Negócios

Com a derrocada de Jack Ma, chineses veem um herói em Elon Musk

As atitudes bombásticas e o discurso que defende os princípios do bilionário conquistaram parte da juventude chinesa

Elon Musk: os carros elétricos da Tesla são campeões de vendas e os lançamentos de foguetes da SpaceX são acompanhados por multidões na China (Mojo Wang/The New York Times)

Elon Musk: os carros elétricos da Tesla são campeões de vendas e os lançamentos de foguetes da SpaceX são acompanhados por multidões na China (Mojo Wang/The New York Times)

CI

Carolina Ingizza

Publicado em 31 de março de 2021 às 15h07.

A China está tendo seu momento de techlash, ou animosidade em relação às empresas de tecnologia. Os gigantes da internet do país, outrora celebrados como motores da vitalidade econômica, agora são desprezados por explorar dados de usuários, abusar de trabalhadores e suprimir a inovação. Jack Ma, cofundador do gigante do comércio eletrônico Alibaba, é um ídolo caído, com suas empresas sob escrutínio do governo pela maneira como garantiram seu controle sobre a segunda maior economia do mundo.

Mas há uma figura do mundo tecnológico que conseguiu manter o público chinês cativado, cuja mistura de atitudes bombásticas e bravatas de líder da indústria parece feita sob medida para este momento de sonhos frustrados e desilusão: Elon Musk.

"Ele consegue lutar contra o establishment e se tornar o homem mais rico do mundo, saindo ileso disso tudo. É a esperança de todos", disse Jane Zhang, fundadora e executiva-chefe da ShellPay, empresa de blockchain em Xangai.

Seja por esperança, inveja ou curiosidade mórbida – como os espectadores que querem ver um de seus foguetes cair e explodir –, a China não se cansa de Musk. Os carros elétricos da Tesla são campeões de vendas no país, e as ambições espaciais do governo geraram uma comunidade de fãs que acompanha cada lançamento da SpaceX.

As redes sociais estão repletas de vídeos e artigos que ponderam se o bilionário nascido na África do Sul é um pioneiro ou uma fraude e examinam tudo, desde sua educação até seus restaurantes preferidos em Pequim. Fundadores de startups seguem à risca seu "jeito de pensar nos princípios em primeiro lugar", que busca soluções examinando um problema em seu nível mais fundamental. Uma pilha de livros de autores chineses promete revelar os segredos do "Homem de Ferro do Vale do Silício", que é o apelido que parece ter pegado na China, não "Rei de Marte" ou "Homem Foguete".

 

Em um longo tópico sobre Musk no site de perguntas e respostas Zhihu, um usuário chamado Moonshake escreveu que a maioria das pessoas começa cheia de esperança, mas gradualmente aceita a "mediocridade" de seu destino. "Apenas um super-homem como Musk consegue passar pela mediocridade sem fim rumo ao infinito e ver a magnificência do universo."

Outro usuário da mesma linha contou que deu o nome de Elon ao filho para expressar sua admiração. Ele não respondeu a uma mensagem pedindo mais comentários.

A gigantesca fábrica da Tesla perto de Xangai iniciou a produção em 2019 e ajudou a aumentar a capacidade de fabricação da empresa. Quando o preço das ações da Tesla atingiu uma nova alta recorde em janeiro, tornando Musk o homem mais rico do planeta, os fãs chineses reivindicaram o crédito. (A reação de Musk à notícia – "Bem, de volta ao trabalho... " – foi curtida 22 mil vezes na plataforma social chinesa Weibo.)

Mais tarde naquele mês, quando Musk endossou a corrida pelas ações da GameStop, muitos na China ficaram mesmerizados, atraídos para o drama por conta da mesma desconfiança das grandes instituições financeiras.

"O Occupy Wall Street nunca poderia ser copiado na China", disse Suji Yan, empresário e investidor em Xangai. Para fazer isso, segundo ele, seria preciso ir para as ruas. Comprar ações em protesto é mais seguro.

O desânimo com que muitos trabalhadores tecnológicos chineses veem sua indústria é agravado pelo sentimento de que esta não está mais inventando ou inovando de fato. Enquanto Musk constrói carros futuristas e coloniza o cosmo, eles veem as melhores mentes de sua geração projetando jogos de celular, descobrindo como colocar mais anúncios nas mídias sociais e especulando no setor imobiliário.

"A China não tem mais aquele tipo louco do Vale do Silício", afirmou Yan. Para ele, os líderes de tecnologia se tornaram bonecos de papelão, e os investidores não querem saber de ideias que pareçam remotamente "malucas".

O séquito de Musk é formado por apaixonados de todas as partes. Mas, na China, sua popularidade aumentou graças à receptividade que o governo autoritário garantiu à Tesla – e vice-versa –, num momento em que os Estados Unidos e o país asiático nunca confiaram tão pouco nas empresas de alta tecnologia um do outro.

Musk elogiou a inteligência das autoridades chinesas que conheceu enquanto se preparava para abrir a fábrica de Xangai. A empresa, de modo inédito para uma montadora estrangeira na China, foi autorizada a administrar sua fábrica sem um parceiro local.

Os chineses ficaram maravilhados com a forma como Musk lidou com as autoridades do país, mas são mais críticos em relação à maneira como ele às vezes trata seus trabalhadores. Ele atacou no ano passado as autoridades de saúde da Califórnia que exigiram que uma fábrica de Tesla permanecesse fechada devido ao coronavírus. A empresa também está sob escrutínio por causa de acidentes de trabalho e discriminação racial.

Para Hong Bo, comentarista de tecnologia de longa data na China que escreve sob o pseudônimo Keso, "Musk é um verdadeiro sonhador e criador, mas também um megalomaníaco de sangue-frio e egocêntrico. Admiro sua coragem em romper com convenções ultrapassadas, e ainda assim não gosto nem um pouco de como ele pisa nas camadas inferiores da humanidade".

Musk e a Tesla não responderam aos e-mails solicitando comentários.

A frustração com a Big Tech é parte de um mal-estar maior na China. Para muitos jovens, décadas de crescimento econômico desordenado parecem ter resultado apenas em uma competição mais acirrada por oportunidades, menos estabilidade e menos poder sobre o rumo de sua vida.

Na internet chinesa, o termo que captura o estado de espírito é "involução", usado anteriormente por antropólogos para descrever sociedades agrárias que cresceram em tamanho ou complexidade sem se tornarem mais avançadas ou produtivas.

O sentimento entre os jovens chineses de que estão lutando mais por uma chance menor de ganho material faz com que esperem "reorganizar a vida de uma maneira diferente", de acordo com Biao Xiang, que estuda mudanças sociais na China e é diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Social na Alemanha.

Além de criticar a cultura de trabalho sob pressão da indústria tecnológica e os abusos trabalhistas da economia informal, os jovens chineses são mais céticos quanto à vasta influência que plataformas de internet como o Alibaba exercem sobre o comércio e as finanças. Ainda assim, Xiang acredita que os chineses não se voltaram contra empresas que proporcionam avanços tecnológicos de natureza mais tangível, razão pela qual o otimismo industrial de Musk ainda tem apelo: "Eles não estão realmente contra a tecnologia. Na verdade, são contra esse tipo de manipulação de relações sociais no estilo plataforma."

A China tem magnatas da tecnologia suficientes. O problema é que a carreira deles nunca parece ir muito longe sem que haja problemas.

Há Justin Sun, o gênio da criptomoeda que pagou US$ 4,6 milhões para jantar com Warren Buffett, mas que depois se desculpou pela "autopromoção excessiva". Ou Jia Yueting, que decidiu superar a Apple no campo dos smartphones e acabou enterrado em dívidas. Até Ma, do Alibaba, parece ter ajudado a catalisar a repressão do governo contra si ao falar um pouco francamente demais em um evento sobre sua contrariedade com os reguladores.

Mesmo assim, o estilo de Musk provavelmente chamaria pouca atenção na China se ele não fosse visto como alguém que tenta resolver grandes problemas da civilização, como a energia sustentável. Em um país onde a maioria das pessoas viu novas tecnologias basicamente trazendo grandes melhorias para sua vida, há menos cinismo em relação ao futuro distante do que no Ocidente.

Os jovens chineses veem Jack Ma e Pony Ma, líder da gigante de mídia social Tencent, "mais como homens ricos e empresários de sucesso" do que como visionários semelhantes a Musk, afirmou Flex Yang, cofundador da Babel Finance, provedora de serviços financeiros para criptomoedas em Hong Kong. Os dois Mas, que não são parentes, estavam apenas "no lugar certo na hora certa".

Jack Ma e Musk dividiram o palco em uma conferência de tecnologia em Xangai em 2019. Talvez nunca tenha havido uma dupla mais incompatível. Ma estava sério e engajado, à vontade no papel de destaque em uma conferência. Musk estava inquieto e brincalhão. Os dois conversaram muito um com o outro. Ma disse que a resposta às máquinas superinteligentes seria uma melhor educação para os humanos. Musk se limitou a rir disso.

Em uma compilação de momentos embaraçosos do evento postado no site de vídeo Bilibili, os comentários são brutais, principalmente em relação a Ma. "Essa é a pessoa que na China já foi admirada como um deus. Na presença de um mestre de verdade, ele é como um macaco adestrado", escreveu alguém.

O Alibaba não quis comentar.

Acompanhe tudo sobre:ChinaElon MuskJack MaThe New York Times

Mais de Negócios

Tupperware entra em falência e credores disputam ativos da marca icônica

Num dos maiores cheques do ano, marketplace de atacados capta R$ 300 milhões rumo a 500 cidades

Tupperware inicia processo de recuperação judicial

Preços do Ozempic devem cair nos EUA com negociação entre Novo Nordisk e governo