Publicado em 8 de dezembro de 2024 às 14h18.
Última atualização em 8 de dezembro de 2024 às 14h37.
Neste domingo, forças rebeldes sírias anunciaram a queda do presidente do país, Bashar al-Assad, após conquistarem o domínio de Damasco, capital da Síria, colocando fim ao regime autoritário de sua família após mais de 13 anos de conflito interno. Em conversa com EXAME, Rodrigo Amaral, professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP, analisou o cenário, destacando especialmente o caráter abrupto e avassalador com que se desdobrou o evento fatídico.
"Quando a ação do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) foi iniciada, nenhum especialista afirmaria de forma contundente que Assad cairia da forma como caiu", explica Amaral, lembrando que as ofensivas que culminaram na tomada da capital síria começaram há menos de um mês, com a coalizão rebelde avançando primeiro sobre importantes cidades do país.
Como lembrou o professor, a Síria vivia sob o poder da mesma família, que comanda o Partido Socialista Árabe da Síria (BAATH), há mais de meio século, desde os anos 1970. "Já houve outras ameaças. Porém, talvez o mais importante acontecimento recente tenha sido a Primavera Árabe, em 2011, que deu início à Guerra na Síria", avaliou.
Entre 2017 e 2018, o apoio da Rússia foi fundamental para conter as tentativas contra o governo. Contudo, o distanciamento russo somado ao enfraquecimento do Hezbollah e ao apoio da Turquia ao HTS elevaram a temperatura das tensões. Outro aspecto determinante foi a crescente e constante insatisfação da população com o governo.
"Todos esses fatores prepararam o terreno para a derrubada de Assad. Agora, a Síria encontra-se em um momento bastante crítico e incerto de sua história", apontou Amaral, que analisou os quatro principais pontos de atenção no curto e médio prazos.
O vácuo de poder deixado por Assad abre espaço para uma intensa competição entre diferentes grupos, num cenário bastante complexo, considerando a presença de forças curdas e outras facções rebeldes na Síria.
Embora o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) tenha assumido protagonismo sobretudo nas conquistas de Aleppo e Homs, a classificação internacional como organização terrorista e o histórico de violação dos direitos humanos em territórios sob seu controle são motivos de apreensão.
A seu favor, porém, a facção parece ter apoio da Turquia. Afinal, a ofensiva do HTS ganhou força após o presidente turco Erdoğan fazer uma sinalização implícita ao grupo no mês passado, em uma resposta à recusa de Assad em dialogar enquanto forças turcas permanecessem na Síria.
Após a tomada de Damasco, a coalizão rebelde anunciou que prosseguirá com os esforços para completar a transição do poder para uma entidade governamental provisória com plena autoridade executiva. Não há confirmação, no entanto, de como esse processo de transição caminha ou quem compõe a entidade.
Muitos países apressaram-se para se manifestar, inclusive o Brasil, apelando por uma transição pacífica. No entanto, para Rodrigo Amaral o vácuo de poder gera uma fragmentação política que não favorece um processo tranquilo, visto que a lacuna será disputada entre grupos ideologicamente opostos.
Um tabuleiro de interesses multinacionais: assim pode ser resumida a configuração geopolítica a partir do episódio na Síria. Neste sábado, 7, durante o Fórum de Doha, no Catar, Rússia, Turquia e Irã sinalizaram que tentariam retomar o controle da situação, pedindo diálogo renovado entre Assad e a oposição. O fim do governo Assad, porém, chegou horas depois.
Haverá oportunidade para outras potências internacionais? Especialistas apontam que sim. Mas o momento é de apreensão. Os Estados Unidos foram dos primeiros a expressar cautela diante do rápido avanço dos grupos islâmicos. A Rússia, que mantém uma importante base militar em Hmeimim e um porto naval estratégico em Tartus, já expressou preocupação com o avanço de grupos considerados terroristas - o que pode ser interpretado como uma referência velada ou não ao HTS. O risco, alertou o ministro russo Lavrov, seria de repetição dos cenários do Iraque , em 2003, e Líbia, em 2011.
Rodrigo Amaral considera que para os EUA, esta não deixa de ser uma 'vítoria'. "O país sempre teve o interesse na queda de Assad, assim como na derrubada de todos estes agentes que representaram, durante a história do Oriente Médio, uma postura anti-hegemônica", explicou. "Já para a Rússia, é de fato uma derrota, pois Assad representava o 'espaço seguro' dos russos na região".
Quem sai de certa forma, ilesa, é a China, diz o professor. "Nada muda para a nação, pois a característica chinesa é lidar com os cenários conforme eles acontecem, sempre tentando oferecer bases para seu próprio projeto expansionista. Logo, é provável que corporações chinesas participem do processo de reconstrução da Síria", aposta.
A recuperação da Síria será uma tarefa hercúlea e improvável de se completar nos próximos anos, após mais de uma década de guerra civil, que deixou mais que um saldo devastador de mortos e refugiados. O país enfrenta agora o desafio de não apenas reconstruir sua infraestrutura física, como de restaurar um tecido social profundamente dividido. E o processo de reconciliação entre as diferentes comunidades e facções parece essencial para os próximos passos.
Para ilustrar o panorama, Amaral recorreu a exemplos de nações que também passaram por mudanças abruptas de poder, como Iraque e Líbia. "No primeiro caso, a retirada aconteceu por causa dos Estados Unidos, enquanto na Líbia, foi consequência da revolução da Primavera Árabe", pontua. "Contudo, em ambos os casos, tivemos uma continuação da crise econômica e da percepção das massas de que o governo não os representava. E no fim das contas, essa fragmentação política enfraqueceu estruturalmente o todo dos dois países".
Presente no Fórum de Doha, que tem previsão de término neste domingo, 8, representantes da sociedade civil exigiram participação ativa na transição política, defendendo que o que está em jogo agora é, mais que a saída de Assad, o desmantelamento de todo seu aparato de inteligência.
Para eles, é preciso garantir que a substituição por um governo transitório representativo de todos os grupos sírios, culmine em eleições nacionais - demanda historicamente vetada por Assad. Rodrigo Amaral explicou que o protocolo que se espera da ONU é de determinação de comissões políticas com um governo provisório, que por sua vez deve estabelecer meios para as eleições.
"Enquanto isso, deve haver ainda uma comissão constitucional para revisar a constituição nacional, que deverá mudar. Não há como prever o quanto isso vai demorar", completou o professor.
Com base nas análises, é possível afirmar que a única certeza na trajetória futura da Síria é, ironicamente, de que a situação do país permanece envolta em muitas incertezas, sem que qualquer previsão definitiva sobre os desdobramentos seja possível. "É um momento que exige cautela na análise e compreensão de que as decisões tomadas neste período de transição podem impactar profundamente não apenas o futuro do país, mas a estabilidade de toda a região", finalizou o especialista.