Henrique Lemos, fundador do Grupo Rão: “Não quero brigar com o iFood. Só não quero ser escravo dele” (Caio Rebello/Divulgação)
Freelancer na EXAME
Publicado em 21 de outubro de 2025 às 11h04.
Em meio à guerra dos aplicativos de delivery — um mercado dominado por gigantes como iFood e Rappi, e por entrantes com muito dinheiro, como as chinesas Meituan (Keeta) e Didi Chuxing (99Food) —, um grupo carioca decidiu remar contra a maré.
Apostando em tecnologia própria e relacionamento direto com o consumidor, o Grupo Rão, rede que nasceu vendendo sushi, criou o seu próprio aplicativo de delivery, o Mundo Rão.
A estratégia do grupo tem dado resultado. Desde o lançamento, o aplicativo já ultrapassou 800 mil pedidos, reúne 87 mil usuários ativos e hoje responde por 20% de todos os pedidos da marca, com algumas lojas chegando a 40%.
O plano é ousado: atingir 30% até 2026, reduzindo a dependência das plataformas de terceiros.
O movimento acontece em um momento de transformação do setor. O delivery foi o único canal a registrar crescimento no food service em 2025, com alta de 11% em relação a 2024, segundo pesquisa CREST do Instituto Foodservice Brasil (IFB).
No olho desse furacão digital, o Rão — que fatura R$ 220 milhões por ano — decidiu transformar sua operação em uma foodtech, investindo em inteligência artificial, BI e logística própria.“Nossos custos com marketplaces passam de R$ 1 milhão por mês. Com o app, a infraestrutura custa R$ 10 mil. Essa diferença impacta diretamente nossa margem e sustentabilidade”, explica Henrique Lemos, fundador do grupo.
Nascido no Rio de Janeiro, Henrique cresceu com o sonho de ser jogador de futebol. Passou pelas categorias de base do Vasco e do Bangu, e jogou por clubes do interior até o início da vida adulta.
“Cheguei a jogar profissionalmente pelo Atlético Mineiro, mas a realidade do futebol é muito complexa e desisti da carreira como atleta”, lembra.
Voltou para casa e começou a trabalhar na autoescola do pai. Ali aprendeu a lidar com os clientes e como fazer uma empresa girar. Mas o dinheiro que ganhava não era suficiente.
Conversando com um amigo de escola surgiu a ideia de entrar no ramo da gastronomia. Surgiu o convite para ser sócio de um pequeno restaurante de sushi na zona oeste do Rio.
“Eu estava pensando em ser motorista de ônibus, quando veio a proposta não pensei duas vezes, não entendia nada de como administrar um restaurante, muito menos de comida japonesa, mas tinha vontade. Cheguei ali e estava uma bagunça, a caixa registradora era uma caixa de sapatos, fomos organizando, comecei a estudar e aprender todas as etapas do processo.”
Muitas vendas eram realizadas pelo inbox do Facebook. “Tínhamos muitos pedidos e essa proximidade com o consumidor foi um diferencial, mapeava os erros e acertos, ia ajustando a rota”. E a experiência em jogar em um time ajudou a organizar a equipe.
A aposta deu certo. Lemos abriu um restaurante em Botafogo. Rão Sushi logo abriria novas unidades licenciadas e seguindo o modelo de negócio do Habbi’s: produzir tudo em um só lugar, um só restaurante e distribuir para as outras lojas.
Em 2016, já com Guilherme Lemos como CEO, o Rão passou para o modelo de franquia e vieram o Rão Burger, o Rão Pizza, entre outras.
Hoje, o grupo conta com mais de 200 lojas em todo o Brasil. “Neste momento, deixamos as planilhas, controladas quase que manualmente, e investimos em tecnologia para ter um controle melhor das marcas, o que foi fundamental durante a pandemia.”
Muito antes de “dark kitchen” se tornar moda, o Rão já operava sem salão, em cozinhas dedicadas apenas à entrega. “A gente chamava de caverna”, brinca Lemos.
O modelo enxuto, somado ao apelo digital, fez a marca crescer rápido. Mas o relacionamento com os clientes — antes construído em grupos de Facebook — começou a se perder quando o iFood passou a dominar a jornada do consumidor.
Foi nesse momento que entrou Juliana Cicereli, ex-Delivery Direto, especialista em tecnologia para food service. “A gente percebeu que precisava recuperar o vínculo com o cliente. No marketplace, ele é um cliente alugado; no nosso app, ele é um cliente fiel”, diz Juliana, hoje COO do Grupo Rão.
A transformação começou em 2021, quando Lemos conheceu Cesar Pinheiro, que se tornaria o “Bill Gates do Rão”, como o próprio fundador o define.
Coube a Pinheiro a missão de elaborar um aplicativo próprio de entrega. A empresa investiu mais de R$ 1,5 milhão na criação de um time de desenvolvedores próprio e lançou o Família Rão, sistema de PDV interno. Logo depois, veio o Mundo Rão, marketplace de delivery que reúne todas as marcas da rede.“Foi muito duro implantar uma cultura tecnológica em uma empresa analógica. Precisei convencer muita gente de que valia a pena. Hoje, somos uma foodtech estruturada, com BI, inteligência artificial e IA generativa dentro de casa”, afirma Lemos.
Com Juliana na operação, o grupo criou ferramentas próprias de análise de dados, CRM e inteligência preditiva, como o DataRão, que monitora desde o comportamento de compra do cliente até o desempenho de cada franqueado.
“Quando um franqueado discorda, mostramos os dados. Não é mais opinião, é ciência”, diz o fundador.
O futuro: superapp, dados e independência dos grandes marketplaces
O próximo passo é transformar o Mundo Rão em um superapp, que reunirá novos verticais de negócios — food, pet e fitness, com produtos próprios.
“Não quero brigar com o iFood. Só não quero ser escravo dele”, diz Lemos. “Os marketplaces são uma porta de entrada, mas o cliente precisa continuar comigo.”
A empresa aposta na fidelização via benefícios: no app próprio, os preços são até 20% mais baixos do que nos marketplaces, e o ticket médio é 19% maior. “Quando o cliente percebe que paga menos, ele acaba comprando mais”, explica Juliana.
Além de expandir o ecossistema, Lemos quer transformar o superapp em uma vitrine de marcas cariocas. “Quero reunir empresários do Rio, trazer de volta o orgulho de empreender aqui. O Rio precisa de um novo fôlego”, afirma.
O plano inclui uma delegação empresarial à China, onde o CEO está desde setembro negociando parcerias de tecnologia e novos produtos para o ecossistema.
Por trás do cardápio de sushis e hambúrgueres, há uma empresa que hoje domina tecnologia. O BI próprio do grupo atualiza dados a cada 10 minutos, cruzando informações de venda, operação, fidelização e comportamento de consumo.
“Enquanto as franqueadoras tradicionais dependem de terceiros, nós temos os dados nas mãos. Isso nos dá poder para ensinar, ajustar e crescer”, diz Lemos.
De um pequeno restaurante a uma holding de tecnologia avaliada em centenas de milhões de reais, o Grupo Rão mostra que, na guerra dos aplicativos, ainda há espaço para quem entende que dados, relacionamento e propósito valem muito.