(Carlos Barria/Reuters)
Da Redação
Publicado em 2 de junho de 2018 às 08h01.
Última atualização em 2 de junho de 2018 às 09h49.
Fascism: a Warning
Autora: Madeleine Albright, com Bill Woodward
Editora: HarperCollins
Páginas: 288
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Relegado por décadas aos livros de História, o termo “fascista” passou a ser invocado com mais frequência nos últimos tempos como sinônimo de algo ou alguém que achamos autoritário, violento e desagregador. Sem uma definição clara de seu significado para as gerações mais novas, que acabam relacionando ao populismo, a expressão tem sido usada como muleta nesses tempos de polarização política, espécie de xingamento definitivo para encerrar qualquer discussão. “Discorda de alguém? Chame-o de ‘fascista!’ e se livre da necessidade de apoiar os seus argumentos com fatos.” É assim que a veterana diplomata e acadêmica americana Madeleine Albright, de 80 anos, explica o que a levou a escrever Fascism, a Warning (“Fascismo, um aviso”, em tradução livre), livro oportuno recém-lançado nos EUA.
A obra tem dois objetivos claros. O primeiro é esmiuçar as características do movimento autoritário surgido no início do século 20 que forjou Benito Mussolini, na Itália, e Adolf Hitler, com sua versão alemã, o nazismo. O segundo é demarcar as diferenças, que são claras, do fascismo em relação a outros movimentos políticos antidemocráticos recentes, como o populismo.
Albright diz que só assim é possível conscientizar as pessoas para impedir que as condições políticas, econômicas e sociais que levaram à ascensão do fascismo se repitam. Essa possibilidade, segundo a autora, é real – daí o alerta que dá título à obra. De forma incisiva, ela adverte que o atual presidente americano Donald Trump tem sua parcela de culpa por essa nova ameaça.
Madeleine Korbel Albright tem autoridade para falar do tema. Nascida na antiga Tchecoslováquia numa família de origem judaica, escapou do regime nazista que ocupou o país em 1939 depois que o pai – um diplomata de carreira – conseguiu levar a mulher e a filha pequena para o exílio em Londres. Albright conta que só anos depois soube que três dos seus quatro avós, além de inúmeros parentes, acabaram mortos em campos de concentração nazistas.
Com o fim da Segunda Guerra, a família voltou para a Tchecoslováquia, mas em menos de dois anos se viu ameaçada por outro tipo de fascismo – o do regime comunista de Joseph Stálin, cuja influência no pós-Guerra avançava sobre vários países do Leste europeu. Prevendo o pior, o pai de Albright conseguiu uma transferência em 1948 para um cargo diplomático na recém-criada sede da ONU, em Nova York. Depois que a família se instalou nos EUA, pediu e obteve asilo político para ele e a família.
As agruras na infância foram decisivas para moldar a brilhante carreira de Albright nos Estados Unidos. Ela foi embaixadora dos EUA na ONU entre 1993 e 1997, ano em que foi nomeada pelo então presidente Bill Clinton como secretária de Estado – foi a primeira mulher a ocupar o cargo, o mais alto da diplomacia americana –, no qual permaneceu até 2001. Paralelamente, desde 1982, jamais abandonou a carreira de professora universitária. Albright dá aulas até hoje de relações internacionais na Universidade Georgetown, em Washington.
Os questionamentos dos estudantes e a polarização da campanha presidencial de 2016, marcada pelas posições xenófobas e racistas do candidato republicano Donald Trump, trouxeram a expressão “fascismo” de volta ao vocabulário dos americanos – a ponto de ser a segunda palavra em inglês mais pesquisada do dicionário online Webster naquele ano. Albright assegura que o interesse geral pelo tema – e não a eleição de Trump – foi decisivo para escrever a obra, em parceria com o ex-assessor Bill Woodward.
O livro poderia ser definido como um curso rápido de relações internacionais contemporâneas. Com linguagem didática e despido de formalismos acadêmicos, Albright contextualiza o surgimento do fascismo no início do século 20 e fecha o foco nos principais acontecimentos do mundo pós-Guerra Fria, incluindo o processo de globalização e a retomada do discurso nacionalista radical em vários países. Segundo ela, foi a combinação desses dois elementos que acelerou a ascensão de líderes populistas nos últimos 25 anos, do venezuelano Hugo Chávez ao turco Recip Erdogan, passando pelo húngaro Viktor Orbán e o americano Trump, entre outros.
Albright adverte que é um erro definir o fascismo como uma versão avançada do populismo. Embora os dois movimentos guardem semelhanças, a autora destaca diferenças fundamentais. O fascismo, por exemplo, surge sempre como um movimento de massas, que exige o apoio de praticamente todos os setores de uma sociedade, ricos e pobres, a um líder carismático e autoritário que fará de tudo para conquistar o poder e passar a ideia de que jamais erra. O movimento fascista busca sua energia em homens e mulheres que estão contrariados por terem perdido uma guerra, o emprego ou a sensação de que seu país está em declínio profundo. Quanto mais profundo o ressentimento, mais fácil para um líder fascista ganhar seguidores.
Uma vez no poder, o líder fascista vai eliminar a democracia, perseguir opositores e usar a violência para impor sua vontade. O papel do povo é atender suas ordens e a do líder, governar sem contestação. Albright lembra que, ao começar a ganhar seguidores, Mussolini jamais se preocupou em elaborar um manifesto fascista, “o que nos leva a pensar que o fascismo talvez deva ser visto mais como um ato de conquistar e controlar o poder do que uma ideologia política”.
A Itália dos anos 20, por exemplo, tinha fascistas de esquerda (que pregavam a ditadura dos despossuídos), da direita (que defendiam um Estado corporativista autoritário) e de centro (que queriam a volta da monarquia absolutista). O partido nazista alemão também tinha uma ampla lista de demandas que atendia antissemitas, anti-imigrantes, anticapitalistas e até os que pediam aumento aos aposentados.
Já o populismo é um movimento essencialmente reformista, que opera sempre dentro do contexto democrático e com apoio de apenas uma parcela da sociedade. O populismo de esquerda coloca no centro de sua agenda o antagonismo entre o povo e uma elite. Já o populismo de direita prega o enfrentamento do povo contra uma elite que afaga ou protege um grupo, que pode ser o composto por imigrantes, negros ou outras minorias – a quem são atribuídas as mazelas do país.
“Nessa concepção, um líder fascista certamente será um tirano, mas um tirano populista não necessita ser um fascista para governar”, escreve Albright, destacando o uso recorrente da violência e da intimidação do líder fascista para manter o poder como outra diferença fundamental. Ela usa como exemplo o governo de Hugo Chávez na Venezuela, clássico exemplo de líder populista.
“Os índices de criminalidade sempre foram altíssimos no país, algo que jamais seria permitido num regime fascista”, acrescentou a autora. Apesar de citar vários líderes autoritários, apenas um país deve ser considerado fascista nos dias de hoje: a Coreia do Norte.
Fatores em comum
Além de explicitar as diferenças entre fascismo e populismo, o livro ganha fôlego ao abordar as semelhanças entre eles. Segundo Albright, as condições políticas, econômicas e sociais que levaram ao surgimento do fascismo cem anos atrás se reproduzem nos tempos atuais, marcados pela ascensão populista — o que, se por um lado causa preocupação, por outro leva muita gente a confundir os dois movimentos.
O mundo dos anos 1920 vivia um período de crise econômica, desemprego em alta causado pelo avanço da Revolução Industrial e vulnerabilidade social pós-Primeira Guerra, o que facilitou a ascensão de líderes políticos radicais, como Mussolini e Hitler. “Invenções como a da eletricidade, o telefone, os trens e barcos a vapor estavam encurtando distâncias e trazendo novas oportunidades da mesma forma que tirou o emprego de milhões de fazendeiros e artesãos. As pessoas estavam em movimento, já que famílias migravam para cidades”, escreveu.
A comparação com os efeitos causados hoje pelo avanço da era digital, da globalização da economia e do aumento de fluxos migratórios é automática. Albright lembra que mais de um terço da força de trabalho do mundo não tem emprego em período integral. Na Europa, o desemprego entre jovens é de 25%, com nível ainda maior entre os imigrantes. Nos EUA, um em cada seis jovens está fora da escola e do mercado de trabalho. Os salários, em termos reais, estão estagnados desde os anos 70. Para a autora, “em muitos países, o clima é reminiscente daquele que, há cem anos, deu origem ao nazismo e fascismo”.
Albright observa que essa retomada em direção ao passado teve início há 25 anos, após a queda do Muro de Berlim, justamente quando o mundo parecia caminhar para uma consolidação democrática na maioria dos países. O que vemos hoje é o inverso: o Índice de Democracia de 2017, da revista The Economist, mostrou um declínio da saúde da democracia em 70 países – incluindo os EUA, pela primeira vez rebaixados para o índice de “democracia falha”. O motivo foi a falta de confiança nas instituições americanas nas eleições de 2016. Hoje, metade das nações do mundo pode ser considerada democracia (mesmo com falhas), enquanto a outra metade tende para o autoritarismo.
Albright levanta uma discussão interessante sobre os motivos que favorecem a ascensão do populismo. A despeito dos efeitos da crise financeira de 2008 e do processo de globalização, pela primeira vez, a taxa global de pobreza extrema caiu para abaixo de 10%, de acordo com o Banco Mundial. Segundo ela, países como Hungria, Polônia e Filipinas, comandados por líderes populistas, não estão em dificuldades econômicas extraordinariamente terríveis nem sofreram nenhum trauma recente.
O mesmo ocorreu com os Estados Unidos. Durante a campanha presidencial, Trump traçou um cenário terrível de desesperança social e econômica no país. Mas, enfatiza a autora, entre 2009 e 2016, a inflação permaneceu baixa, a taxa de desemprego caiu pela metade e a força de trabalho nos EUA aumentou para 12 milhões de vagas. “Se não há razões para estarmos satisfeitos com a economia, tampouco há para cair na crença de que o autoritarismo é, de alguma forma, a opção mais prática”, escreveu.
Albright, por sinal, dedica a parte final do livro para mostrar o papel exercido por Trump em estimular o confronto, o preconceito e o radicalismo – iniciativas que facilitam a ascensão do fascismo. Segundo ela, Trump é o primeiro presidente antidemocrático da história moderna dos EUA. Desde o início de seu governo, escreveu, o presidente americano não esconde seu desdém pelas instituições democráticas, pelos ideais de igualdade e justiça social, pelo discurso civil, pelas virtudes cívicas e pela América em si. “Se pensarmos o fascismo como uma ferida do passado que estava quase cicatrizada, colocar Trump na Casa Branca soa como arrancar a bandagem da ferida e cutucar a crosta”, escreveu.
Segundo ela, o papel de liderança global exercido pelos Estados Unidos desde o fim da Segundo Guerra foi fundamental para evitar a retomada fascista. Essa política, com erros e acertos, visava sempre a manutenção dos valores democráticos, que Trump demonstra desprezar. Sua decisão de retirar os EUA do cenário global, segundo Albright, representa uma grande ameaça. Ela lembra que a última vez que isso ocorreu, nos anos 20 e 30, foi justamente quando fascismo emergiu. “Líderes ao redor do mundo observam, aprendem e copiam de outros líderes. Eles caminham sobre as pegadas dos outros, como Hitler fez com Mussolini – e hoje o rebanho está andando em direção ao fascismo.”
Albright também aponta o vazio atual do centro político em vários países (incluindo nos EUA) como outro fator preocupante para o futuro da democracia mundial, pois favorece a ascensão de líderes radicais que desprezam a democracia. Com Trump, o risco é maior. “Se esse círculo de déspotas não tivesse surgido, a influência desalentadora de Trump seria provavelmente temporária e administrável, um mal menor cujo corpo saudável poderia facilmente se recuperar. Mas com a ordem internacional baseada na lei lutando contra uma infinidade de doenças, a tendência é de o sistema imunológico se enfraquecer. Esse é o perigo que estamos confrontando”, vaticinou.