Negócios

Ele fretou um avião para 100 russos contrários à guerra recomeçarem vida e trabalho longe de Putin

A mobilização militar decretada pelo presidente russo Vladimir Putin para reverter as baixas na Ucrânia provocou um êxodo de homens aos países vizinhos — e o fim das passagens aéreas

O empresário russo Ilya Flaks: US$ 100.000 no aluguel de um Airbus A319 para resgatar amigos e conhecidos — boa parte donos de negócios — contrários à mobilização militar de Putin (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

O empresário russo Ilya Flaks: US$ 100.000 no aluguel de um Airbus A319 para resgatar amigos e conhecidos — boa parte donos de negócios — contrários à mobilização militar de Putin (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

LB

Leo Branco

Publicado em 13 de novembro de 2022 às 08h05.

RESUMO:

  • Poucos dias após o discurso do presidente russo Vladimir Putin anunciando a mobilização de 300.000 novos soldados, um êxodo de homens com medo do serviço militar obrigatório fez os preços dos voos para lugares que os russos ainda eram livres para visitar dispararam — para quem conseguisse um assento.
  • Ilya Flaks, russo emigrado desde o início da guerra em Baku, capital do Azerbaijão, alugou um avião para retirar mais de 100 amigos, familiares e conhecidos de várias regiões da Rússia.
  • A população de russos recém-emigrados, boa parte deles profissionais liberais ou empreendedores na área de tecnologia, tem movimentando o ambiente de negócios nas capitais de países vizinhos como Geórgia e Azerbaijão.
  • O departamento de estatísticas nacionais da Geórgia diz que 3,8 mil novas empresas se registraram a cada mês nos dois anos anteriores à invasão russa. Em março o número ultrapassou os 9 mil, e tem registrado uma média de mais de 7 mil por mês desde então.

Por que não inventar uma reunião de negócios?

Quando o presidente Vladimir Putin anunciou a mobilização de cerca de 300 mil novos soldados para sua guerra na Ucrânia, milhares de homens aptos a servir em toda a Rússia foram para as fronteiras, preferindo o exílio ao alistamento para uma guerra na qual eles não acreditavam.

Poucos dias após o discurso de 21 de setembro, os preços dos voos para lugares que os russos ainda eram livres para visitar dispararam — para quem conseguisse um assento.

Ilya Flaks, que havia se mudado para Baku (capital do vizinho Azerbaijão) pouco após o início da guerra no inverno passado, vinha recebendo ligações cada vez mais frenéticas de amigos e conhecidos tentando sair.

Por que não, pensou ele, fretar um avião e inventar uma história de uma reunião de negócios à qual os passageiros diriam que iriam participar?

Naquela sexta-feira, ele ligou para uma empresa de aviação local e recebeu uma oferta de um Airbus A319 que o governo azeri usara no passado, equipado com assentos de classe executiva para 55 passageiros, poltronas de couro cor de creme e mesas de café de mogno polido. Ele logo conseguiu um acordo, só que os proprietários exigiram mais de US$ 100 mil de adiantamento.

Flaks passou o sábado e o domingo juntando o dinheiro: um empréstimo da irmã de seu sócio, um pagamento adiantado de um contato em Baku com oito passageiros em potencial e — principalmente — uma pilha de seu próprio dinheiro obtida com a venda de seu precioso carro esporte Mercedes-AMG pouco antes de sair de Moscou.

A parceira de Flaks estava em choque com o sangramento repentino de um volume tão grande das economias do casal, mas ele não se abalou. “Nós não pensamos no dinheiro em momento algum”, afirma ele. “Queríamos ajudar”.

Em duas ocasiões naquele fim de semana agitado, os donos do jato ficaram com receio, mencionando o prazo curto e a demora no pagamento. Em duas ocasiões, Flaks os convenceu de que tinha o dinheiro necessário.

Por volta de 9 da manhã da segunda-feira, menos de cinco dias após o anúncio de Putin, Flaks despachou um colaborador aos escritórios da empresa próxima ao aeroporto com pilhas de US$ 100 abarrotadas dentro de uma mochila preta.

Enquanto Flaks estava juntando o dinheiro, ele espalhou a notícia no Facebook e no serviço de mensagens Telegram: O voo ia acontecer, e quem quisesse estar nele tinha de agir depressa. “Dólar é melhor, rublo também pode ser... pagamento na chegada não será aceito”.

Sem dúvida, US$ 2,5 mil por assento não era barato; porém, nos dias após o discurso de Putin, os bilhetes para Montenegro e Turquia tinham dado um salto de dez vezes o preço original, para US$ 5 mil ou mais.

Ao longo do fim de semana, dúzias de homens apareceram em um café nos subúrbios de Moscou, onde a ex-assistente de Flaks, uma jovem grávida de oito meses, recebeu o dinheiro deles e incluiu seus nomes em uma planilha do Google confirmando um assento no voo.

Para dar a sua carona aérea um ar de autenticidade, Flaks instruiu os passageiros a dizer que estavam participando de uma conferência e que tinham reservado suas passagens semanas antes, mas não havia garantias de que a desculpa se sustentaria a um exame mais sério.

“Eu não tinha tempo de discutir se isso era uma boa ou não, se era um protesto ou não”, diz ele, sobre a missão de resgate. Era simplesmente algo pensado como “um bom negócio para as pessoas, para meus parceiros e amigos”.

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Kate Gersamia, produtora de vinho e proprietária de uma butique de móveis para casa em Tbilisi, na Geórgia: sentimento antirrusso está acalmando porque todos perceberam que podem se beneficiar da imigração russa (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Deixar para trás os “olhos que tudo veem”

Na tarde de segunda-feira, o jato — a que Flaks deu o codinome “Ark” (Arca, em inglês), em referência ao resgate mais conhecido da Bíblia — partiu para o voo de três horas rumo a Moscou. O pouso foi em Vnukovo, um campo de pouso construído por Stálin para o Exército Vermelho com mão de obra dos gulags, mais tarde convertido para uso civil após a Segunda Guerra Mundial.

Enquanto os pilotos esperavam pela aprovação de seu plano de voo, cerca de 50 homens e um punhado de mulheres se dirigiram para o salão de partida, percorrendo o corredor polonês do controle de fronteiras, em que oficiais monitoravam de perto os viajantes, com instruções para evitar que os convocados a se alistar fugissem.

“Estava todo mundo bastante nervoso, pensando em como responder às possíveis perguntas”, diz o passageiro Mikhail Kort, fotógrafo.

Eles esperavam nervosamente à medida que o relógio marcava uma hora depois do horário de saída marcado, silenciosamente se apresentando uns aos outros no terminal antes de embarcar.

À medida que o avião enfim decolava, um homem recitou versos de um poema de Mikhail Lermontov sobre deixar para trás os “olhos que tudo veem” e “ouvidos que tudo escutam” da Rússia.

As comissárias de bordo serviram vinho e pratos de frango e carne, e então, algumas horas depois da meia-noite, à medida que o voo se aproximava de Baku, descendo sobre o escuro Mar Cáspio com a alameda da cidade brilhando de longe, quando a nave tocou o solo, uma pequena rodada de aplausos eclodiu.

Um especialista em cibersegurança sobrecarregado de alívio, empolgação e não pouca tristeza se virou para seu vizinho e disse apenas “é”.

No dia seguinte, Flaks fez tudo de novo.

Ele disse que “exalou plenamente” quando os dois voos pousaram após noites sem dormir e preparativos furiosos. Meses atrás, ele e seu parceiro de negócios azeri-americano, Araz Mamet, tinham lançado um espaço de coworking em Baku, atraídos pelo ambiente de negócios relativamente estável, acesso contínuo a sistemas bancários internacionais e invernos muito mais quentes.

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Quem eram os passageiros do voo de Flaks

A maioria dos passageiros aceitou a oferta dele de um lugar para montar uma mesa no que ele hoje chama de uma “startup de realocação”.

Assim, Flaks e sua equipe passaram seus dias correndo para limpar e mobiliar dúzias de apartamentos vazios antes de zarpar para o aeroporto para encontrar os recém-chegados. Mamet diz que tem mais de 600 perguntas de potenciais imigrantes em um de seus chats do Telegram, mas ele e Flaks dizem que precisam focar sua energia naqueles que já chegaram.

A maioria dos passageiros nos dois voos trabalha com tecnologia da informação, mas a lista também inclui um rabino, uma cantora de ópera, uma atriz de voz, um cinegrafista, um barbeiro e um executivo-chefe no Teatro Mariinsky, de São Petersburgo — onde muitas óperas de Tchaikovsky estrearam no século 19 — que se recusou a assinar uma declaração de apoio a Putin.

O Kremlin não divulgou dados, mas as autoridades no Cazaquistão e na Geórgia dizem que ao menos 300 mil pessoas fugiram do país desde o discurso de mobilização de Putin, juntando-se às dezenas de milhares que saíram nos sete meses anteriores. “A Rússia não perdeu no campo de batalha”, diz Mamet. “Ela perdeu nos aeroportos e fronteiras”.

Essas pessoas normalmente não têm a riqueza e soberba dos oligarcas no topo da cadeia de comando da economia russa, mas a perda delas na certa terá um impacto negativo.

São pessoas que estão entre os jovens profissionais mais ambiciosos e talentosos do país: engenheiros de software, banqueiros, cientistas e designers. Durante a pandemia, muitas delas tinham se acostumado  a trabalhar remotamente, de modo que elas conseguiram simplesmente botar na mala um laptop e suas camisetas e roupas de baixo e continuar suas profissões em outro lugar.

“O efeito das mentes mais brilhantes deixando a Rússia e dedicando seus talentos a outros países”, diz James Nixey, diretor do programa Rússia-Eurásia do think tank de Londres Chatham House, “vai ser horrível para a Rússia no longo prazo”.

Esses empreendedores e empresários médios têm criado polos de negócios povoados por russos no Cáucaso e na Ásia Central — lugares há tanto tempo sob o suseranato de Moscou que na era pós-soviética se tornaram conhecidos como “o exterior próximo”.

Hoje em grande parte livres para buscar seu próprio destino, os países vêm se tornando um porto seguro das ambições imperiais do líder russo do século 21. Em linhas gerais, os russos podem entrar sem vistos ou grandes complicações – uma consideração fundamental, dadas as regras mais apertadas da União Europeia —, e sua língua nativa permanece a ser uma espécie de língua franca.

Os recém-chegados, de modo muito semelhante à onda que escapou do Terror Vermelho bolchevique um século atrás, são ao mesmo tempo um ônus político e um mecanismo econômico em potencial para os novos lares que adotaram. Eles arriscam criar tensões diplomáticas entre seus governos-anfitriões e o Kremlin.

Contudo, eles oferecem acesso a capital fresco, além da experiência e habilidades de seus setores que podem ajudar a focar o crescimento. Além disso, muitos trouxeram suas empresas com eles ou estão criando outras novas; Flaks afirma que dez startups já se estabeleceram em seu espaço de trabalho.

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O cientista da computação russo Vlad Lukoshkin no apartamento que ele divide com três conterrâneos em Tbilisi, na Geórgia: certeza de seguir trabalhando para uma empresa da Rússia, agora à distância (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Como os recém-chegados encaram a vida nova

O Azerbaijão, ao contrário de alguns de seus vizinhos, não está explicitamente incentivando os russos a emigrar, uma postura neutra que poderia facilitar a volta para casa dos empresários russos. Entre aqueles que querem manter essa porta aberta está Artem, gerente de uma grande empresa de tecnologia russa que não quer revelar seu nome completo.

Ele correu de São Petersburgo a Moscou num trem noturno para embarcar no segundo voo de Flaks rumo a Baku, mas não está pronto para cortar laços de verdade com sua terra natal. A família dele continua lá, e ele acaba de concluir uma reforma cara em seu apartamento, que ele está relutante de deixar para trás, de modos que o plano dele é continuar a trabalhar remotamente para seu empregador.

“Eu e meus colegas amamos de verdade nossa empresa”, diz ele enquanto come um hambúrguer em um lugar de brunch no centro de Baku. “Nós amamos o que construímos, e temos esperança de podermos continuar a trabalhar em nossos produtos, e provavelmente um dia nós voltaremos para casa”.

Sentada com Artem no café está Nikita Shembel, engenheiro de software em seus 30 anos e menos entusiasmado com a ideia de voltar à Rússia. Ele tem uma esposa ainda em Moscou, que hoje passa seus dias procurando lugares em que eles possam se estabelecer, além de uma mãe idosa que se recupera de um câncer.

Quando sua mulher o deixou no aeroporto para o primeiro voo de Flaks, Shembel ficou melancólico, e em seguida teve um surto de raiva. “Eu derramei algumas lágrimas, por que pensei ‘mas que p...?’ Tipo, qual o motivo? Por que eu tenho de deixar a cidade em que nasci?”, diz ele. Atualmente, ele ajuda outros emigrantes com vários projetos de TI enquanto reflete sobre suas opções para uma carreira totalmente nova: design de joias, diz ele, ou talvez música.

Flaks chama seu espaço de coworking de Nova Zeon, referência tanto à capital bíblica do rei Davi (Sião) quanto à última cidade humana a sobreviver na franquia de filmes Matrix. O lugar fica num bloco de apartamentos cor de arenito, numa área de Baku chamada Vila dos Atletas.

A construção à beira de uma estrada abrigou milhares de competidores nos Jogos Europeus de 2015 e nos Jogos da Solidariedade Islâmica dois anos depois, mas tinha permanecido em grande parte desocupado desde então.

Acima de um lance de escadas e passando uma série de pôsteres com temas esportivos decorados com várias bandeiras nacionais, algumas dúzias de pessoas sentavam em seus laptops, cabos pendurados, conversas sussurradas, jeans rasgados, camisetas amarrotadas.

Na despensa, máquinas de café, chaleiras, bules e uma garrafa semiacabada de vinho vermelho local. Um homem de tênis, shorts e topete relaxa num pufe vermelho. Um grupo de outros enche um pequeno terraço ao ar livre, puxando profundamente de cigarros de enrolar.

Flaks tem um rosto grosso e barba escura, e está usando uma gola rolê estampada com uma imagem de servidores de computador. Ele diz que começou sua carreira quando era adolescente, programando jogos de computador na região russa do Tataristão.

A relação pessoal dele com o Estado espelha a de muitos empreendedores da idade dele: otimismo inicial seguido de um deslize no ceticismo e desânimo. Ele recebeu financiamento do governo para seus estudos de pós-graduação em uma universidade de economia de elite em Moscou, mas logo começou a se irritar com o controle do Kremlin.

Hoje, ele passa tempo todos os dias tentando convencer seus colegas que ainda estão na Rússia a se juntar ao êxodo. “Todos eles sabem a respeito de Ilya Flaks criando viagens de negócios de Moscou ao Azerbaijão e dizem ‘você faz’ - ele se agarra à palavra em inglês - “mágica””.

Entre seus clientes em Novo Zeon estão Miron Shakira, homem de cabelos prateados com um leve mancar de uma lesão recente jogando futebol e que vive no sétimo andar do prédio. Nascido na região do Donbas, no leste da Ucrânia, ele completou 18 anos no ano em que a União Soviética se dissolveu.

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O empreendedor azeri-americano, Araz Mamet, dono de coworking em Baku: “A Rússia não perdeu no campo de batalha. Ela perdeu nos aeroportos e fronteiras.” (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Ele trabalhou no então-bombando setor imobiliário da Rússia e comprou sua própria cidadania, à qual agora quer renunciar. Como muitos outros, sua família está devastada pela guerra. Sua mulher, Oksana, é russa; seus filhos nasceram na Rússia; ele tem uma irmã que hoje é cidadã russa e apoia a invasão; e os primos de sua parceira foram enviados rapidamente ao front depois de se apresentarem como voluntários no exército de Putin.

Despejando xícaras de chá de ervas e enchendo pratos noturnos de tâmaras e nozes, Oksana diz que concordou de bate-pronto em deixar sua terra natal, mas começa a chorar quando fala de sua avó octogenária.

Shakira diz que as anexações da Crimeia em 2014 o levaram a começar a deslocar seus interesses comerciais para fora da Rússia, de modo a focar em novos projetos no exterior. Depois da invasão de fevereiro, seu primeiro pensamento foi viajar para o Chipre ou outro país-membro da UE, mas eles não estavam abertos para portadores de passaporte russo.

“Esses países, esses países”, diz ele, batendo o dedo na mesa, “fechados, fechados, fechados”. O Azerbaijão não só o acolheu como também estabeleceu uma estrutura de suporte para expatriados, incluindo taxas baixas de impostos para empresas recém-registradas, como é o caso da dele. “O governo de fato tentou ajudar a gente”, diz ele.

Após a invasão, ele passou meses liberando fundos de forma discreta, vendendo imóveis, casas e terra ao redor de Moscou. As décadas que passou em empresas russas deram a ele as habilidades de que precisava para movimentar grandes volumes de dinheiro para o exterior, de forma rápida e silenciosa, e ele tem hoje muitos milhões de dólares parados em contas criptografadas. “Fazer negócios na Rússia o tempo todo requer algo”, diz ele, se inclinando na mesa, “algo...semilegal”.

O que os locais pensam dos russos que estão chegando

Nem todo lugar que tem visto ondas de emigrantes russos é tão acolhedor quanto o Azerbaijão. A uma hora de voo para o oeste, na capital georgiana de Tbilisi, grafite vermelho apela aos russos que vão para outro lugar em termos vulgares — postura compreensível em relação a um povo cujo exército invadiu o país em 2008 e ainda ocupa um quinto de seu território.

Desde a invasão da Ucrânia, motoristas de táxi locais têm recusado dinheiro russo em alguns casos, e alguns restaurantes alertam possíveis clientes que devem concordar que Putin é um criminoso de guerra se quiserem ser atendidos.

No início, o sentimento antirrusso “era muito, muito grande”, diz Kate Gersamia, produtora de vinho e proprietária de uma butique de móveis para casa. “Agora está acalmando, porque, infelizmente, acho que todo mundo vai perceber que pode se beneficiar disso”.

As vendas da loja dela vêm decolando graças aos recém-chegados da Rússia, e o vinho dela tem experimentado uma recepção calorosa em Moscou, à medida que as safras da Itália e da França têm penado mais para chegar. “Isso me deixa desconfortável”, diz ela. “Estou lutando pela minha liberdade, mas também fazendo negócios com eles”.

As avenidas arborizadas de Tbilisi estão repletas de clientes, e do alto de uma gentil colina perto da Praça da Liberdade, uma família de russos — avós, pais e uma filha adolescente, todos com cabelos loiros e rostos pálidos e angulares — leva um morador a comentar: “Pode reparar, a cada dez pessoas que você vê, oito são russas”.

Em uma vizinhança de ruas de paralelepípedos, calçadas em ruínas e casas de tijolo com terraços enfeitados, bandeiras ucranianas decoram várias fachadas, e uma mulher usa uma camiseta preta em que se lê “Apoie seus amigos”. A barista de um pequeno café afirma que o lugar está sempre lotado de russos, e que hoje “há muitos”, diz ela, na maior cara-de-pau, “mas felizmente não todos”.

Anton Sazansky parece indiferente a tais sentimentos, à medida que se assenta numa piscina escaldante em uma das tradicionais casas de banho de Tbilisi. O nativo de 39 anos de São Petersburgo estudou no Reino Unido, trabalhou na Deloitte e KPMG, e por fim conseguiu um emprego na mesa de commodities do banco VTB.

De propriedade majoritária do Estado russo e responsável por cerca de um quinto dos ativos bancários do país, o VTB tomou uma surra de sanções draconianas de Washington após a invasão. “As pessoas começaram a entender que o negócio estava desmoronando”, diz ele, tomando chá de hibisco após sua rotina de ficar no vapor, se esfregar e tomar banho.

Quando executivos seniores alvos de sanções pessoais começaram a fugir em jatos particulares, Sazansky conseguiu ver que era hora de partir. Ele encontrou emprego numa corretora pequena que continuou a negociar com sucesso, mas no verão passado seu pai, que crescera na União Soviética, fez um alerta grave. “A cortina de ferro está descendo”, disse o velho.

“Se você não cair fora dessa p... agora, vai se arrepender pro resto da sua vida”. Sazansky conseguiu a aprovação de seu novo chefe para trabalhar remotamente, e logo após o anúncio de alistamento de Putin, tirou as coisas de seu apartamento de Moscou e partiu. Abrindo mão de seu depósito de US$ 1,5 mil por danos ao imóvel, ele dirigiu centenas de milhares de milhas de volta à vila de sua mãe, e então vendeu seu carro.

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O engenheiro de software russo Nikita Shembel, hoje em busca de uma nova vida como designer de joias em Baku, no Azerbaijão: "Por que eu tenho de deixar a cidade em que nasci?" (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Ele encontrou um bilhete doméstico barato até Sochi, uma cidade que Putin ajudou a pôr no mapa com os Jogos de Inverno de 2014, e depois um voo de US$ 2 mil para a capital armênia, Ierevan. “Eu sabia que podia não voltar mais”, diz Sazansky. “Não vejo como isso vá mudar num futuro próximo”.

Na área de controle de passaportes, ele preferiu uma oficial em vez de um homem —“eu sabia que podia encantar” —, eventualmente abrindo caminho até o portão de embarque, onde dúzias de outros passageiros estavam esperando.

Após três horas de atraso, eles enfim foram autorizados a embarcar, mas logo depois foram mantidos na pista durante mais quatro horas. “O pior e mais caro voo da minha vida”, diz ele. Em Ierevan, os hotéis estavam quase lotados, mas ele conseguiu um quarto para uma noite, e então voou para Tbilisi.

Trocando seu chá pela primeira de várias taças de vinho branco no almoço no terraço de um restaurante próximo, ele admite que não tem um plano claro.

O governo georgiano diz que os chegados da Rússia estão se estabilizando após o influxo que se seguiu ao anúncio de mobilização.

Eka Sepashvili, que ajuda a liderar o comitê de política econômica no Parlamento, diz que o conflito na Ucrânia está forçando a Geórgia a adaptar seus mercados de exportação, mas que o país também tem se beneficiado do uso ampliado de suas estradas para o trânsito.

“O investimento estrangeiro direto vem aumentando drasticamente”, afirma ele. O departamento de estatísticas nacionais da Geórgia diz que 3,8 mil novas empresas se registraram a cada mês nos dois anos anteriores à invasão russa. Em março o número ultrapassou os 9 mil, e tem registrado uma média de mais de 7 mil por mês desde então.

No centro histórico de Tbilisi, quatro cientistas russos recém-chegados estão comemorando um aniversário com pratos salgados da Geórgia, como cordeiro grelhado e um delicado cozido de berinjela chamado ajapsandali.

Eles acabam de assinar um contrato de locação de parte de um apartamento, e embora três continuem com seus empregadores em casa, o quarto, Vladislav Lukoshkin, planeja procurar trabalho em uma empresa local.

“Pode apostar que não vai ser (trabalhando) para uma empresa russa”, afirma ele. Um amigo dele, Vladislav Romanovskii, matemático de 27 anos prestes a completar seu Ph.D na Universidade de São Petersburgo, diz que 90% das pessoas de seu grupo de laboratório já saíram da Rússia, e que a quantidade de russos no metrô torna difícil “dizer se você está aqui ou em Moscou”.

Os dois andaram 32km no escuro para chegar até a Geórgia, passando por vários túneis cobertos pela fumaça de carros no aguardo de cruzar a fronteira. “Uma das piores” caminhadas que já fiz, diz Romanovskii. Qual foi pior que essa? “Uma em que topei com um urso”.

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O empreendedor russo Roman Abdurakhimov no seu novo escritório em Baku: “Todo dia, um monte de gente liga dizendo ‘me dê dinheiro’. Só que eu não tenho. A covid levou todo meu dinheiro e mais um pouco." (Tako Robakidze/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

‘Que m..., de novo?’

De volta a Baku, Roman Abdurakhimov abre e fecha depressa a porta de seu novo escritório apenas alguns dias depois de ter aterrissado na cidade. Vestindo uma polo de padrão azul e branco sob uma ligeira barriga, ele prepara chá, depois se senta, a luz do sol atravessando uma janela atrás dele e o som do trânsito aumentando na rua abaixo.

Ele começa uma diatribe sobre os problemas de seu negócio, uma empresa que aluga material de festa. Ele expandiu seu negócio de Moscou para Sochi e Ecaterimburgo, com a receita passando de US$ 1 milhão em um ano bom, mas ela foi estripada pela covid-19.

As vendas tinham começado a mostrar recuperação, diz ele, quando as reservas voltaram a cair após a invasão da Ucrânia. “Minha reação foi, ‘Que m..., de novo?’”, diz ele, levantando a voz. “Todo dia, um monte de gente liga dizendo ‘me dê dinheiro’. Só que eu não tenho. A covid levou todo meu dinheiro e mais um pouco”.

Para se manter, Abdurakhimov abriu dois estúdios em Moscou para fotografia de comida, gravação de podcasts e vídeos curtos. Mas ele queria uma escotilha de fuga, um lugar que não dependesse dos caprichos da política russa.

Assim, em abril ele enviou um sócio para buscar oportunidades e procurar um lugar em Baku, e em junho ele tinha um escritório acima do shopping center local que ele logo encheu de luzes, câmeras e microfones. Depois do discurso de Putin, ele sabia que tinha de agir.

Em 24 de setembro, ele comprou um bilhete de US$ 1 mil para Baku, e alguns dias depois deu um beijo de despedida em seus filhos e tomou um táxi até o aeroporto. Ele levava o limite permitido de US$ 10 mil em dinheiro, planejando usar serviços de transferência financeira ou criptomoedas para ter acesso a mais fundos depois, quando fosse necessário.

Agora, ele quer vender sua empresa em casa e focar em seu novo empreendimento em Baku. Até aqui, diz ele, os moradores têm mostrado apoio, e estão até mesmo dispostos a ajudar. A resposta padrão, diz ele, é “bem-vindo. Vamos fazer negócio”.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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