Pesquisa em laboratório com drogas (Divulgação/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 13 de maio de 2016 às 11h40.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h10.
É como se a noiva largada no altar anunciasse, no dia seguinte, planos para perder 10 quilos, remodelar seu guarda-roupa e inscrever-se no vestibular para fazer uma outra faculdade. A noiva, neste caso, é o laboratório irlandês Allergan, e sua história ilustra as dificuldades de todo o setor farmacêutico, cujo modelo de negócios preponderante na última década está em xeque.
Há apenas um mês, a Allergan estava prestes a ser comprada pela Pfizer, no que seria uma das maiores fusões de todos os tempos, um negócio de 160 bilhões de dólares. Um dos maiores incentivos para a Pfizer propor o casamento era a possibilidade de fixar residência no país da noiva – a Irlanda. Assim, num passe mágica, sem mudar praticamente nada de sua operação nos Estados Unidos, passaria a pagar menos impostos ao governo americano. Coisa à toa, na casa de 1 bilhão de dólares por ano.
Compreensivelmente, o governo americano ficou, digamos assim, um pouco chateado com as bodas. A reação do presidente Barack Obama foi parecida com a de Bill (David Carradine), quando soube do casamento de Beatrix Kiddo (Uma Thurman), no filme Kill Bill: chamou seus comandados para acabar com a festa. Obama não chegou a pegar em armas, mas orientou o Tesouro a criar uma norma feita sob medida para estragar os planos da Pfizer.
Pela lei americana, para que uma companhia usufrua dos benefícios fiscais de migrar seu domicílio para o país sede da empresa com a qual se fundiu, esta última deve ter no mínimo 20% do capital total da empresa combinada (e, para atingir o máximo dos benefícios, 40%). A regra que o Tesouro incluiu no mês passado foi que não contam, para efeito desse cálculo, os investimentos feitos nos últimos três anos pela companhia incorporada.
O executivo-chefe da Allergan, Brent Saunders, tinha razão de considerar que a lei foi feita com o intuito específico de prejudicar seu negócio com a Pfizer: nos últimos três anos a empresa fez fusões de mais de 100 bilhões de dólares (inclusive a compra da Allergan pela Actavis, que pagou 66 bilhões de dólares e assumiu o nome da adquirida).
Mas o governo Obama não queria simplesmente barrar este acordo. Queria enviar um sinal a todas as grandes empresas. Em pronunciamento no dia 6 de abril, o presidente americano comparou a fuga de empresas para países com menos impostos ao escândalo dos Panama papers (os documentos vazados de um escritório de advocacia panamenho revelando milhares de donos de offshores pelo mundo afora). “Várias dessas estratégias para evitar impostos são legais”, disse. “Mas é exatamente esse o problema. Não é que as companhias estejam burlando a lei, é que as leis são muito malfeitas.” Claro, há o argumento, majoritário no Congresso, de que as empresas buscam modos de driblar o Fisco porque os impostos nos Estados Unidos são altos demais: a alíquota para empresas é de 35%, ante 20% no Reino Unido, ou 12% na Irlanda.
Sem a perspectiva de vantagem fiscal, a Pfizer pagou 400 milhões de dólares multa à Allergan e desfez o negócio.
Novo rumo
Na primeira divulgação de resultados trimestrais depois do malogro de seu casamento, no dia 10 de maio, a Allergan mostrou uma receita ligeiramente abaixo do previsto e lucros um pouco acima do previsto. Mas o mais importante foi o anúncio de sua nova estratégia. A Allergan está para fechar a venda de sua divisão de genéricos para a israelense Teva, por 40,5 bilhões de dólares. Boa parte desse dinheiro, 10 bilhões de dólares, vai ser usada para comprar suas próprias ações – que perderam cerca de um quarto do valor desde o desmanche do casamento com a Pfizer.
“Quando olhamos o universo de coisas para comprar, não vemos nenhum investimento melhor do que a nossa própria companhia”, disse Saunders. É um sinal de confiança que deve ajudar a empresa a fortalecer-se no mercado de capitais (as ações subiram 2% no dia).
Com os outros 30 bilhões de dólares, a Allergan deverá perseguir uma estratégia que sinaliza as mudanças de rumo de toda a indústria. A estratégia começou a ser implementada, aliás, poucas horas depois do anúncio de que seu casamento com a Pfizer havia malogrado. No dia 7 de abril, a farmacêutica anunciou o licenciamento de um grupo de drogas de combate ao Mal de Alzheimer, pertencentes à britânica Heptares Therapeutics.
O objetivo da Allergan é distanciar-se da – ou pelo menos limpar a – imagem de “farmácia especial”, um modelo que ela própria ajudou a criar e hoje enfrenta crescente desconfiança da parte de consumidores (pacientes e planos de saúde), do governo e, por consequência, dos investidores.
A tentação de ser especial
“Farmácia especial” é um termo que ganhou ênfase nos últimos anos. Trata-se das empresas especializadas em vender “drogas especiais”, definidas como de alto custo, alta complexidade e às vezes alto contato (sua aplicação pode exigir o auxílio de um enfermeiro, ou a fiscalização de doses, ou algum tipo de transporte e armazenamento especial, o que exige proximidade maior com o consumidor final). Essas drogas têm sido cada vez mais usadas para doenças complexas, como câncer, artrite, ou Aids.
Para dar uma ideia do sua multiplicação: em 1990, havia dez drogas especiais no mercado, de acordo com Jon Haas, da agência de publicidade e gestão de marketing Palio. Em 2010, já eram mais de 250. A explosão se deu por dois motivos paralelos. De um lado, os avanços na ciência, como decodificação de DNA e computadores mais rápidos, possibilita a criação de remédios cada vez mais específicos e complexos – um combate a doenças feito mais com tiros do que com balas de canhão. De outro lado, o desenvolvimento de drogas revolucionárias envolve pesquisa muito cara, e as farmacêuticas viram nas drogas especiais um modelo de negócios mais atraente: o investimento é menor, com a compra de remédios já prontos ou em estágio mais avançado de desenvolvimento, e o retorno é bem maior, dado que as drogas para doenças raras costumam ser bem mais caras.
O porém é que o caro se tornou muito caro. E depois exorbitantemente caro. Em 2000, o preço médio de uma droga contra câncer, para um ano de tratamento, era algo entre 5.000 dólares e 10.000 dólares nos Estados Unidos. Hoje, está em mais de 120.000 dólares. Como afirma Mark Kessel, sócio na firma de investimentos Symphony Capital, especializada em farmacêuticas, o modelo tradicional do setor é identificar drogas promissoras, conduzir testes clínicos abrangentes e caros e, caso ela passe por esta fase, promover a droga com esforço de marketing intenso. “Claramente, esse modelo não é sustentável no ambiente atual”, escreveu em artigo na Nature Biotechnology. “A produtividade dos canais de inovação internos caiu muito, com a média de um composto molecular novo por ano por companhia.” Mas o custo de trazer essa nova droga ao mercado continuou a subir, para além de 1 bilhão de dólares. Além disso, o tempo para a droga chegar ao mercado não diminuiu: é de cerca de 15 anos.
Essa situação acabou levando as empresas do setor a focar mais em negociar drogas já existentes e encontrar oportunidades de aumento de preços do que em investir em pesquisa e desenvolvimento. Num mundo de empresas abertas, pressionadas a agradar um mercado investidor que cobra resultados trimestrais, entende-se que as empresas tenham recorrido a apostas mais seguras, como os genéricos e as drogas especiais. Além disso, recorreram à compra de drogas estabelecidas ou mesmo de empresas (é o caso da Allergan, fabricante do campeão de venas Botox).
O risco de ser especial
A inovação, no mundo dos remédios, costuma custar caro, e é natural que tenha de ser bem remunerada. Mas a alta tem sido exagerada. Os reajustes estão há vários anos acima da inflação. Em 2015, os gastos com remédios subiram 13,1% no país, puxados pela alta em torno dos 30% das drogas especiais.
Para complicar a situação, nos últimos anos surgiram empresas com políticas de preço ainda mais agressivas. No ano passado, Martin Shkreli, sócio fundador e então executivo-chefe do pequeno laboratório Turing, foi apontado como o “CEO mais odiado dos Estados Unidos”, depois de ter comprado os direitos de produzir o remédio Daraprim e, no dia seguinte, aumentado seu preço em mais de 5.000%, de 13 para 750 dólares – cada pílula. (No Brasil, uma caixa de Daraprim, um remédio para combater toxoplasmose e importante para pacientes com o vírus HIV, custa por volta de 7reais – a caixa, com cem comprimidos.) Shkreli acabou sendo preso por um breve período, acusado de pedaladas financeiras em outra firma que fundou antes da Turing, e deixou o cargo de executivo-chefe.
Mais recentemente, em março deste ano, o laboratório Valeant, que já foi a maior empresa do Canadá, admitiu um erro de contabilidade que aparentemente indica fraudes ao estilo da infame empresa Enron (esconder prejuízos através de manobras contábeis para dar a impressão de saúde e valorizar-se no mercado financeiro, como num esquema de pirâmide). Em comum com a Turing, a Valeant era uma campeã de aumento de preços, com altas de até 500%.
Casos como esses provocaram uma onda de protestos e um humor nacional nada favorável ao setor farmacêutico. Por isso, a estratégia da Allergan é distanciar-se desse ambiente. Recentemente, Saunders reconheceu que a Allergan tem crescido principalmente por meio de aquisições, em vez de pesquisa. Mas, apontou que seus aumentos de preço são da ordem de menos de 10% ao ano.
E delineou uma nova estratégia. A empresa tem, segundo ele, mais de 70 drogas em fases médias ou finais de testes, incluindo tratamentos para depressão e algumas doenças típicas de mulheres (como fibroides uterinos), que poderão sustentar a companhia para além do Botox. Sem sua divisão de genéricos, ela deve focar em compras complementares para fechar um portifólio de drogas especiais. A nova ordem, segundo ele disse ao Wall Street Journal é “apresentar uma estratégia robusta e fazer apostas inteligentes em inovação”. O setor está precisando.
(David Cohen)