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Crente que está abafando

Jardel Sebba  A história do showbusiness musical brasileiro sempre foi repleta de movimentos inusitados, mas nada havia preparado o grande público para o que aconteceu em junho de 2001. Rodolfo Abrantes, vocalista do Raimundos, uma das bandas mais bem-sucedidas – e hereges – da década anterior, anunciou naquele mês a sua conversão religiosa e a […]

RODOLFO ABRANTES: ele deixou o mercado “secular” por opção de vida, mas a mudança acabou sendo um ótimo negócio também / Luiz Maximiano/VEJA

RODOLFO ABRANTES: ele deixou o mercado “secular” por opção de vida, mas a mudança acabou sendo um ótimo negócio também / Luiz Maximiano/VEJA

DR

Da Redação

Publicado em 20 de agosto de 2016 às 07h55.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h10.

Jardel Sebba 

A história do showbusiness musical brasileiro sempre foi repleta de movimentos inusitados, mas nada havia preparado o grande público para o que aconteceu em junho de 2001. Rodolfo Abrantes, vocalista do Raimundos, uma das bandas mais bem-sucedidas – e hereges – da década anterior, anunciou naquele mês a sua conversão religiosa e a consequente saída da banda. A voz que havia se consagrado em clássicos como O Pão da Minha Prima e Me Lambe passava a estar a serviço de canções como Santidade ao Senhor e Nação Santa. A questão, claro, era íntima, de fé e de opção de vida, mas Abrantes acabou fazendo também um ótimo negócio ao trocar a indústria musical “secular”, como os artistas religiosos gostam de se referir ao mercado, pela indústria da música gospel. Num século de incertezas, pirataria e falências, como este tem sido para o mercado da música gravada, os artistas evangélicos simplesmente ignoram a crise.

Segundo estimativa do professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Andrey Mendonça, o consumo do mercado evangélico e a arrecadação das igrejas somam hoje algo em torno de 50 bilhões de reais. Se os números são imprecisos, os fatos são inequívocos. Nos últimos cinco anos, todas as estatísticas anuais apontaram o gospel como o segundo estilo em venda de cds e dvds no país, atrás apenas do sertanejo. Dos 95 certificados de venda distribuídos pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) ano passado, entre discos de ouro (50.000 cópias), platina (100.000 cópias) e diamante (500.000 cópias), 30 são do universo gospel. Deles, metade são da cantora Cassiane, sendo um disco de platina triplo e cinco de platina duplo. Apenas cinco artistas venderam mais do que ela ano passado, e dois deles também são do meio gospel, Aline Barros e Anderson Freire. Desde que o primeiro artista gospel rompeu a barreira das milhões de cópias em venda em 2012, o grupo Diante do Trono com o álbum ao vivo Preciso de Ti, eles têm presença constante na lista.

Cassiane, Aline e Anderson têm mais uma coisa em comum além dos números celestiais de venda: são artistas da mesma gravadora, a MK Music, a maior entre as mais de 150 que lançam artistas de música gospel. O mercado fonográfico evangélico é um terreno tão atraente que duas das maiores gravadoras do mundo “secular” criaram braços específicos voltados a este universo, a Som Livre e a Sony Music. “Recentemente entraram duas ou três grandes gravadoras que viram no gospel a salvação para sair da crise, mas que não têm compromisso de investimento no setor”, critica Marcelo Rebello, presidente da Associação Brasileira de Empresas e Profissionais Evangélicos (Abrepe). “Elas pegaram artistas que já vendiam e potencializaram as vendas em grandes varejistas e hipermercados, mas não investem efetivamente no empreendedorismo fonográfico cristão”, completa Rebello, que estima que, entre venda de shows, cds e dvds, o mercado musical gospel fature hoje cerca de 2 bilhões de reais.

A riqueza também é de Deus

O crescimento do mercado fonográfico evangélico está diretamente relacionado ao crescimento substancial da religião no país. Nos últimos 60 anos, os evangélicos passaram de 3,4% a 22,2% da população brasileira, o que, segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), significa um coral de mais de 42 milhões de vozes (estimativas atualizadas falam em cerca de 55 milhões). Os 123 milhões de católicos ainda lideram com folga o ranking religioso nacional, mas a julgar pelas estatísticas recentes, previsões apostam em uma maioria evangélica por volta de 2040.

Eles cresceram principalmente em função do neopentecostalismo, vertente religiosa que tem na Igreja Universal do Reino de Deus sua principal representante. A origem do pentecostalismo remonta à vinda de missionários estrangeiros ao Brasil e a fundação da Assembleia de Deus, ambos no começo do século passado. Mas, bem resumidamente, a igreja fundada por Edir Macedo no subúrbio carioca na segunda metade dos anos 1960 criou, moldou e definiu uma nova onda religiosa. No receituário, o combate às religiões africanas (muito enraizadas na região onde a Universal nasceu) e um projeto de expansão rápida baseado no televangelismo (copiado do modelo norte-americano), na propagação de milagres e na flexibilização de alguns conceitos morais do catolicismo.

Além disso, o neopentecostalismo defende a chamada teologia da prosperidade, que, em breves linhas, prega que a riqueza é uma bênção de Deus, fazendo com naturalidade uma ponte entre religião e capitalismo. Ou seja, é uma religião que se adequa com rapidez à necessidade de aumentar a própria arrecadação e promover o capitalismo, enquanto o catolicismo, com o peso de 2.000 anos de história nas costas, é naturalmente mais lento nas transformações. Sexo, por exemplo, é motivo de alegria entre os neopentecostais, enquanto continua sendo oficialmente só destinado à procriação para a Igreja Católica. Não é difícil entender como uma religião cristã cresceu às custas da outra.

Nesta esteira, o mercado fonográfico é apenas um aspecto, pequeno, de um mercado que exibe números impressionantes, ainda que nem todos devidamente auditados. Além de presidente da Abrepe, Marcelo Rebello é sócio da agência MR1, a primeira agência especializada em eventos e ações culturais voltados ao público evangélico. Nascido em uma família religiosa na periferia de São Paulo há 44 anos, Rebello é jornalista, teólogo e publicitário com pós-graduações em Milão, Madri e Barcelona. Milita no meio evangélico desde 1981, quando entrou na igreja por meio justamente da música, e hoje congrega na Igreja Batista.

Entre diversas outras coisas, sua agência organiza o Salão Internacional Gospel, que terá a quinta edição em setembro, no Expo Center Norte, em São Paulo. Lançado em 2011 como uma feira musical, hoje o evento reúne gravadoras, editoras, distribuidoras, empresas de instrumentos musicais, sonorização, iluminação, vídeo, tecnologia, faculdades, e tudo o mais que puder abranger o mercado evangélico. A expectativa dos organizadores é superar os 30.000 visitantes da edição passada. “Um olhar para o céu e outro para as oportunidades”, frase que abre o material de divulgação do evento, é seu melhor resumo.

Só pra não contrariar Jesus

Rodolfo Abrantes não foi o primeiro músico a transitar pelos dois lados da indústria fonográfica. Um ano antes do rompimento do cantor com o Raimundos, em 2000, o cantor e compositor Regis Danese já havia participado de uma dupla sertaneja e emplacado alguns sucessos como compositor na banda de pagode Só Pra Contrariar, quando sua vida mudou. “Depois de quase me separar da minha esposa, me converti ao Evangelho e decidi que não fazia mais sentido falar de qualquer outra coisa que não fosse o amor de Deus”, conta Danese, que emplacou enorme sucesso com seu terceiro álbum religioso, Compromisso.

Lançado em 2008, ele trazia a canção Faz um Milagre em Mim, que, além de colocá-lo no seleto grupo de artistas que venderam mais de um milhão de cópias neste século, o levou a programas da TV “secular” e abriu novas possibilidades aos artistas do seu meio. “Graças a Deus, o meu público é eclético, e eu não prego religião, mas sim Jesus. Estou sempre na mídia e isso facilita levar a palavra aos não-conhecedores”, celebra o artista, que está lançando o dvd 10 Anos de Ministério e garante que seu público fiel continua comprando seus discos, mesmo na era do download.

Entre as explicações para esta fidelidade diante da penúria fonográfica no mundo “secular”, considerar que a pirataria é tida como pecado pelo público religioso parece simplista, mas faz sentido. “A pirataria é um sexto a do mercado fonográfico comum. Os evangélicos em geral têm hábitos que promovem o aumento do potencial de consumo, não gastam, por exemplo, com cigarro, bebidas, prostituição, drogas”, pontua Rebello, concluindo que assim sobra mais dinheiro para investir em produtos relacionados à fé. Este é um dos raros momentos no qual a questão moral se sobressai às questões comerciais.

No fim, apesar de ser simbolicamente muito forte, a música é uma parte bem pequena do mercado evangélico, que, segundo a Abrepe, movimenta ao todo algo em torno de 21,5 bilhões de reais por ano e emprega dois milhões de pessoas. “Hoje a tecnologia, segurança, mobiliário, moda, construção civil, turismo, produção de tv, áudio e vídeo, broadcast e streaming, instrumentos musicais (mais de 50% do share total é gospel), acessórios, eletrodomésticos e alimentação, por exemplo, têm ajudado muito a engordar as estatísticas”, diz Marcelo Rebello, pedindo perdão pelo trocadilho. Ao que tudo indica, estar em sintonia com Deus é um ótimo negócio, em mais de um setor, em mais de um sentido.

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