Entenda as divergências políticas do Uruguai (Hector Vivas/Getty Images)
Agência de notícias
Publicado em 1 de agosto de 2023 às 12h28.
O Uruguai tem sido um dos maiores obstáculos ao projeto do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, de maior integração e organização política na América Latina. Com um governo de centro-direita que tem posições destoantes de Lula em relação ao retorno do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, a arena internacional e ao funcionamento do Mercosul (Mercado Comum do Sul), Montevidéu e Brasília tem se colocado em lados distintos.
O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, já discordou publicamente do presidente brasileiro quando Lula convidou Maduro para participar do encontro de presidentes sul-americanos em Brasília, em maio. Na ocasião, Lula afirmou que o ditador venezuelano precisava “contar a sua narrativa” e criticou as sanções econômicas dos Estados Unidos. Após a declaração irrestrita de Lula em apoio ao regime venezuelano, conhecido pelas diversas violações de direitos humanos e políticos, Lacalle Pou interviu de forma enfática.
“Fiquei surpreso quando se disse que o que acontece na Venezuela é uma narrativa. Vocês sabem o que nós pensamos da Venezuela e do governo da Venezuela”, reagiu o uruguaio. “Se há tantos grupos no mundo tentando mediar a volta da democracia plena na Venezuela, para que haja respeito aos direitos humanos, para que não haja presos políticos, o pior que podemos fazer é tapar o sol com um dedo. Vamos dar o nome que tem e vamos ajudar.”
Cercado por diversos países que possuem governantes alinhados à esquerda no espectro político, Montevidéu questiona a agenda de integração de Lula e coloca em cheque até a participação do Uruguai no Mercosul, enquanto tenta costurar um acordo de livre comércio com a China, o que não é permitido pelas regras do bloco.
“Quando Bolsonaro estava no poder, o governo brasileiro sinalizou que poderia apoiar uma reforma no Mercosul que faria com que o Uruguai pudesse realizar um acordo de livre comércio com a China e ainda continuar no bloco da mesma forma, mas com Lula isso não foi mais possível”, aponta Diego Hernandez Nilson, professor de relações internacionais da Universidade da República, de Montevidéu.
O país vizinho adota um discurso de abertura econômica, acusando o Mercosul de protecionismo. Um acordo de livre comércio com Pequim é contra o regulamento da entidade, que só aceita negociar um tratado deste tipo em bloco, como o que está sendo feito com a União Europeia.
Na última reunião do Mercosul, que ocorreu em julho na cidade argentina de Puerto Iguazu, Montevidéu optou por não assinar o comunicado conjunto do Mercosul pela quarta vez consecutiva.
Lacalle Pou chegou a pedir que os demais países do Mercosul participassem das negociações do acordo com Pequim. “O Uruguai tomou uma decisão de avançar com a China para um acordo de livre-comércio bilateral. Se é junto com a permanência do Mercosul, melhor”, apontou o presidente uruguaio em coletiva de imprensa.
De acordo com Camilo López Burian, professor de ciência política e relações internacionais da Universidade da República, a política externa de Lacalle Pou foi costurada junto com setores do mercado financeiro e do agronegócio, que tem interesse em um acordo bilateral com a China.
“Lacalle Pou sabe que a política externa não ganha eleições, mas serve para movimentar o apoio interno, então quando o presidente fala sobre a importância do acordo com a China, ele está falando com os exportadores, com o setor agrícola e com importadores que podem comprar barato da China e vender aqui, o que agrada parte da sua base de governo, no agronegócio”, completa Burian.
Antes de se encontrar com Lula em uma visita oficial do presidente brasileiro a Montevidéu logo após a posse em janeiro, o presidente uruguaio afirmou que o país está “aberto para o mundo”. Já o presidente brasileiro apontou que o Mercosul está disponível para negociar um acordo em bloco com a China, apesar do foco estar em fechar o acordo de livre comércio com a União Europeia, que é negociado desde 1999.
Contudo, um acordo de livre comércio entre Uruguai e China e uma continuidade de Montevidéu em seu status atual no Mercosul não é possível para o governo Lula. Durante a visita oficial do presidente brasileiro a capital uruguaia, o assessor especial da Presidência e ex-chanceler, Celso Amorim, apontou que o Mercosul precisa ser preservado.
A dificuldade de preservar o lugar do Uruguai no Mercosul e um acordo com Pequim é o uso da Tarifa Externa Comum (TEC), que o Mercosul adota desde 1995 para padronizar a alíquota de importação de produtos provenientes de fora do bloco. Ou seja, é uma taxação dos produtos importados de países que não são do bloco econômico.
Um acordo entre Pequim e Montevidéu faria com que a TEC não fosse cobrada para produtos chineses no país vizinho. O Uruguai abriria seus mercados aos produtos fabricados na China em troca de tarifas mais baixas sobre a carne bovina exportada para Pequim.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, Montevidéu e Brasília chegaram a discutir uma flexibilização da TEC do Mercosul, que poderia possibilitar um acordo do Uruguai com a China sem prejudicar a relação de Montevidéu com o bloco. A ideia também era defendida pelo ex-presidente da Argentina Maurício Macri, mas gestão de seu sucessor, Alberto Fernandez, se posicionou contra a flexibilização.
“Entre 2021 e 2022, houve um avanço na concretização do acordo, mas com Lula na presidência do Brasil esse acordo fica muito difícil, para mim está claro que não vai acontecer”, avalia Nilson.
Já a possibilidade de um acordo de livre comércio entre China e todos os membros do Mercosul é considerada remota neste momento, segundo Burian, por todos os esforços estarem concentrados para um acordo com a União Europeia, que já se arrasta há mais de 20 anos.
Além disso, nem todos os países do Mercosul possuem relações diplomáticas com a China, o que dificultaria uma negociação. O Paraguai mantém relações fortes e históricas com Taiwan, território que a China considera como seu. Pequim não possuí nenhum contato diplomático com países que reconheçam Taiwan como nação.
O chanceler uruguaio, Francisco Bustillo, chegou a afirmar durante a última cúpula do Mercosul que Montevidéu pode considerar a possibilidade de deixar o Mercosul como Estado fundador para se tornar um Estado associado, que tem menos responsabilidades e mais liberdade comercial, apesar de não ter poder de voto nas decisões do bloco.
Para Burian, existe um consenso no sistema político uruguaio que o Mercosul deve ser melhorado, tanto nos partidos da situação quando na oposição, mas que a retórica do governo Lacalle Pou é muito mais dura do que de outros presidentes uruguaios como José Mujica e Tabaré Vázquez, que foram os antecessores de Lacalle Pou.
“A necessidade de reformas no Mercosul é uma pauta que é antiga no Uruguai e foi pleiteada por presidentes que vieram antes de Lacalle Pou e tinham percepções políticas diferentes, mas isso nunca implicou em cortar laços com o Mercosul, se distanciar dos países da região, por isso que nesse sentido o discurso de Lacalle Pou é mais inflexível”, completou o especialista.
Burian avalia que o Uruguai pode acabar saindo do Mercosul, mas alguns setores da economia que se beneficiam do bloco poderiam ser prejudicados. “Sempre há vencedores e sempre há perdedores e o governo uruguaio precisaria discutir mais isso porque se amanhã o Brasil opta por alguma retaliação contra nós por uma decisão de abandonar o Mercosul em setores como o açucareiro, por exemplo, o que a gente faz com as famílias que dependem deste setor?”, aponta o professor.
De acordo com o especialista uruguaio, existem temores sobre uma possível dependência economia do país caso o acordo seja feito. “Se o Uruguai tivesse um acordo de livre comércio com a China, em vez de ter mais abertura e liberdade, poderia ter uma maior dependência econômica, incluindo maiores impactos ambientais. Por outro lado, pode ser que o acordo seja ótimo, com muito crescimento para o Uruguai, mas acredito que o debate não é feito com a profundidade necessária para que a população esteja informada do que está acontecendo.”
Nilson avalia que o Uruguai não vai sair do Mercosul porque depende muito do bloco na esfera econômica. Além disso, Montevidéu sabe da importância das relações diplomáticas com Brasil e Argentina, que ficariam comprometidas caso houvesse uma mudança no status quo do Mercosul.
Durante a Cúpula do Mercosul, o Uruguai também se distanciou da posição de Brasil e Argentina em relação a uma possível volta da Venezuela ao bloco. Caracas foi suspensa pelos outros membros em virtude da crise política e democrática do regime de Nicolás Maduro em 2016.
“Todos aqui sabem o que pensamos sobre o regime venezuelano. Você tem que tentar ser objetivo. É claro que a Venezuela não conseguirá uma democracia quando se vislumbra a possibilidade de eleições e uma candidata como María Corina Machado, de enorme potencial, for desclassificada por motivos políticos e não jurídicos”, apontou o presidente uruguaio sobre a líder das intenções de voto na Venezuela, que foi impedida de concorrer nas eleições que estão marcadas para o ano que vem.
Para Nilson, Lacalle Pou aplica uma retórica de confronto em relação a Venezuela na política externa para tentar ganhar frutos em cima disso em questões internas. “O Uruguai tem uma tradição em política externa de não julgar outros países por sua política interna, e acredito que Lacalle Pou quebrou essa tradição em uma tentativa de atacar a esquerda uruguaia”, afirma o especialista.
O professor de relações internacionais avalia que é difícil chegar a um consenso dentro da América do Sul sobre a melhor forma de lidar com a Venezuela, mas que a chancelaria uruguaia não está interessada em construir pontes. “Existe uma importância do discurso de Lacalle Pou para a sociedade uruguaia mas externamente não vai levar a algum tipo de mediação com a Venezuela porque a política externa uruguaia não está voltada para isso”, finaliza Nilson.