Negócios

A guerra no mundo das assinaturas

Cada família tem seu nome, sua capacidade de reunir exércitos, seu modo próprio de guerrear. A cada mudança de ventos, elas fazem alianças ou partem para o confronto umas com as outras. Todas querem conquistar mais espaço, mais riquezas – até finalmente chegar ao trono principal, a partir do qual comandem todas as áreas, todas […]

CENA DE GAME OF THRONES: a disputa entre a HBO e as concorrentes é tão ferrenha quanto a das famílias da série  / Divulgação/ HBO (HBO/Divulgação)

CENA DE GAME OF THRONES: a disputa entre a HBO e as concorrentes é tão ferrenha quanto a das famílias da série / Divulgação/ HBO (HBO/Divulgação)

DR

Da Redação

Publicado em 23 de abril de 2016 às 07h58.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h31.

Cada família tem seu nome, sua capacidade de reunir exércitos, seu modo próprio de guerrear. A cada mudança de ventos, elas fazem alianças ou partem para o confronto umas com as outras. Todas querem conquistar mais espaço, mais riquezas – até finalmente chegar ao trono principal, a partir do qual comandem todas as áreas, todas as armas, todas as almas de todo o planeta conhecido.

Se você pensou em Game of Thrones, a série da HBO cuja sexta temporada estreia este domingo, quase acertou. O parágrafo acima se refere não ao universo da série, mas ao universo em que a série existe: a complicada disputa que envolve a própria HBO e várias famílias concorrentes e/ou aliadas, como Netflix, Disney, Sony, Amazon, NBC…

Basicamente, a trama de Game of Thrones envolve meia dúzia de famílias que disputam o trono de ferro, símbolo do poder central, num ambiente de fantasia medieval – com dragões, duelos de espada e confrontos religiosos. A trama da Guerra das Audiências envolve um número um tanto maior de companhias que se movem num ambiente de fantasia tecnológico-financeira – com artistas, duelos de streaming e confrontos de modelos de negócio.

O jogo do autor

O sucesso de Game of Thrones é incontestável: no ano passado, a produção chegou bem perto dos 20 milhões de espectadores, tornando-se a série mais vista da HBO até hoje. Mas, em 2011, tratava-se de uma aposta, e uma aposta para lá de ousada.

É comum que escritores sonhem levar suas obras ao cinema, para atingir milhões de pessoas. No caso de Game of Thrones, foi o contrário. O autor dos livros que inspiram a obra, George R. R. Martin, havia trabalhado nos anos 80 para a emissora CBS, escrevendo para shows e frustrando-se com as simplificações e deturpações feitas para tornar as produções mais fáceis e baratas. Quando começou a escrever seus livros, decidiu torná-los o mais perto que pudesse de serem impossíveis de filmar. Isso significava escrever dezenas de capítulos, com centenas de personagens em milhares de páginas.

Transpor isso para a tela era, portanto, um senhor desafio. Na primeira temporada, a HBO gastou 60 milhões de dólares na produção. Para otimizar o investimento, havia equipes trabalhando simultaneamente: um ator podia atuar em três episódios sob dois diretores diferentes no intervalo de dois dias de filmagem. Por que fazer uma aposta tão ousada? Porque a HBO sentia que precisava elevar o nível de seu investimento em conteúdo.

O conteúdo morreu. Viva o conteúdo

A HBO nasceu na década de 60, como uma emissora de TV por assinatura. Em 1973, seu futuro não parecia nada promissor. Com apenas 8.000 assinantes, corria sério risco de ser suspensa pela companhia-mãe, a Time Life. A sorte mudou com uma aposta na distribuição: com uso de satélites para transmitir seus conteúdos, até então uma tecnologia cara e incerta, a HBO conseguiu alcançar todos os estados americanos e sua base de assinantes subiu para 100.000 casas em apenas dois anos. Nesta época, a emissora oferecia apenas nove horas de programação por dia.

Uma década depois, sob pressão da concorrente Showtime, a HBO passou a transmitir 24 horas por dia. Foi então que surgiu a aposta no conteúdo. No final dos anos 80, a estratégia era ganhar clientes com base na qualidade de sua programação – não só a grade de canais, a que os concorrentes podiam ter acesso, mas material exclusivo.

O advento da internet começou a mudar essa história, primeiro nos campos da música e das notícias. Na virada do milênio, a pirataria havia deixado claro que, sem o controle da distribuição, o conteúdo estava mais para rainha da Inglaterra: um símbolo que valia a pena sustentar, mas que não controlava de fato o estado da nação.

No campo da música, as gravadoras perderam espaço para os piratas e, mais tarde, para a Apple, que soube construir e controlar um ambiente de distribuição. No campo da informação, as empresas de notícias tradicionais sofrem até hoje com os “agregadores”: empresas como Google, Facebook e várias menores que entregam o conteúdo dos outros e sequestram a receita de anunciantes.

Para os vídeos, o baque demorou um pouco mais. Mas chegou. No início desta década, com o avanço das bandas largas de transmissão de dados, a internet passou a ser inundada por vídeos. O conteúdo estava em todo lugar. Abria-se a oportunidade de desafiar o modelo de distribuição fechada, em que a emissora oferece uma proposta de grade – misto de conteúdo próprio e comprado de terceiros.

O melhor exemplo desse novo momento é a Netflix. Nascida como uma locadora de DVDs que entregava fisicamente os discos encomendados virtualmente, a empresa teve crescimento explosivo quando a tecnologia lhe permitiu transmitir os filmes por streaming, via internet. Hoje, ela tem cerca de 43 milhões de assinantes nos Estados Unidos, 81 milhões globalmente. No Brasil, sua projeção é chegar aos 24,5 milhões de clientes em 2020. (A HBO tem pouco menos de 50 milhões de assinantes nos Estados Unidos, 130 milhões no mundo.)

Na esteira do sucesso da Netflix, vieram os concorrentes. Vários. Hulu (uma associação de NBC, Disney e Fox), Yahoo!, Amazon… Ninguém quer ficar de fora do que se antevê como o futuro da TV: a transmissão pela internet. Só que, com tantos atores, a distribuição começou a virou lugar comum. Todos compravam catálogos das produtoras, todos tinham mais ou menos os mesmos filmes, ou os mesmos tipos de programas. Nessa situação, como convencer as pessoas a assinar o seu serviço, e não o de qualquer concorrente? É aí que o conteúdo volta a fazer a diferença. É isso que explica a série Game of Thrones. E várias outras, de diversas companhias.

Produção em série

A concorrência das distribuidoras fez a produção aumentar extraordinariamente. O número de séries da TV americana quase dobrou, em seis anos, das 221 produções em 2009 para 409 em 2015. O maior impulso foi das séries feitas para serviços digitais – saltaram de apenas duas em 2009 para 44 no ano passado.

O Brasil teve salto semelhante, mas fruto do ciclo anterior, da explosão das TVs por assinatura, que os Estados Unidos viveram no século passado. Entre 2003 e 2013, o número de assinantes de TV por assinatura quase quintuplicou, de menos de 4 milhões de casas para quase 20 milhões, resultado do aumento da renda da população e de algumas ações das operadoras, como investir em filmes dublados e mais canais para atender a nova classe média.

Uma lei aprovada em 2011 estabeleceu uma cota mínima de conteúdo nacional para as emissoras, o que fez a produção nacional crescer quase 400% entre 2010 e 2013, e levou à criação de mais de 200 produtoras de conteúdo entre 2012 e 2014.

Mas o fenômeno arrefeceu com a crise. Na segunda metade de 2015, o mercado de assinaturas perdeu meio milhão de clientes. De dezembro a fevereiro deste ano, segundo a Anatel, mais 270.000 clientes deixaram a base, que agora está abaixo dos 19 milhões de assinantes.

Caminhos cruzados

À primeira vista, as empresas parecem estar seguindo o mesmo roteiro: amealhar um bom catálogo e investir em conteúdo diferenciado para construir sua marca e angariar clientes. Não é bem assim.

Embora a HBO e a Netflix tenham o mesmo produto (vídeos de entretenimento), seus modelos de negócio são profundamente diferentes. Para a HBO, a maior parte da polpuda receita de 5,4 bilhões de dólares vem do negócio de TV a cabo. É um modelo B2B, uma venda entre empresas. Ela paga direitos por catálogos de outras produtoras e investe em produção própria – e cobra das transmissoras, como Comcast eVerizon (ou, no Brasil, GVT, Net, Sky).

Neste modelo, a emissora não tem custos de cobrança nem de suporte ao cliente final, e ainda conta com parceiros (a empresa contratada) que ajudam a divulgar seu conteúdo. Em contrapartida, deixa uma boa parte do valor pago pelo assinante nas mãos da operadora.

A Netflix tem um modelo B2C, de empresa para consumidor. A estrutura de custos é diferente, o modelo de empresa é diferente. E os resultados são diferentes. Em 2015, a HBO ganhou pouco mais de 3 dólares por assinante; a Netflix ficou com menos de 0,30 dólar de cada assinante. Parece um abismo de distância, mas se a Netflix conseguir aumentar o preço de seu pacote em dois dólares sem perder clientes, seus lucros podem ultrapassar os da HBO.

Como disse o executivo-chefe de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos, em 2013, em entrevista à GQ: “nosso objetivo é nos transformar na HBO mais rapidamente do que a HBO se transforme na gente.”
Do lado da Netflix, a profecia tem se cumprido. O primeiro passo nessa direção foi a série House of Cards, premiada e elogiada. Este ano, a empresa deve expandir sua produção para mais de duas dúzias de séries, bem mais que a HBO e o canal (de conteúdo não-premium) FX.

Do lado da HBO, também. No ano passado, exatamente na época do lançamento da quinta temporada de Game of Thrones, a empresa lançou o HBO Now, um serviço em parceria com a Apple que permite assistir ao seu conteúdo sem ser cliente de uma TV por assinatura (não disponível no Brasil).

Era uma pedra cantada até por clientes. Em 2012, um programador de 27 anos chamado Jake Caputo criou um site intitulado Take My Money, HBO! (Pegue meu dinheiro, HBO!), pedindo para a companhia oferecer um serviço de streaming. Em 48 horas, mais de 160.000 pessoas se juntaram à campanha de Caputo.

Àquela altura, a HBO já trabalhava com essa hipótese. Alguns meses antes, havia contratado Otto Berkes, um engenheiro visionário que trabalhou na Microsoft, para montar um serviço de streaming que competisse com a Netflix. Mas o investimento seria alto demais, e a HBO decidiu formar uma parceria com a Apple (Berkes deixou a empresa quando o Now foi lançado).

Qualquer que seja o ponto médio em que a Netflix e a HBO se encontrem, nessa junção entre TV e locadora de vídeos, elas não estarão sozinhas. O lançamento da HBO Now abriu uma porteira para os serviços chamados de Over the top – que passam por cima das TVs por assinatura.

Seguindo o exemplo da HBO, a CBS anunciou no ano passado que vai lançar uma nova versão da série Jornada nas Estrelas… apenas na CBS All Access, seu serviço de streaming. Seguindo o exemplo da Netflix, a Hulu, outra empresa de streaming, estreou uma série sobre o assassinato de John Kennedy, com base em livro de Stephen King e dirigida pelo aclamado J.J. Abrams.

A Verizon, empresa de telecomunicações, lançou em setembro o Go90, um serviço de vídeos curtos, no modelo de inscrição gratuita, sustentado por anúncios. A Sony tem o serviço Crackle, também gratuito e sustentado por anúncios. A Showtime também lançou seu serviço de streaming.

Os invasores ao norte

Um modelo de negócios diferente de todos os outros é o da Amazon. Em 2011, a empresa passou a oferecer um serviço de streaming nos moldes da Netflix e em 2013 começou a produzir filmes e séries originais na Amazon Studios – duas delas já ganharam Globos de Ouro. “É a primeira companhia que usa o Globo de Ouro para vender papel higiênico”, disse Jeff Bezos, o fundador da empresa.

Para a Amazon, os vídeos são um chamariz dentro de seu serviço de clientes preferenciais, o Amazon Prime – que oferece entrega de artigos comprados no site em dois dias úteis, sem cobrança de frete. Esse serviço já tem 54 milhões de assinantes, tendo crescido 35% no ano passado. A mensalidade é o de menos – a Amazon provavelmente perde dinheiro com a logística necessária para as entregas. Mas o típico cliente Prime gasta 1.100 dólares por ano em compras no site, comparado a 600 dólares do cliente médio não Prime. É isso que pode sustentar os vídeos.

O que não quer dizer que a Amazon não esteja interessada também nesta guerra. Na última terça-feira, dia 19, na semana que antecede o lançamento de Game of Thrones, a Amazon anunciou que vai oferecer o Prime Video como oferta independente, por 9 dólares ao mês (o Prime completo custará 11 dólares por mês). A Netflix vai passar para 10 dólares em maio.

Bem ao longe, uma outra ameaça pode estar se formando nesse mercado. O YouTube, do Google, lançou em outubro o YouTube Red, seu serviço de assinatura – que inclui a partir deste ano a oferta de conteúdo original apenas para membros. Por enquanto, o conteúdo é feito apenas por produtores independentes. Mais para a frente, ninguém sabe.

(David Cohen)

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais de Negócios

Imigrante polonês vai de 'quebrado' a bilionário nos EUA em 23 anos

As 15 cidades com mais bilionários no mundo — e uma delas é brasileira

A força do afroempreendedorismo

Mitsubishi Cup celebra 25 anos fazendo do rally um estilo de vida