Invest

Relevantes, porém frágeis, fintechs confundem reguladores

Num mundo onde a tecnologia é o vencedor e leva tudo, os algoritmos que impulsionam as fintechs, mas tudo isso pode se transformar numa dor de cabeça regulatória

 (SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

(SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de outubro de 2021 às 06h00.

Última atualização em 19 de outubro de 2021 às 10h48.

home-fintech-regulacao

Logotipo da fintech Klarna: setor passou no teste da pandemia e viu disparar suas avaliações de mercado (SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Por Lionel Laurent, da Bloomberg Businessweek

“Há mais coisas entre o céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”, disse Hamlet. O paralelo no mercado de banco móvel de hoje pode ser a mesma citação de um fundador de startups: “Existem mais produtos financeiros para mais consumidores do que jamais se poderia imaginar.”

Procure casas com potencial para venda e a Zillow lhe oferecerá uma hipoteca. Compre um par de tênis online e você verá 16 maneiras de pagar na finalização da compra, de Apple Pay a Klarna. Pesquise uma dica de aplicação em ações no Reddit e, sem comissão, você pode fazer o que quiser com ela no Robinhood. Se quiser depositar seu contracheque diretamente no aplicativo de negociação de criptomoedas Coinbase, é possível (Por favor, não faça isso).

Se você quer ter uma conta bancária simples ou algo assim, várias centenas de instituições estão competindo por sua atenção: o BankMD para médicos, o Cheese para asiático-americanos, o Lili para freelancers. Apólices de seguro, pensões patrocinadas pelo empregador e gerenciamento de portfólio agora são aplicativos. Existem 326 fintechs por aí, de acordo com um banco de dados, de balcão único de atendimento, como PayPal e Revolut até processadores de pagamento pela internet como o americano Stripe e a holandesa Adyen.

Dinheiro e dados caminham em alta velocidade

A impressionante variedade de serviços financeiros disponíveis com um toque na tela é algo muito mais radical do que o slogan da Apple, que já dura uma década, de "há um aplicativo para isso". As novas empresas não são como a fintech de seus pais: nossa vida online pós-pandemia, combinada com o poder do abundante capital de risco de empresas como o Grupo SoftBank estão empurrando as finanças digitais mais profundamente em nossas carteiras do que o estilo Venmo — antigo serviço de compartilhamento de despesas.

O Grupo Zillow está comprando casas. A Square oferece empréstimos comerciais. Compre agora, pague depois, é o que diz a Klarna que está transformando o crédito de caixa em algo sem atrito, sem cartão e potencialmente pouco cuidadoso. As empresas fintech agora originam 38% dos empréstimos pessoais não garantidos dos EUA, em contraste com  5% em 2013. A profusão de financiamentos também permite que atraiam clientes com melhores taxas de poupança do que os bancos.

Dinheiro e dados caminham em alta velocidade, reduzindo espaço e tempo, com menos necessidade de intervenção humana e mais demanda por produtos para gerenciar o fluxo. Para os técnicos, essa é uma revolução na inclusão e democratização daqueles que foram deixados para trás pelos bancos do século 20. Para se fazer justiça: se a melhor tecnologia é como mágica, o sistema bancário deixou de ser mágico há muito tempo. As startups são claramente melhores em estimular a eficiência por meio da inovação.

Mas quando a gratificação instantânea atinge o bolso das pessoas, os riscos começam a surgir. Programas compre agora, pague depois fazem mais pessoas comprarem mais coisas, mas dados na Austrália revelaram que 1 em cada 5 usuários pagam taxas por atraso, após perderem a data dos pagamentos — dificilmente uma vantagem para a igualdade. O Robinhood Markets, facilitador para traders diários alimentados pelo Reddit, foi multado em US$ 70 milhões pela Autoridade Reguladora da Indústria Financeira por informações enganosas e ineficientes controles de negociação. A guerra pelos clientes significa que as empresas de fintech emprestam a pessoas com maior probabilidade de inadimplência, como descobriu um estudo.

O uso de dados e modelos por empresas Fintech também pode ter se beneficiado da falta de uma longa desaceleração econômica. “Os riscos associados aos empréstimos não foram testados”, disse o ex-gerente de hedge funds, Marc Rubinstein. Os dados da FDIC, agência independente do governo federal, mostram que de 2009 a 2014 houve 482 falências de bancos nos Estados Unidos, mas apenas 29 desde 2015. E em um mundo onde a tecnologia é o vencedor e leva tudo, os algoritmos que impulsionam o sucesso das fintechs podem começar a parecer excludentes como os bancos que procuram substituir. Seu poder já está sendo responsabilizado por elevar os preços dos imóveis e discriminar mulheres e minorias.

Isso tudo se transforma em uma dor de cabeça regulatória, pois os governos lutam para segurar as rédeas de um setor que está crescendo rapidamente e oferece muitas recompensas, mas também muitos riscos. A pandemia do Covid-19 coincidiu com fracassos de fintechs que ganharam manchetes — a empresa de pagamentos Wirecard e a empresa financeira de cadeia de suprimentos Greensill Capital — onde os alertas passaram despercebidos.

Potencial disruptivo

A tarefa de reforçar as regras após cada crise não é facilitada pelos políticos que pedem ao setor de tecnologia que continue produzindo unicórnios para aumentar os empregos. “Quando se trata de regulamentação, eu me preocupo”, diz o economista Eswar Prasad, professor da Cornell e autor de “O Futuro do Dinheiro”. Os reguladores “parecem ultrapassados ​​pelos rápidos desenvolvimentos”.

O potencial disruptivo das fintechs foi desencadeado em mercados maduros, como os EUA, apenas recentemente, graças a uma confluência de fatores: baixas taxas de juros, melhor tecnologia, aumento da demanda do consumidor e uma atitude mais permissiva  em relação às finanças não bancárias. Os ganhos de eficiência em software mantiveram a criação de produtos. A marcha implacável do comércio eletrônico aumentou a demanda por novas formas de pagamento. E o capital de risco é o combustível: o financiamento da Global VC em fintechs atingiu um recorde de US$ 52.3 bilhões no primeiro semestre deste ano, de acordo com a KPMG. Desde 2010, as fintechs levantaram US$ 1 trilhão em patrimônio líquido.

Todo esse dinheiro pressiona as startups a continuarem crescendo a uma velocidade vertiginosa — e explica a mudança de produtos de pagamento simples para atividades financeiras mais regulamentadas, de acordo com Victor Basta, diretor executivo do banco de investimento DAI Magister. Contas bancárias normais não preocupam as pessoas, ao contrário das coisas que mantêm os usuários acordados à noite: transações criptográficas, investimentos, compras e empréstimos.

A pandemia foi um momento chave para o setor, à medida que mais pessoas foram forçadas a usar seus smartphones para itens essenciais (benefícios do governo, poupança) e não tão essenciais (como jogos online da GameStop.). As fintechs que passaram no teste viram disparar suas avaliações: Stripe (US$ 95 bilhões), Klarna (US$ 45.6 bilhões), Revolut (US$ 33 ​​bilhões) e Nubank (US$ 30 bilhões) estão entre os 10 unicórnios privados mais valiosos do mundo. No mercado de ações, o PayPal vale US$ 305 bilhões, o Square US$ 108 bilhões e a Adyen € 73 bilhões (US$ 84 bilhões).

Os bancos tradicionais estão jogando na defesa, mas também fazendo negócios. Os bancos são uma das grandes fontes de financiamento das fintechs: o Grupo Goldman Sachs e  o Citigroup participaram em 69 e 51 acordos de fintechs, respectivamente, de 2018 a 2020. Algumas startups optaram por se tornar bancos licenciados, enquanto grandes empresas de tecnologia invadem o território financeiro em outra direção: a Amazon oferece pagamentos, crédito e seguro com empresas parceiras.

E a complexidade da regulamentação financeira abriu portas para startups de tecnologia. Algumas exploraram regras como a Emenda de Durbin, que permite que bancos menores ganhem mais dinheiro com pagamentos feitos com cartão. Outras lucraram com leis destinadas a melhorar a concorrência, como as regras da União Europeia que dão às empresas fintech acesso a dados de contas bancárias.

Colapso Wirecard

O impressionante colapso do Wirecard mostra como pode ser fácil enganar os reguladores. Nessa situação, estava um banco alemão com acesso a depósitos, uma instituição de dinheiro eletrônico regulamentada pelo Reino Unido e uma empresa de pagamentos nas redes da Visa e da Mastercard, mas ninguém tomou providências diante dos sinais de alerta.

A China — que teve uma vantagem inicial sobre os EUA e a Europa em fintechs, graças à anos de cultivo de revolucionárias empresas de plataforma como Alibaba e Tencent — é  provavelmente um país a ser observado. Depois de uma série de escândalos de fintechs em meados da década de 2010, o governo está reprimindo as plataformas por perceber o monopólio de dados confidenciais e dificultar a concorrência leal.

Os governos precisam fazer mais para reduzir os riscos e, ao mesmo tempo, ampliar os benefícios da inovação em fintechs. Uma proteção mais forte para o consumidor e melhorias na educação financeira seriam oportunos. Os reguladores também estão tentando uma abordagem mais ativa em tecnologia, oferecendo ambientes controlados do tipo sandbox, plataforma de testes, onde as empresas de fintech podem experimentar e crescer.

Mas é difícil escapar da sensação de que muitos dos riscos que aparecem no desfecho são imprevisíveis e multifacetados e que os reguladores não vão acompanhar. Com os banqueiros centrais determinados a não serem interrompidos em sua gestão da economia, talvez outra fala de Hamlet se mostre profética: “Nem um tomador de empréstimo nem um credor que seja”.

Assine a EXAME e acesse as notícias mais importante em tempo real.

 

Acompanhe tudo sobre:Capa do DiaEXAME-no-InstagramFintechs

Mais de Invest

Mudança no topo: Bernard Arnault perde R$ 300 bilhões e Elon Musk vira homem mais rico do mundo

Erro que vale ouro: como a 3M transformou o fracasso do Post-it em uma inovação bilionária

Empresa de segurança capta R$ 160 milhões para tornar a vida do assaltante de celular um inferno

Global workers: o perfil dos brasileiros que ganham R$ 25 mil trabalhando para o exterior