados.
Ainda não temos as habilidades nem as tecnologias para resolvê-los. Muito disso em razão de que a tecnologia ajudou a criar boa parte desses problemas. Mas não dá para voltar 20 anos e desfazer todo o avanço tecnológico das últimas duas décadas. Então, o que fazer? Não importa de quem é a culpa por tudo isso que estamos vendo no mundo, mesmo que seja a do ecossistema de inovação, é hora de inovar. Mas uma coisa que eu aprendi desde a concepção do livro é de que os valores cívicos não são replicados automaticamente junto com a evolução tecnológica.
Quando Gutenberg criou a rotativa, e a imprensa nasceu, não foi automaticamente que ela passou a ser um pilar relevante da sociedade, mas ela acabou virando ao longo do tempo. Por isso, entendo que há espaço para startups, junto a governos e demais organizações, construírem uma nova relação com o mundo. Algo que seja mais pautado no propósito delas e com valores morais elevados sobre o que é certo e o que é errado de se fazer.
Lá atrás, quando eu escrevi o livro, eu diria que isso tudo não faz sentido. Eu diria que um negócio é apenas um negócio e precisa dar lucro. O que é engraçado é que cada vez mais acho que ter um propósito traz uma vantagem competitiva tremenda para as empresas. Essas companhias ganham mais dinheiro, conquistam mais espaço.
Esses princípios sim são inerentes às companhias interessadas em listar conosco. A LTSE é a primeira bolsa a ser criada nos Estados Unidos desde a criação da Nasdaq [a principal bolsa das empresas de tecnologia do mundo], nos anos 1970. Os Estados Unidos levaram 50 anos para ter uma bolsa. E a gente gosta de reforçar o "longo prazo" que está no nome da companhia para lembrar todo mundo que vai levar algum tempo para a ideia prosperar. Em quase três anos de bolsa em funcionamento, temos apenas duas companhias listadas. Só que muita gente achou que nós nunca teríamos alguma por ali [risos].
Havia também quem duvidasse que nós conseguiríamos a aprovação da autoridade regulatória americana para ter uma bolsa. Depois duvidaram que a gente conseguiria abrir de fato a bolsa. Mas ela está lá, funcionando. Claro, duas empresas só não é o bastante. Queremos ter centenas, milhares. Mas, para mim, mais do que o sucesso comercial, e entendo que teremos sucesso comercial logo, é o fato de bater na tecla de que a mudança é possível.
Muita gente age como se as coisas que estão aí fossem imutáveis porque sempre foram dessa maneira. Mas se perguntarmos para nossos avós o que eles acham disso, eles dirão que estamos loucos. A vida era muito diferente na infância deles. Construímos as coisas e se quisermos vê-las diferente, a gente precisa construir a mudança.
Então, só o fato de a LTSE conseguir incutir na cabeça das pessoas de que é possível mudar e de que é possível colocar no mercado de capitais critérios como sustentabilidade e visão de longo prazo para medir o sucesso de uma empresa, tudo isso já justifica a existência da bolsa. E considero ela um sucesso, independente do que vier daqui para frente.
Sim, faz muito sentido. Estou há muito nesse mercado e já vi muitos ciclos de altos e baixos. Na época da bonança, muita gente me falava que não precisava mais ler os meus livros. E que o meu conteúdo estava obsoleto num mundo de dinheiro farto e fácil. E de que não precisaríamos de visão de longo prazo num mundo em que conquistar o cliente a todo custo [o chamado blitzscaling] era o diferencial. Mas sabemos que os ciclos vão e voltam.
Agora, o conceito de startup enxuta voltou a ser popular. A parte engraçada é que quando a bolha mais recente estava estourando, eu recebia muitas ligações de empreendedores que liam os meus livros porque tinham crescido demais com o dinheiro do venture capital, simplesmente não sabiam cortar custos e estavam sendo pressionados pelos fundos a fazer isso [risos].
Não estamos mais recebendo esse tipo de ligação. Por isso, tenho pra mim que os princípios do livro A Startup Enxuta são importantes para uma empresa tanto nos momentos bons como nos ruins. Quando o momento está bom é sempre importante saber onde gastar o dinheiro de uma maneira racional. E quando o mercado está ruim, esses conhecimentos são ainda mais importantes. Todo o meu livro é sobre desperdício e reconhece que nós humanos somos muito ruins em desenhar sistemas de gestão. Talvez a inteligência artificial seja boa nisso, mas humanos não são.
Precisamos de conhecimento para tomar as melhores decisões de gestão. Em vez disso, a nossa reação natural nesses momentos é manter todo mundo ocupado. Empreendedores são muito bons em manter todo mundo muito ocupado, mas precisamos sempre nos ater ao ponto: estamos avançando em algum ponto?
O ponto principal aqui é: não desperdice o tempo das pessoas, seja rigoroso com relação à execução de seus planos, inclusive financeiramente, e então vá lá e faça. Então, sim, vimos um aumento muito grande no interesse pelos princípios do Startup Enxuta em cada ciclo de baixa, como esse que estamos vendo agora.
A inteligência artificial está conosco há 50 anos. A cada 15 anos tem algum buzz a respeito do tema. E em todos esses buzz alguém diz que há algo diferente em relação ao buzz anterior. Agora eu acho que realmente há muita diferença entre a inteligência artificial que está se discutindo neste momento e a de ciclos anteriores.
Os novos sistemas de IA não seguem as regras dos sistemas antigos de IA. No passado, quem tinha mais dados proprietários dentro dos sistemas tinha os melhores modelos de IA. Agora, os modelos são todos generalistas e pegam dados de todo lugar. Vi experimentos de gente com sistemas sem dado proprietário nenhum e que conseguiu ter um desempenho superior ao de sistemas proprietários, dos antigos.
Os novos sistemas não são caros de serem criados. Eles são caros de serem colocados em prática. O racional dos softwares é de que eles eram muito caros de serem criados e depois baratos de serem implantados nas empresas. Agora, com IA, é o contrário. Isso abre a possibilidade de colocar uma enormidade de gente trabalhando para criar valor para as empresas. E o desafio dessa nova era da IA é um desafio de gestão. Na era da IA, gerir bem um negócio será ainda mais relevante.
Como gerir todos esses custos de integração da IA no dia a dia das empresas. As coisas que as pessoas estão com muito medo da IA, como os cenários apocalípticos que vemos na mídia, tudo isso depende de decisões de pessoas. Por isso o meu foco na importância da gestão das empresas, ajudando a coordenar os interesses de empresas, seus funcionários, clientes e investidores de modo a pegar o melhor da IA, e não os cenários apocalípticos. Dito isso, estou muito otimista com o futuro.
*O jornalista viajou a convite do Startup Summit