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Um laboratório chamado Grécia

O governo da Grécia enfrenta mais uma dramática negociação — a terceira —com o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia. Seis anos se passaram desde que os gregos pediram socorro à comunidade internacional e se dispuseram a fazer a tarefa de casa financeira, mas a cada tempo que passa o país parece afundar mais. […]

GRÉCIA: em comparação com o primeiro trimestre de 2015, o PIB caiu 1,4%, um décimo a mais do que o estimado em maio / Alkis Konstantinidis/Files/ Reuters

GRÉCIA: em comparação com o primeiro trimestre de 2015, o PIB caiu 1,4%, um décimo a mais do que o estimado em maio / Alkis Konstantinidis/Files/ Reuters

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Da Redação

Publicado em 29 de abril de 2016 às 20h51.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h25.

O governo da Grécia enfrenta mais uma dramática negociação — a terceira —com o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia. Seis anos se passaram desde que os gregos pediram socorro à comunidade internacional e se dispuseram a fazer a tarefa de casa financeira, mas a cada tempo que passa o país parece afundar mais. Em junho e julho, a Grécia precisaria desembolsar mais de 10 bilhões de euros, mas simplesmente não tem de onde tirar esse dinheiro. O país já acumula uma dívida de 177% do PIB, e sua economia está estagnada, com um quarto da população desempregada — a maioria há mais de 12 meses. Mas o interessante na Grécia não é o que ela tem de excepcional, e sim de semelhante com o Brasil e outros países; como ela serve de laboratório dos grandes embates que envolvem as políticas econômicas: é com o governo gastando pouco ou muito, cobrando mais ou menos impostos, que se chega a um crescimento sustentável?

Até mesmo entre o FMI e a Comissão Europeia há uma divergência sobre como proceder com a Grécia. O FMI considera os gregos sem condição de cumprir as exigências, e os governos europeus acha que deveriam afrouxá-las. Mas a Alemanha e outros países da zona do euro insistem que, se mantiver o superávit primário de 3,5% nas próximas décadas, a Grécia conseguirá pagar suas dívidas e andar com as próprias pernas. O FMI, no entanto, recusa-se, sob essas condições, a ajudar os gregos a honrar as próximas parcelas. A resposta das autoridades financeiras europeias — reunidas em Amsterdã com representantes gregos — a esse impasse chega a ser surpreendente: elas propõem que a Grécia gere mais 2% de superávit primário por meio de novas medidas de austeridade.

O problema é que os especialistas não veem onde cortar. “Não há mais gordura”, avalia Gikas Hardouvelis, ministro das Finanças de junho de 2014 a janeiro de 2015, e professor de economia na Universidade Piraeus. “Os cortes de gastos chegaram ao osso”, concorda o consultor alemão Jens Bastian, baseado em Atenas, membro da força-tarefa grega na Comissão Europeia entre 2011 e 2013.

Existem ainda cerca de 60 estatais, remanescentes de décadas passadas, que geram prejuízos e vivem de subsídios. Uma delas, por exemplo, tem três usinas produzindo açúcar a custos acima dos preços internacionais. “Não querem tocar nelas, mas fechá-las não trará grandes economias”, diz Hardouvelis. Para o ex-ministro, cortes nos salários ou nas aposentadorias é que trariam uma poupança substancial. “Mas é politicamente impossível fazer isso. O governo cairia.”

Aumentar impostos é outra saída inviável: a carga tributária atingiu 60% do PIB e muitas pessoas já rasparam suas poupanças para pagar tributos. Clientes sacaram 500 milhões de euros de suas contas bancárias em fevereiro com medo da saída do país da zona do euro e de uma desvalorização dos depósitos. Há uma fuga de empresas e de cérebros. De acordo com uma pesquisa do Conselho da Europa, apenas 16% dos gregos com curso superior que trabalharam fora do país nos últimos três anos voltaram para a Grécia. “Não haveria contribuintes para pagar mais impostos”, atesta o ex-ministro. “Não tenho a solução neste momento. Mas não se deve insistir em medidas extremas. É preciso deixar a economia crescer primeiro.”

A saída é investir 

Para o consultor Jean Bastian, a ênfase das negociações deveria ser deslocada dos aumentos de impostos e cortes de gastos para os investimentos. Ele observa que apenas um dos 200 programas de investimentos custeados pelo Fundo Europeu de Investimentos Estratégicos será executado na Grécia. Também conhecido como Programa Juncker, em referência ao presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, o plano destina de 330 bilhões a 410 bilhões de euros de 2015 a 2017 aos países-membros com o objetivo de impulsionar a criação de até 1,3 milhão de empregos.

Para Bastian, os credores deveriam cobrar das autoridades gregas o motivo de tanta demora para implementar o Programa Juncker. O consultor alemão considera que “essa é potencialmente a história de sucesso de que o país precisa desesperadamente”. Aumentar os impostos, segundo ele, “estrangularia uma economia real que mal consegue respirar”. Na visão de Bastian, o foco deveria estar em duas outras questões fiscais.

A primeira seria a ampliação da base tributária. Segundo o consultor, 55% dos domicílios gregos estão isentos de imposto de renda. O piso de renda anual para a declaração na Grécia, de 9.500 euros, está bem acima do da Alemanha (7.664 euros) e de muitos outros países da zona do euro.

O outro tópico é a introdução de créditos tributários para famílias e empresas que paguem seus impostos pontual e integralmente. Bastian diz que uma linha especial de créditos tributários já é aplicada aos bancos gregos quando usam um mecanismo chamado “ativos de impostos deferidos”. “Por que os bancos deveriam ser os únicos a se beneficiar desses créditos?”

A troika FMI-Comissão Europeia-Banco Central Europeu agora se converteu em quarteto com a entrada em cena do Mecanismo de Estabilidade Europeia, mas a desconfiança mútua só tem crescido. No dia 1o de abril, o site Wikileaks publicou a transcrição de uma videoconferência entre os dois principais funcionários do FMI encarregados de supervisionar a situação da Grécia — Poul Thomsen, chefe do Departamento Europeu do FMI, e Delia Velkouleskou, que dirige a missão do FMI na Grécia. Na conversa, os funcionários deixam claro o receio de que a Grécia não consiga mais honrar seus compromissos até julho caso a União Europeia não flexibilize as exigências. Eles temem que a moratória grega coincida com o referendo na Grã-Bretanha, no dia 23 de junho, sobre sua saída ou não da União Europeia, no processo conhecido como Brexit.

“Isso vai ser um desastre”, diz Delia, uma economista romena. O dinamarquês Thomsen simula um diálogo imaginário com a chanceler alemã, Angela Merkel, no qual o FMI anunciaria sua saída da troika: “Olhe, sra. Merkel, enfrente a questão. A senhora tem de pensar o que custa mais: seguir adiante sem o FMI ou optar pelo alívio da dívida que acreditamos que a Grécia necessita para nos manter a bordo?”

Thomsen continuou: “Não vou aceitar um pacote de medidas pequenas. O que trará tudo isso para o ponto de decisão? No passado, só houve um momento no qual a decisão foi tomada, quando [os gregos] estavam ficando seriamente sem dinheiro e indo para a moratória. Possivelmente é o que vai acontecer de novo. Nesse caso, vai se arrastar até julho, e claramente os europeus não vão querer ter nenhuma discussão um mês antes do Brexit”.

O incidente envenenou o ambiente já ruim entre gregos e credores. Do ponto de vista do FMI, representou a violação da confidencialidade de seus trabalhos no seu escritório em Atenas — que deveria ser protegida pelos anfitriões gregos. O primeiro-ministro Alexis Tsipras acusou o FMI de tentar “desestabilizar a Europa politicamente” e fez menção de usar o incidente como pretexto para empurrar com a barriga as negociações e tentar arrancar condições menos severas. A diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, advertiu que “a Grécia não pode simplesmente ficar enrolando e esperando que as coisas se resolvam”. O Ministério das Finanças informou que, se o FMI suspender sua contribuição, a Alemanha fará o mesmo.

Nos últimos sete anos, a economia grega encolheu 31%. Nesse período, o único ano de crescimento — de apenas 0,7% — ocorreu em 2014 (veja gráfico), exatamente quando Hardouvelis era ministro das Finanças no governo de Antonis Samaras, economista formado na Universidade de Amherst, em Massachusetts, com MBA em Harvard. O Partido Nova Democracia, de Samaras, que liderava um governo de coalizão desde 2012, perdeu o apoio da Esquerda Democrática e do partido social-democrata Pasok, e novas eleições foram realizadas em janeiro de 2015. O partido de esquerda Syriza ficou em primeiro lugar, com 36%, e aliou-se aos Gregos Independentes, de direita. Em comum, ambos são contra a política de austeridade fiscal adotada para atender os credores do FMI e da União Europeia. Tsipras, líder do Syriza, é desde então o primeiro-ministro da Grécia.

Formado na Juventude Comunista e no Synaspismos, um grupo de esquerdistas e ambientalistas dissidente do Partido Comunista grego, Tsipras lançou-se numa cruzada contra a receita europeia de austeridade: elevação de impostos, corte nos gastos e redução do setor público. O populista de esquerda convenceu muitos eleitores gregos de que seu grupo formava uma espécie de vanguarda no continente contra o modelo imposto pelo Banco Central Europeu (BCE). Sua retórica inflamada empolgou boa parte da população, deprimida com a falta de perspectivas, mesmo depois de cinco anos de sacrifícios. Em um referendo em julho, 61% seguiram Tsipras e rejeitaram um novo pacote de medidas de austeridade. O resultado foi comemorado com manifestações de patriotismo.

Um mês depois, pateticamente, sem dinheiro para pagar as contas, o primeiro-ministro assinou o acordo com a troika, que previa a renovação do empréstimo de 85 bilhões de euros em troca de aumento de impostos, corte nos gastos e venda de estatais — os mesmos termos que ele havia ruidosamente rejeitado antes. Com a assinatura do acordo, a Grécia recebeu um desembolso de 13 bilhões de euros, o que lhe permitiu pagar ao BCE uma parcela pendente de 3,2 bilhões de euros. A “traição”, no entanto, custou a Tsipras a perda da maioria no Parlamento e a convocação de novas eleições. Vinte e cinco deputados desertaram do Syriza e formaram a Unidade Popular.

Numa amostra do desânimo dos gregos, o comparecimento às urnas foi de apenas 56% — o mais baixo desde o fim da ditadura em 1974. Resignados com a falta de alternativas, os eleitores deram de novo vitória ao Syriza, com 35% dos votos e 145 deputados no Parlamento, composto de 300. A aliança com os Gregos Independentes, que obtiveram dez cadeiras, garantiu a maioria e a formação do governo. Tsipras consolidou, então, sua imagem de governante que não chega a romper com a comunidade internacional nem retira o país da zona do euro — algo que os gregos não desejam —, mas que pelo menos negocia nos termos mais duros possíveis, protegendo a Grécia de mais medidas de austeridade do que o estritamente necessário.

Não é assim que Hardouvelis vê o atual governo, mas como uma perda de oportunidade histórica. “Em 2015, havia uma expectativa de crescimento de 2% a 3%, mas em vez disso houve recessão, por causa da atitude de confronto [com a União Europeia]”, lamenta Hardouvelis, ex-ministro das Finanças, que deixou o cargo após a ascensão de Tsipras em janeiro do ano passado. “A economia estava se estabilizando e crescendo. Os investidores estrangeiros estavam voltando e o país poderia ter avançado.” Naquelas condições, segundo ele, para chegar ao superávit de 3,5%, a Grécia precisava economizar apenas 1 bilhão de euros a mais. “Estava fácil.” Agora, com o mergulho na recessão e a exigência extra de um superávit de 2% do PIB, por sobre os 3,5%, é necessário poupar mais de 8 bilhões de euros, segundo Hardouvelis.

O exemplo que vem de fora 

Outra forma de avaliar as consequências da resistência grega é observar o que aconteceu com os outros países que também chegaram à beira da moratória mas seguiram o plano definido pela Comissão Europeia. Espanha, Portugal, Irlanda e Chipre conseguiram sair do buraco. Só a Grécia, que, com Tsipras, resolveu insurgir-se contra o modelo, tem afundado.

“Em 2010, a Grécia decidiu apertar o cinto e pedir mais dinheiro, mas as autoridades gregas não implementaram as reformas estruturais necessárias para aumentar a competitividade econômica e não acabaram com os privilégios para grupos poderosos”, disse Stephanie Walker, professora de ciência política na Universidade de Zurique e autora do livro Crises Financeira e Política dos Ajustes Macroeconômicos, resultado de um estudo comparativo. “Em vez disso, grupos menos influentes politicamente, como os jovens e os desempregados, foram atingidos mais duramente por cortes orçamentários e aumentos de impostos.”

A adoção do euro também não ajudou a Grécia, segundo a avaliação da pesquisadora. A Polônia, por exemplo, conseguiu sair da crise de 2008-2009 sem medidas de austeridade, mas desvalorizando o zloty. Stephanie observa que governantes tentam postergar reformas sérias o máximo de tempo possível, com receio das turbulências políticas e das ondas de manifestações que as mudanças acarretam. “E, quando não podem evitar as reformas, normalmente eles as elaboram de forma a proteger os próprios eleitores e mirar os que são menos influentes politicamente.”

Stephanie estudou a Europa do Leste e do Sul. Mas às vezes parece estar falando também da América do Sul.

(Lourival Sant’Anna)

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