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Empresa dos EUA proíbe trabalhadores de sair das fazendas na pandemia

Trabalhadores, normalmente migrantes, passam meses sem interagir com pessoas de fora das fazendas para evitar transmissão do coronavírus

Trabalhador em fazenda de tomate na Virginia, EUA, isolado por conta do coronavírus (Carlos Bernate/The New York Times)

Trabalhador em fazenda de tomate na Virginia, EUA, isolado por conta do coronavírus (Carlos Bernate/The New York Times)

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Da Redação

Publicado em 4 de novembro de 2020 às 09h13.

Cheriton, Virgínia – Todos os anos, mais de mil coletores de tomate mexicanos vão à Costa Leste da Virgínia para trabalhar nos campos da Lipman Family Farms, curvando-se durante longas horas para colher os frutos maduros e, depois, levá-los sobre os ombros até os caminhões que os esperam. Um trabalhador habilidoso enche um cesto com 15 quilos de tomate a cada dois minutos e meio, e recebe US$ 65 centavos por cesto.

A região é considerada a mais difícil do circuito do tomate: chuvas pesadas interrompem a colheita durante vários dias e podem prejudicar a produção, gerando ansiedade nos trabalhadores que desejam ganhar o máximo possível nos EUA. A lama estraga os sapatos e machuca os pés molhados. Este ano, as condições de trabalho estão ainda piores: para impedir que a colheita seja prejudicada pela transmissão do coronavírus, a Lipman colocou os funcionários em confinamento. Com poucas exceções, eles foram orientados a transitar apenas entre o alojamento onde estão hospedados e os campos onde trabalham.

Essas restrições permitiram que a colheita de tomate na Lipman Family Farms fosse efetuada tranquilamente, com um número muito menor de casos do que o registrado por outras fazendas e centros de processamento nos EUA, que tiveram dificuldades para conter os surtos. Mas alguns trabalhadores se queixaram de que o local de trabalho tinha se tornado uma prisão.

Na Virgínia, já não é mais possível ir todas as semanas ao Walmart para estocar provisões; nem à loja de conveniência mexicana El Ranchito, para comer pão doce; ou à lavanderia, para limpar os uniformes sujos de lama. "Temos de aguentar muito desaforo, mas nunca imaginei que perderia minha liberdade", disse Martinez, de 39 anos, que está trabalhando pelo terceiro ano seguido nos campos de tomate da Costa Leste dos EUA. Segundo ele, os trabalhadores passam meses sem interagir com pessoas de fora das fazendas, embora a Lipman tenha cedido e organizado saídas semanais cuidadosamente controladas para fazer compras no mercado.

"Você é praticamente um escravo", afirmou um trabalhador chamado Jesus, que, assim como os outros entrevistados para este artigo, pediu que se usasse apenas seu nome ou seu sobrenome, por medo de perder o emprego e, por consequência, a permissão para trabalhar nos EUA. A batalha da Lipman com os trabalhadores destaca uma das principais dificuldades da pandemia do coronavírus. O confinamento dos funcionários – uma medida drástica que seria intolerável para a maior parte dos trabalhadores norte-americanos – parece ter mantido tanto os funcionários como a comunidade a salvo. Mas a que preço?

A grande empresa do tomate conseguiu impor restrições aos trabalhadores porque eles dependem das empresas para ter direito ao visto, além do alojamento e do salário. Convidados para trabalhar nos EUA pelo último programa de contratação de trabalhadores temporários ainda ativo nos EUA, os funcionários que se negarem a seguir as regras podem ter o contrato cancelado e ser imediatamente expulsos dos EUA.

"Se empresários de qualquer setor dissessem aos funcionários norte-americanos que eles não podem sair do local onde trabalham, seriam execrados pela sociedade. Porém esse nível de controle é considerado aceitável para os trabalhadores rurais", comparou Jason Yarashes, advogado responsável pelo Legal Aid Justice Center, na Virgínia, que está atendendo os trabalhadores afetados.

Quando chegaram à Costa Leste, uma faixa de terra na Península de Delmarva, onde as plantações de tomate se estendem até o horizonte, os trabalhadores já se sentiam desmoralizados por causa das restrições às quais haviam sido submetidos no início da colheita, em fazendas da Lipman na Flórida e na Carolina do Sul. "Nos anos anteriores, quando não estávamos em horário de serviço, tínhamos liberdade para ir à praia ou visitar os amigos. Agora, não podemos ir a lugar nenhum", comentou Oscar, de 36 anos, que trabalha nos EUA para pagar as contas médicas da esposa doente.

Os trabalhadores rurais são especialmente vulneráveis ao contágio. Com frequência, ficam abrigados em trailers ou alojamentos cheios de gente, nos quais compartilham quarto, cozinha e banheiro, e são levados para trabalhar no campo em ônibus com até 40 pessoas. Quando o coronavírus infecta um trabalhador, é quase impossível evitar o contágio da equipe toda. Grandes surtos foram registrados nas fazendas de frutas e legumes na Flórida e na Califórnia, e também nas empresas que embalam carne e vegetais em Washington e na Dakota do Sul.

Pesquisadores da Universidade Purdue estimam que mais de 149.500 trabalhadores rurais tenham contraído a Covid-19 até 16 de outubro deste ano. Jayson Lusk, economista agrícola responsável pelo estudo em colaboração com a Microsoft, estima que cerca de 3.750 trabalhadores rurais tenham morrido no mesmo período.

Muitas operações agrícolas têm sua mão de obra composta majoritariamente por trabalhadores imigrantes sem documentos nos EUA; assim como os cidadãos americanos, eles geralmente passam o ano todo no país e voltam à noite para casa, onde vivem com a família. A Lipman, por outro lado, contratou trabalhadores rurais por meio do programa de vistos agrícolas H-2A, um dos poucos programas de trabalho temporário que continuam ativos depois que o presidente Donald Trump suspendeu os outros este ano, sob o pretexto de proteger os norte-americanos da concorrência no mercado de trabalho.

Segundo o programa, os milhares de trabalhadores que atravessam a fronteira com o México antes da colheita a cada ano são levados para fazer a colheita do morango na Califórnia, da maçã em Washington, do tabaco na Carolina do Norte – e do tomate ao longo de toda a Costa Leste dos EUA.

Kent Shoemaker, executivo-chefe da Lipman, afirmou em meados de outubro que a empresa tem orgulho do histórico de proteção dos funcionários e das comunidades circunvizinhas. "Até o momento, não tivemos nenhum caso confirmado de Covid-19 em nossas fazendas ou nas instalações de embalagem. E, devido às práticas adotadas nos últimos meses, o número de casos positivos entre os trabalhadores rurais permaneceu consideravelmente abaixo do número de casos positivos nas comunidades onde a empresa funciona", disse, referindo-se às medidas de confinamento.

Em entrevistas, cinco trabalhadores da colheita de tomate da Lipman afirmaram se sentir afortunados por terem sido selecionados para o programa H-2A depois de entrevistados no México por funcionários da Lipman. Nos EUA, eles ganham por dia o mesmo que ganhariam em uma semana no México. Além disso, se forem trabalhadores confiáveis e produtivos, serão convidados para retornar todos os anos. "A gente se mata de trabalhar, mas graças a Deus tenho esse emprego", comemorou Oscar, que está fazendo esse serviço pelo quarto ano seguido na empresa.

Os trabalhadores ficam nos EUA por períodos que vão de quatro a dez meses, em média. "Em março, a situação ficou complicada por conta da pandemia. Eles nos disseram que não poderíamos ir a lugar algum. Se nos pegassem saindo do campo, seríamos impedidos de entrar novamente", comentou Martinez, que chegou aos EUA no ano passado.

Os funcionários não podiam mais pegar carona até a praia, nem convencer o "busero", o motorista do ônibus dos trabalhadores, a levá-los para comer pizza. "Todos os seres humanos merecem um pouco de diversão depois de pegar no batente", opinou um funcionário chamado Antonio, em seu primeiro ano no trabalho. Os trabalhadores se queixaram do bloqueio e, a partir de julho, a empresa começou a permitir idas ao supermercado para fazer compras, além de algumas visitas ao Walmart. Eles continuavam proibidos de deixar o campo em outras ocasiões.

Muitos funcionários pediram dispensa antes do fim do contrato, abrindo mão do salário e da passagem de volta para o México paga pelo empregador. Um deles, chamado Manuel, disse que acha improvável que volte a ser chamado no ano que vem. "Nossos direitos estão sendo violados. Eu não aguentava mais aquilo", desabafou.

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