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A montadora gaúcha Agrale encolheu 64% em seis anos. Agora, aposta no lixo para voltar ao bilhão

Empresa já faturou R$ 1,1 bilhão, mas a crise dos anos 2010 derrubou o faturamento

Edson Martins, diretor comercial da Agrale: empresa viu a crise política e econômica e excessos de financiamento afetarem o faturamento (Julio Soares/Divulgação)

Edson Martins, diretor comercial da Agrale: empresa viu a crise política e econômica e excessos de financiamento afetarem o faturamento (Julio Soares/Divulgação)

Daniel Giussani
Daniel Giussani

Repórter de Negócios

Publicado em 5 de setembro de 2023 às 06h03.

Última atualização em 5 de setembro de 2023 às 10h01.

A Agrale foi pioneira em várias coisas. Indústria automobilística de Caxias do Sul, na serra gaúcha, a empresa automatizou a agricultura familiar brasileira ao lançar os primeiros tratores 100% nacionais. Em sua trajetória de 61 anos, ajudou a trazer a nacionalizar a produção de caminhões, motos e ônibus. Não a toa, já foi uma indústria que faturou mais de 1 bilhão de reais, com mais de 2.400 funcionários. Também não por mera semelhança, é parte de uma holding também muito potente no sul, o Grupo Stedile, fundador da Fras-Le.

No caminho de 60 anos da Agrale, porém, duas crises a obrigaram a fazer mudanças de rota. A primeira foi no final do século passado, quando as variações do setor agrícola (com anos indo muito bem e outros indo muito mal) abalaram o faturamento da empresa. A segunda foi mais recente. A crise econômica a partir de 2013 somada a uma inflação de frota subsidiada pelo Programa de Sustentação do Investimento (PSI) do governo federal derrubou a venda de novos caminhões e ônibus. Em 2016, o faturamento já era metade do de 2013. 

“Quando você tem uma empresa em que dois terços do mercado simplesmente desaparece, fica difícil de suportar”, afirma Edson Martins, diretor comercial da empresa. “Nós tivemos dificuldades, tivemos que fazer o dever de casa”.

Parte desse dever de casa foi encontrar novas entradas de receitas na empresa. Lá nos meados dos anos 1990, quando a Agrale apostava forte no mercado agrícola, achou um novo caminho fazendo chassis de ônibus, um mercado até então concentrado no exterior. Na crise de agora, tem tomado duas alternativas para driblar a queda de faturamento: apostar cada vez mais em nichos e, aos poucos, também aplicar novas tecnologias aos seus produtos. Uma delas, vinda do lixo. 

Os resultados já vêm aparecendo. Depois de cair a um faturamento de 417,4 milhões de reais em 2020, praticamente um terço do que faturaram em 2013, a curva vem subindo. Em 2021, faturaram 574,8 milhões de reais. Em 2022, bateram 826 milhões de reais - o melhor resultado desde 2015. A perspectiva é que esse valor se mantenha em 2023. Até junho, já faturaram 402 milhões de reais.

Como a Agrale nasce

A história da empresa começa em 1962 como Agrisa, Indústria Gaúcha de Implementos Agrícolas, produzindo motocultivadores e seus motores diesel. Três anos depois, Francisco Stédile compra a empresa e a muda de nome para Agrale. É nessa época que saí do motocultivador para fazer o primeiro pequeno trator. 

“Com a fabricação do trator nacional, a Agrale ajudou a automatizar a agricultura familiar do Brasil”, afirma Martins. “Aqui ao redor de nós, é possível encontrar uns 7.000 tratores rodando, muitos fabricados há 40 anos”. 

Nas décadas seguintes, ainda com foco no agronegócio, lançam outros produtos. Nos anos de 1970, vendem os primeiros caminhões. Nos anos 1980, as primeiras motocicletas. Mas estarem muito atrelados ao mercado agrícola, naquele momento, foi prejudicial para a empresa. 

Como foi a primeira crise da Agrale

“Naquela época, eram famosas as crises do mercado agrícola”, diz o executivo. “Era um dente de serra: você tinha dois anos de crescimento, dois de queda. E isso impactou bastante a Agrale. Ela passa por uma dificuldade financeira muito grande por volta de 1996”. 

Para superar essa primeira crise, o grupo Stédile é obrigado a vender uma de suas operações mais rentáveis, a Fras-Le, fabricante de pastilhas de freio e autopeças. O comprador é um outro grande grupo gaúcho, a Randon. 

Uma reportagem da EXAME da época conta que a Fras-Le era a maior e a melhor parte dos negócios da família. Sozinha, foi responsável por mais de 60% do faturamento do grupo, de 190 milhões de reais em 1995. A matéria ainda diz que a família tentou durante meses vender a Agrale, mas não conseguiu. Os Stédile decidiram então vender a Fras-Le, na esperança de salvar o que lhes restava dos negócios.

“Com a venda da Fras-Le, o dinheiro entra para pagar as dívidas da Agrale e sobrar um capital de giro para recomeçar o negócio de uma forma voltada para outros nichos”, diz. “Os acionistas resolveram focar a empresa em outros nichos para não ficar tão dependente do mundo agrícola”. 

É quando entram na pista os ônibus. 

Qual foi a aposta da Agrale nos anos 2000

Quando passaram a olhar novos nichos, um em especial chamou atenção: o de micro-ônibus. À época, as montadoras de ônibus compravam caminhões leves para usar a parte frontal e adaptar a parte traseira para carroceria de ônibus. 

“Só que aquilo foi desenhado para transportar cargas, e não pessoas”, afirma Martins. “O conforto e a segurança mudam. Se você deixar um caminhão quicando um pouco mais, por exemplo, tudo bem. Agora, se for um ônibus, as pessoas vão virar milkshake”. 

Foi então que a Agrale decidiu fazer um chassi planejado para micro-ônibus. Em parceria com a Marcopolo, outra gigante da região, começaram a apoiar a construção do Volare, primeiro micro-ônibus totalmente nacional - e que hoje representa por cerca de 25% do faturamento de toda Marcopolo. 

Com esse movimento, a Agrale sai de uma produção ao redor de 300 unidades ano para um mercado que já chegou a ter 6.000 unidades anuais.

Em paralelo a isso, começam a desenvolver outros produtos. Em 2004, lançam uma linha de viaturas 4x4 para uso das forças armadas e de segurança. Em 2006, lançam o primeiro trator brasileiro a admitir o uso de biodiesel. “Esse ímpeto inventivo e inovador sempre existiu na Agrale, mas sempre olhamos para o que é rentável”, afirma Martins.

A segunda grande crise na Agrale

O ano de 2013 marcou o último boom produtivo automotivo para a Agrale. Foi o ano de maior produção, e como diz Martins, “se vendeu muito caminhão e muito ônibus”. Mas a crise política e econômica em que o Brasil entra nos anos seguintes impacta na indústria gaúcha. 

“Em 2016, o mercado de caminhões no Brasil caiu, comparado a 2013, 67%”, afirma Martins. “Houve excesso de financiamento, política fiscal para o segmento de caminhões, ônibus e tratores agrícolas. Ônibus caiu também para um terço”. 

O excesso de financiamento que Martins cita é fruto do Programa de Sustentação do Investimento (PSI). O projeto, que financiava 100% do valor de um caminhão e cobrava juros fixos de 7% ao ano, criou uma bolha de oferta, e sobrou caminhão. 

Na Agrale, a crise veio forte. Dos 2.400 funcionários que tinham, sobraram 800. A empresa fez desinvestimentos em uma série de operações que não dariam retorno a curto prazo. Priorizam negócios com maior liquidez e venderam estoques. 

“Só que uma coisa a gente não deixou de fazer: investir no futuro”, diz Martins. 

Como a Agrale vem superando a crise 

A Agrale usou duas estratégias para superar a crise. Uma foi focar em nichos de mercado. Vendeu chassis de micro-ônibus fora de estrada (off-road) para o Programa Caminho da Escola, seguiu apostando no 4x4 e fortaleceu o uso de parte de sua indústria para oferecer serviços para montadoras terceiras. 

Para o futuro, tem apostado também em novas tecnologias. Na Argentina, já há um ônibus da Agrale rodando abastecido por energia elétrica - uma parceria feita entre a indústria gaúcha e uma empresa de Londres. Mas a aposta da companhia, mesmo, é nos veículos movidos a gás. Principalmente aquele vindo do lixo. 

Qual a aposta da Agrale no gás metano 

A Agrale começou a desenvolver ônibus a gás em 2001, a pedido da Petrobras. À época, pegaram expertise para construção desses veículos com motores com capacidade de se mover com GNV,  o gás natural veicular. Nos últimos quatro anos, porém, os olhos da indústria gaúcha também se voltaram para um outro tipo de gás: o metano. 

“No Brasil, praticamente metade dos municípios brasileiros já está com seus aterros sanitários lotados”, afirma Martins. “E o lixo orgânico normalmente é enterrado, e acaba produzindo o gás metano, que ou é queimado, ou vazado para o ambiente. Aquele gás está sendo desperdiçado”.

Pensando nisso, a Agrale aplicou alguns testes e notou que seus motores também têm capacidade de serem abastecidos, além do GNV, por biometano. Ou seja, gás metano usado como bioenergia, assim como existe o biodiesel. Desde então, está em uma campanha para viabilizar frotas de ônibus municipais carregados por energia vinda do lixo. 

“O município como Caxias do Sul, por exemplo, poderia estar transportando os seus alunos das escolas municipais, com um gás gerado pelo lixo”, diz. “A prefeitura podia estar resolvendo um problema ecológico dela e do município”.

Claro, há desafios pela frente. O mais óbvio é o preço da tecnologia. Hoje, o retorno do investimento de um ônibus movido a gás é de 10 anos. A estratégia é tentar deixá-lo mais próximo a de um ônibus a diesel, para viabilizar a operação. O outro ponto é de infraestrutura, afinal, precisa-se de usinas para transformar o metano em bioenergia. 

“Mas estamos fazendo demonstrações”, afirma Martins. “Nosso objetivo é montar uma primeira frota. Quando tivermos uma primeira frota, a gente vai trazer todos os prefeitos interessados para ver funcionando.  A gente acredita que, até mesmo antes de um elétrico, esta tecnologia seria muito mais viável para o país”. 

No entendimento de Martins, é assim que Agrale supera suas crises: identificando oportunidades que já estão presentes, mas que ainda ninguém percebeu. Foi assim com os chassis de ônibus no final dos anos 1990. Está sendo assim agora. 

“O nosso foco é buscar nichos de oportunidades que não são mercados hoje, mas que podem vir a se tornar no futuro”. 

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