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Este jornal de 200 anos sobreviveu reinados, golpes e, agora, algoritmos

O Diário de Pernambuco, do Recife, é o jornal mais antigo em circulação da América Latina e celebra o bicentenário nesta sexta-feira, 17

Pintura do pernambucano J. Borges na redação do Diário de Pernambuco: jornal começou no Brasil Império (Laura Pancini/EXAME)

Pintura do pernambucano J. Borges na redação do Diário de Pernambuco: jornal começou no Brasil Império (Laura Pancini/EXAME)

Laura Pancini
Laura Pancini

Repórter

Publicado em 6 de novembro de 2025 às 03h02.

Última atualização em 6 de novembro de 2025 às 03h11.

Aos duzentos anos, o Diário de Pernambuco tem muita história para compartilhar.

Jornal mais antigo em circulação da América Latina, a publicação comemora os 200 anos nesta sexta-feira, 7, e tenta honrar o passado enquanto encara um futuro dificultado pela ascensão da inteligência artificial generativa.

Hoje no bairro de Santo Amaro, no Recife, o escritório do Diário precisou se realocar depois do período de home office. Acabou no galpão que abrigava a antiga gráfica do jornal: um terreno espaçoso e com mata baixa, diretamente de frente a concorrência. A região de casas humildes e prédios comerciais baixos recebe os veículos de comunicação ativos na capital.

O galpão reformado, que já chegou a abrigar máquinas de impressão de quatro andares, fica totalmente aberto durante o dia, salve o portão da garagem na frente do lote.

Com um pé-direito de 20 metros de altura, não há campainha para tocar ou porta para bater. A porta está rolada para cima, é só entrar.

De longe, é possível ver paredes cinzas-escuro e uma escada metálica ao fundo. Quando se chega de perto, também.

Não tem muito segredo no primeiro andar do Diário — apenas uma prensa antiga, deixada de canto como um museu de uma peça só.

Subindo a escada, uma porta leva a redação. É uma sala espaçosa, tomada pela luz artificial e a cor de areia nas paredes. Levemente descascadas, acompanham uma decoração de fios, canos e algumas folhas do jornal coladas.

O que está em volta pouco importa. Glamour não é do jornalismo, tampouco o que leva a boas histórias.

A beleza do Diário não consegue ser vista no espaço físico, porque acontece fora dela: nas telas de computador; no bloquinho de notas; naquela conversa que parece inocente, mas vira uma baita pauta.


Enquanto os resumos de IA do Google afetam as métricas de audiência de diversos portais de notícia, apostar nas histórias que ninguém conhece tem sido a fórmula de sucesso do Diário no último ano.

Uma das mais emblemáticas envolve cerveja, palafita e o presidente Lula — e aconteceu alguns meses atrás.

A repórter Marília Parente estava em busca de uma notícia para destacar no jornal da manhã seguinte quando, quase que sem querer, acabou com uma das maiores notícias da carreira.

Parente conheceu Tânia Ribeiro, moradora de Brasília Teimosa. Em 2003, o bairro a beira-mar era repleto de palafitas para sustentar as casas sobre a água. Era um símbolo de resistência no Recife, mas também de desigualdade.

“Apostei uma cerveja de que Lula tiraria as palafitas daqui”, disse Ribeiro. Sete anos depois, 599 palafitas desapareceram da orla e a recifense conquistou o tão sonhado engradado.

A aposta tinha sido feita vinte anos antes, e a cerveja fora recebida em 2010. Não era uma pauta quente (“algo factual”, como diz o jargão jornalístico), mas era o exato tipo de pauta que o Diário buscava: a ideia é que, quanto mais único um conteúdo, maior a chance dele se destacar no redemoinho das redes sociais e resumos de inteligência artificial.

No caso da história da palafita, deu certo: horas depois da publicação, o presidente Lula reproduziu a capa no próprio perfil e citou o jornal nominalmente nas redes sociais.

“É uma mistura de trabalho árduo e sorte, mas, sempre digo: sem sorte, o jornalista não chupa nem picolé”, diz Ricardo Novelino, editor-chefe responsável por conduzir o Diário ao bicentenário e manter acesa a chama do “jornalismo raiz”. Com idas e vindas, o recifense está no jornal desde 1993.

Página do Diário de Pernambuco

Página do DP: matéria publicada nas redes sociais de Lula conta a história de Tânia (Redes sociais Lula/X)


Como tudo começou?

A história do Diário de Pernambuco é a história do Brasil: atravessou império, reinado, golpe e o 7 a 1, equilibrando em cima de algo tão frágil quanto uma palafita.

Criado em 1825 por Antonino José de Miranda Falcão, nasceu como uma pequena folha de anúncios — inclusive de venda e fuga de escravos — impressa em uma prensa manual na antiga Rua da Praia, área que mais tarde se tornaria o coração comercial do Recife.

O primeiro número do Diário circulou quando o Brasil tinha apenas três anos de Império, e o Recife começava a se expandir para além dos arrecifes e dos mangues.

Naquele tempo, a cidade ainda era uma vila portuária, formada ao redor do Capibaribe e cercada por engenhos de cana e casas modestas de pescadores.

A fundação do jornal coincidiu com um período de tensão política: Pernambuco ainda sentia os ecos da Confederação do Equador, movimento nortista que tentou implantar o regime republicano no Brasil, desafiando diretamente o poder de Dom Pedro I.

Essa efervescência é sentida até hoje. O jornal acompanhou, e sobreviveu a, quase todos os grandes abalos da história brasileira: enfrentou empastelamentos no início do século XX, foi censurado na Era Vargas e teve sua redação monitorada na ditadura militar.

Durante o AI-5, em 1968, agentes do DOI-CODI chegaram a ocupar uma sala dentro da redação para controlar o conteúdo publicado.

O prédio histórico, na Praça da Independência — apelidada pelos recifenses de Pracinha do Diário — foi, por décadas, um marco simbólico da liberdade de expressão.

Primeira edição do Diário de Pernambuco: edição de estreia tinha anúncios de venda de escravos

Primeira edição do Diário de Pernambuco: edição de estreia tinha anúncios de venda de escravos (Arquivo/DP)

O Diário também sobreviveu a um século de idas e vindas empresariais.

Em 1931, foi comprado por Assis Chateaubriand e incorporado aos Diários Associados, grupo que chegaria a reunir dezenas de jornais, emissoras de rádio e televisão em todo o país.

Sob o império de Chatô, o jornal consolidou-se como referência no Nordeste e manteve essa posição por 84 anos, mesmo enfrentando longos períodos de instabilidade financeira.

A era dos Associados terminou em 2015, quando o grupo vendeu o controle majoritário ao Sistema Opinião de Comunicação, ligado à família Pinheiro, do grupo Hapvida.

A transação, no entanto, durou poucos meses: ainda no mesmo ano, os irmãos Maurício e Alexandre Rands assumiram o controle, iniciando um breve ciclo de reestruturação.

Em 2019, o jornal voltou a mudar de mãos, mas pela última vez. O advogado e empresário Carlos Frederico Vital adquiriu 78% das ações, em uma operação que incluiu também o portal Pernambuco.com e as rádios Clube AM e Clube FM. Os Diários Associados permaneceram como sócios minoritários, sem poder de decisão.


Redação do Diário de Pernambuco

Redação do Diário de Pernambuco: maioria da equipe é jovem (Laura Pancini/EXAME)

Batalha dos algoritmos

Nos anos 1990, quando ainda era estagiário, Ricardo Novelino chegava ao Diário de Pernambuco e via uma redação lotada.

Eram cerca de 140 jornalistas dividindo mesas, fitas de telex e pilhas de laudas. As páginas eram fechadas à mão, com régua e cola quente.

Três décadas depois, o cenário é outro. São pouco mais de 30 profissionais na redação, quase todos com menos de 30 anos.

“Quando comecei, o jornal fechava as páginas de Cidade com 16 laudas. Hoje a gente faz muito com pouco. Mas faz com tesão”, diz Novelino.

O Diário circula diariamente de segunda a sexta-feira e possui uma "super edição" aos sábados que reúne o conteúdo do fim de semana.

A operação sobrevive com parcerias comerciais pontuais e uma equipe reduzida, mas ainda imprime — um feito raro entre jornais regionais. O volume distribuído, porém, não foi revelado.

Novelino costuma repetir aos repórteres que o jornalismo mudou de ritmo, mas não de essência. “Matéria boa é a que você tem e o outro não. O que todo mundo tem, a IA entrega em segundos. O que só você viu, ela nunca vai ter.”

O desafio, agora, é justamente esse: ser visto.

Desde o início de 2024, o site do Diário e outras publicações enfrentam oscilações de audiência provocadas pelas mudanças no algoritmo do Google e pela popularização dos chats de IA generativa.

Uma pesquisa recente do Pew Research Center, que analisou a navegação de 900 adultos americanos em março de 2025, mostra que quando há um resumo de IA nos resultados de busca, apenas 8% dos usuários clicam em algum link — quase metade da taxa observada em buscas sem o recurso.

Na prática, isso significa que o jornalismo digital está sendo lido, mas nem sempre pelos leitores — e sim por robôs.

Por isso, a estratégia tem sido fortalecer o conteúdo local, com histórias do Recife e do interior que não cabem em resumos automatizados.

"Aumentamos nosso time de jornalistas e montamos um núcleo de reportagens especiais. Essa produção alimenta todas as plataformas", diz Diogo Vital, superintendente do Diário.

As redes sociais são o novo trunfo do jornal que, só em setembro, alcançou 317 milhões de visualizações no Instagram.

Em 2024, o site alcançou uma média de 5 milhões de visualizações por mês, um crescimento de 37% em relação ao ano anterior. Já em outubro de 2025, no mês de celebração do bicentenário, o portal contabilizou 8,75 milhões de views.

“O papel é caro, mas é um símbolo. Quero que o jornal continue chegando à mão do leitor”

Seja estagiário ou editor-chefe, impresso ou online, a rotina de Novelino continua intensa — daquele jeito que só o jornalismo consegue fazer.

“De manhã, eu acordo às 4h40, leio todos os Diários Oficiais e despacho pautas por WhatsApp antes de sair de casa. E só saio daqui [da redação] por volta das 20h”, conta.

O esforço do último ano tem rendido boas histórias (e repórteres).

A fotógrafa Marina Torres recebeu um prêmio de fotojornalismo pela cobertura do impacto das fortes chuvas no bairro de Beberibe, na Zona Norte do Recife.

Aos 25 anos, a jovem vai para as ruas tirar fotos e buscar entrevistados; depois, volta para a redação e escreve a matéria.

Outro exemplo é o de Adelmo Lucena, que descobriu um bairro rural a 15 quilômetros do centro do Recife com apenas 89 habitantes.

O jovem é descrito como "uma máquina" pelo editor-chefe, enquanto a jornalista por trás da história de Tânia e as palafitas é elogiada pelas pautas com foco no lado humano.

Uma das matérias dela, por exemplo, é sobre um senhor de 100 anos que escreveu a própria Constituição durante a ditadura.

“Vende uma pauta dessas para mim, pode ter certeza que eu vou mudar o jornal para colocar isso de capa”, brinca o pernambucano.

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