Primeiro-ministro britânico David Cameron: "um desastre f...", resumiu um corretor da Bolsa de Londres à AFP (Reuters/Stefan Wermuth)
Da Redação
Publicado em 24 de junho de 2016 às 22h14.
A decisão dos britânicos de sair da União Europeia (UE) provocou um terremoto que custou o cargo do primeiro-ministro David Cameron, afundou os mercados e ameaça desintegrar o Reino Unido.
Os sócios europeus lamentaram a decisão dos britânicos e pediram o início, o mais rápido possível, das negociações de separação, para as quais há um prazo de dois anos, com possibilidade de prorrogação.
"O Brexit é um golpe para a Europa", declarou a chanceler alemã, Angela Merkel, que convidou o presidente francês, François Hollande, o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, e o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, para uma reunião em Berlim na segunda-feira.
O presidente americano, Barack Obama, que afirmou durante a campanha que o Reino Unido deveria voltar às negociações comerciais com Washington se deixasse a UE, mostrou-se mais conciliador.
"A relação especial entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha é duradoura", ressaltou.
O resultado, no entanto, representa o fim do governo Cameron, que anunciou sua intenção de deixar o cargo diante da vitória do Brexit no referendo de quinta-feira por 52% a 48%.
A renúncia do chefe de Governo será efetiva antes do congresso do Partido Conservador, em outubro.
"Eu não penso que seria correto tentar ser o capitão que orienta nosso país até seu próximo destino", disse Cameron, visivelmente abalado, diante da residência oficial de Downing Street.
"Acredito que o novo primeiro-ministro é quem deve tomar a decisão de ativar o Artigo 50", afirmou, a respeito do Tratado Europeu de Lisboa, que abrirá o período de negociações para a ruptura.
O presidente russo, Vladimir Putin, viu neste resultado uma certa "atitude superficial" do governo de Cameron em assuntos "cruciais" para o país: "a organização deste referendo e seus resultados são uma atitude presumida e superficial", ressaltou.
Lágrimas nas ruas de Londres
Os vencedores estavam eufóricos. Com apenas um deputado no Parlamento, o líder do minúsculo Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), Nigel Farage, se tornou o grande vencedor por ter conseguido centrar a campanha no tema imigração, o que mais lhe interessava.
Farage pediu que o 23 de junho seja declarado "Dia da Independência".
"Agora temos uma oportunidade gloriosa para aprovar nossas leis e fixar nossos impostos de acordo com as necessidades do Reino Unido", disse o conservador Boris Johnson, ex-prefeito de Londres.
A euforia dos "Brexiters" contrastava com as lágrimas de Francesca Crimp, funcionária de um banco.
"Estou assustada, votei pelo futuro do meu filho e agora me sinto muito insegura", lamentou.
"Esta cidade multicultural em que vivo mudará drasticamente, e o mundo não é mais o mesmo", disse.
O resultado da consulta ilustra um país dividido, com Londres, Escócia e Irlanda do Norte favoráveis a permanecer na UE, enquanto no norte da Inglaterra e no país de Gales o Brexit venceu amplamente.
Mais de 350.000 pessoas assinaram uma petição de um novo referendo, e outra, firmada por 90.000, pede a independência
de Londres e sua manutenção na UE.
Os europeus residentes em Londres tinham dificuldades para digerir a vitória do Brexit e, sobretudo, a mensagem que alguns acreditam que esteja por trás: "Não são bem-vindos".
"Vivo aqui há cinco anos e nunca tinha me sentido rejeitado, até hoje. É como se metade da população gritasse para nós que não nos valoriza", afirmou à AFP o português Carlos Velazquez, um dos 3 milhões de cidadãos europeus que vivem no país, de acordo com dados do final de 2015.
Efeito dominó
Cameron defendeu a ideia de convocação do referendo, o segundo na tortuosa relação entre Reino Unido e UE. Os britânicos votaram "sim" à permanência no bloco europeu em 1975.
"Temos uma democracia parlamentar, mas há momentos em que o correto é consultar a população", disse.
As consequências do resultado podem perdurar por muito tempo.
Assim, logo após o anúncio do resultado, a Espanha pediu imediatamente uma "soberania compartilhada" sobre Gibraltar.
Depois do anúncio, os separatistas escoceses anunciaram o início dos preparativos legais para a convocação de um segundo referendo de independência, enquanto o Sinn Fein irlandês também deseja que Ulster possa votar para decidir uma união com a Irlanda.
Ao mesmo tempo, representantes da extrema-direita da França e da Holanda defenderam a ideia de referendos similares ao do Reino Unido.
O candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump, disse que a vitória do Brexit é algo "fantástico" e afirmou que existem semelhanças entre as campanhas.
"As pessoas querem recuperar seu país, querem a independência", afirmou.
Vários líderes separatistas catalães consideraram que o Brexit e um segundo referendo na Escócia poderia lhes dar argumentos para exigir um referendo de independência.
"Temos que fazer um acompanhamento porque pode complicar as negociações para o Tratado de Livre Comércio (TLC) entre o Mercosul e a União Europeia", advertiu o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez.
Caos nos mercados
"Um desastre f...", resumiu um corretor da Bolsa de Londres à AFP.
As bolsas europeias desabaram, a libra esterlina registrou a menor cotação em 30 anos e os investidores compraram títulos da dívida alemã, ameaçando com uma nova crise financeira na combalida Eurozona.
A agência de classificação de risco Moody's previu "um prolongado período de incertezas" para a economia britânica e reduziu de estável a negativa a perspectiva da nota do país, o que significa que poderia reduzir a nota (Aa1) em um futuro próximo.
O preço do petróleo voltou a cair e países produtores, como o Equador, expressaram preocupação pelo impacto desta nova desestabilização.
O Banco da Inglaterra se mostrou disposto a injetar imediatamente 250 bilhões de libras esterlinas em liquidez no mercado.
A saída forçará uma transferência de milhares de executivos da City de Londres para Frankfurt, Paris ou Dublin.
Nunca na história da UE um país havia votado para abandonar o projeto nascido nos anos 1950, das cinzas da Segunda Guerra Mundial.
Em jogo está o status legal de milhões de trabalhadores europeus no Reino Unido, e de centenas de milhares de aposentados britânicos em países como Espanha, França ou Portugal.
O referendo histórico evidenciou uma brecha insuperável entre regiões, gerações e classes sociais britânicas. As grandes cidades votaram de maneira majoritária pela permanência, enquanto as zonas rurais optaram pela saída.
Os jovens estavam dispostos a permanecer dentro de um bloco que possibilita liberdade de movimentação, mas os idosos só conseguiam enxergar uma invasão de imigrantes, 300.000 por ano, que deveria ser interrompida o mais rápido possível.