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Disney e Netflix duelam, e quem perde é a TV a cabo

O anúncio de que a Disney vai competir com a Netflix embaralha ainda um mercado disputado também por gigantes como Apple e Facebook

Iron Fist: série chegou a responder por 15% de todas as transmissões da Netflix e bateu recordes de fidelidade entre os espectadores (Netflix/Divulgação)

Iron Fist: série chegou a responder por 15% de todas as transmissões da Netflix e bateu recordes de fidelidade entre os espectadores (Netflix/Divulgação)

EH

EXAME Hoje

Publicado em 16 de agosto de 2017 às 19h57.

Última atualização em 16 de agosto de 2017 às 19h59.

Para uma indústria tão forte o vaticínio soa exagerado, mas desde a semana passada ficou claro que a TV a cabo está por um fio. Ou por um cabo de HDMI. Ou por fio nenhum – se a sua conexão com a internet for via satélite.

O episódio que tornou a profecia mais crível foi o anúncio da Disney de que vai lançar dois canais de streaming (a transmissão de conteúdo pela internet, sob demanda) nos Estados Unidos a partir do ano que vem. Um canal será de esportes, o outro de filmes e shows. O movimento representa a adoção, por parte da maior empresa de entretenimento do mundo, do modelo da (cada vez menos) parceira e (cada vez mais) concorrente Netflix.

Tal qual em outros setores afetados por tecnologias novas, como a música e o jornalismo, a TV a cabo vem perdendo assinantes e anunciantes para os serviços digitais. No Brasil, executivos do setor ainda culpam apenas a crise econômica pela perda de 1 milhão de assinantes, 5% dos quase 19,6 milhões que houve em seu auge, em 2014; mas no mesmo período os serviços de streaming só fizeram crescer.

A tendência de pular do barco da TV a cabo está clara. “Já era mais que hora de entrarmos nesse negócio”, disse Robert Iger, o CEO da Disney. “A lucratividade e a capacidade de geração de receitas dessa iniciativa são substancialmente maiores do que as dos modelos de negócios que estão nos servindo no momento.”

Como ficou patente na divulgação de seu relatório trimestral, no mesmo dia em que anunciou a adesão ao streaming, o negócio do cabo da Disney declina. Os custos de transmissão de esportes aumentaram, a receita da publicidade caiu… e isso levou a um lucro 23% menor do que no mesmo período do ano passado na divisão de cabo.

Se (ou quando) a transmissão dos esportes nobres migrar para o streaming, será um senhor baque para as emissoras de TV e para as operadoras de cabo: os eventos esportivos são a principal corrente que ainda prende muitos espectadores ao modelo.

Para a Disney, o movimento era esperado. Ela vem testando as águas do streaming há algum tempo – houve inclusive fortes rumores,no final do ano passado, de que Iger teria feito uma oferta de comprar a Netflix (rejeitada).

Rumo à terra incógnita

Por que a mudança faz tanto sentido? No modelo de negócios em vigor, o conteúdo da Disney (filmes, desenhos, shows, transmissões esportivas) é vendido para as operadoras de cabo, que o empacotam com diversos outros canais em sua oferta ao consumidor. No ano passado, a Disney ampliou esse mesmo modelo para o streaming, num acordo amplo com a Netflix: em troca dos direitos de transmissão de seus programas, recebe a bagatela de 200 milhões de dólares anuais.

Ocorre, porém, que o mundo do streaming ficou de repente muito competitivo, e para se diferenciar (e aumentar a lucratividade) as empresas passaram a… produzir conteúdo. É aí que está o dinheiro grosso.

Na célebre frase de 2013 do chefe de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos, “nós precisamos nos tornar a HBO antes que a HBO se torne uma Netflix”. A profecia está se cumprindo: com 7 bilhões de dólares de gastos previstos para este ano, a Netflix já é uma das maiores produtoras de conteúdo do mundo. E a HBO, que sempre foi uma produtora de conteúdo premium, está investindo no streaming, com o serviço HBO Now.

Segundo muitos analistas, a Disney entra atrasada neste jogo. Mas pelo menos está entrando. E não dá para subestimar o seu poder – desde a força dos heróis da Marvel até a delicadeza dos personagens da Pixar, ela domina incontestavelmente o universo infanto-juvenil.

Embora o movimento da Disney faça todo o sentido, suas ações caíram 4% nos dias seguintes ao anúncio. Boa parte disso é devida à frustração pelos resultados trimestrais apresentados no mesmo dia (no total da empresa, houve 9% de declínio nos lucros).

Mas há também a percepção de que a Disney está entrando numa arena repleta de incertezas. De acordo com o relatório de um analista do banco de investimentos Cowen & Company, a Disney está “agressivamente empurrando o tradicional negócio de conteúdo para uma terra incógnita”.

Essa estratégia já vem sendo tateada há algum tempo. Há um ano, a Disney comprou, por 1 bilhão de dólares, 33% das ações da BamTech, uma empresa de tecnologia que gerencia o streaming de times de beisebol e da HBO, entre outros clientes. Agora Iger anunciou que está exercendo a opção de compra de outros 42% da empresa, por mais 1,58 bilhão de dólares.

Netflix e Disney: dança e luta

Se as ações da Disney caíram, imagine as da Netflix. O impacto para a companhia não é trivial. Basta ver o sucesso este ano da série Iron Fist, um herói da Marvel (propriedade da Disney) que em sua estreia capturou quase 15% de todas as transmissões da Netflix e bateu recordes de fidelidade entre os espectadores – isso apesar de ser considerada deplorável por quase todos os críticos.

Ante o anúncio do futuro fim da parceria, as reações dos investidores foram – pasme – coerentes. Em maio do ano passado, quando a Netflix lembrou a todos que passaria a valer um acordo feito em 2012 que lhe dava os direitos de transmitir todo o catálogo da Disney, suas ações subiram quase 6%. Agora, ante a perspectiva de perder os programas da Disney, as ações da Netflix refluíram quase o mesmo tanto, cerca de 4% (de um valor total maior).

Não chega a ser uma desgraça. Embora a programação infantil seja estratégica, uma vez que metade dos assinantes da Netflix assistem filmes para crianças, dois analistas do banco de investimentos Piper Jaffray afirmam que só um quinto dos clientes gasta mais de 10% do tempo dedicado à Netflix com conteúdo da Disney. Não estariam, portanto, propensos a abandonar sua assinatura.

Mais importante: embora as discussões entre as duas companhias estejam apenas começando, é quase certo que os heróis da Marvel vão continuar dando plantão no QG da Netflix, uma vez que a Netflix é coprodutora de vários programas (incluindo Iron Fist, que já tem segunda temporada anunciada para o ano vem). A Netflix quer garantir também a franquia Star Wars, que pode deixar sua programação a partir de 2019.

Como se vê, a relação entre Disney e Netflix é complicada. Trata-se de um exemplo típico do que se convencionou chamar de frenemy, contração das palavras friend e enemy, amigo e inimigo. Elas são parceiras e rivais ao mesmo tempo. Dançam e brigam, muitas vezes enquanto estão dançando.

Embora a Disney seja muito maior que a Netflix – 157 bilhões de dólares de valor de mercado, mais que o dobro dos 73 bilhões da Netflix – as duas parecem ter passos muito bem concatenados.

Vale para a Disney a mesma frase que Sarandos, o chefe de conteúdo da Netflix, cunhou para a HBO. Ela tem que se transformar em Netflix antes que a Netflix se torne uma Disney.

Parece algo distante demais? Nem tanto. Um dia antes de a Disney puxar o tapete da Netflix, com sua entrada no streaming, foi a Netflix quem invadiu o terreiro da Disney, anunciando a compra da companhia escocesa Millarworld, uma produtora de revistas em quadrinhos de heróis como Kick-Ass e Kingsman. Foi a primeira aquisição nos 20 anos de história da Netflix, e emula a compra da Marvel pela Disney, em 2009.

Poucos dias depois da resposta da Disney, a Netflix deu outro contragolpe. Anunciou na segunda-feira, dia 14, a contratação da produtora Shonda Rhimes, responsável por inúmeros sucessos da rede ABC (propriedade da Disney), como a série Grey’s Anatomy, em sua 14ª temporada.

A Netflix parece atacar em todas as frentes: contratou programas dos comediantes Jerry Seinfeld, Chris Rock e Dave Chappelle; na semana passada, chamou os irmãos Coen para criar uma série e tirou o ex-apresentador David Letterman da aposentadoria para criar um novo show de TV.

Antevendo que o acordo com a Disney não duraria para sempre, a Netflix também tem investido na programação infantil. No ano passado, comprou boa parte das séries da distribuidora PBS, e anunciou que deverá ter 75 programas para crianças originais até o final do ano. Isso tudo sem descuidar da produção de filmes e séries. Os planos são de fazer 50 filmes por ano.

E o público, para onde vai?

A Disney pode ter se movido para um terreno de mais incerteza (e de mais perspectivas), mas o caminho da Netflix também está longe de estar pavimentado.

A receita da empresa cresce assombrosamente, mas sua dívida cresce ainda mais – subiu de 2,9 bilhões de dólares, no final do ano passado, para 3,4 bilhões. Mover-se da “cauda longa” (filmes de catálogo e programas antigos) para o filé mignon (produções premiadas) sai caro.

O maior risco para a Netflix é que seu sucesso está atraindo não só assinantes, mas muitos concorrentes. Na mesma semana em que a Disney anunciou seu investimento em streaming, o Facebook deu sérios passos na mesma direção: expandiu a oferta de vídeos por streaming com programas que incluem a educação de filhos, a observação de animais e a liga feminina de basquete.

O novo produto, chamado Watch, por enquanto está sendo testado com plateias selecionadas em partes dos Estados Unidos. Mas o caminho é claro.

A Apple também está se aventurando nessa seara, começando a produzir shows para distribuir na Apple TV – expandindo o já existente serviço de músicas para outros conteúdos. Nem todas vão se dar bem, é óbvio, mas todas chegaram ao mesmo tempo à conclusão de que, para o sucesso de seu negócio, o conteúdo é rei.

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