Na Tunísia, o artigo seis da Constituição aprovada após a revolta que acabou com a ditadura de Zine El Abidine Ben Ali garante a liberdade de crença, de consciência e de culto (Spencer Platt/Getty Images)
EFE
Publicado em 14 de novembro de 2017 às 06h39.
Tunes - A Tunísia, onde em 2011 teve início a "Primavera Árabe", tornou-se, seis anos depois, o primeiro país do mundo árabe muçulmano a autorizar uma associação que defende um dos maiores tabus do islã: o ateísmo.
Formada por mais de 400 membros que se declaram "agnósticos e ateus", a associação, chamada de "Livres Pensadores", tem como objetivo principal "garantir os direitos daqueles que não se sentem religiosos".
"Promovemos sua visão da sociedade, questionamos a hegemonia da religião e mostramos que, além de muçulmanos, judeus, cristãos e bahais, também há quem não é religioso", disse à Agência Efe Munir Baatour, advogado e membro da associação.
Segundo Baatour, o caminho burocrático até conseguir a autorização foi longo e tortuoso: começou no primeiro semestre de 2016 e desde então foi preciso recorrer em sete ocasiões às autoridades, "que nos pediram muitos esclarecimentos e retardaram o processo durante um ano e meio".
"Disseram que não podíamos argumentar que lutamos contra o extremismo religioso porque não estamos capacitados para isso. Obrigaram-nos a esclarecer que contribuímos para lutar contra o extremismo. Procuravam qualquer desculpa para não legalizar uma associação de ateus".
Baatour admite que a palavra "ateu" no universo muçulmano, onde a negação de Deus e o politeísmo são dois dos piores pecados, sujeitos à pena de morte em alguns países, "incomoda muito".
"A maioria das pessoas não pode conceber que existe quem não acredite em deus. É um escândalo para eles. Deus é uma evidência, o Alcorão é a verdade absoluta e tudo o que aparece nele é inquestionável".
No entanto, o advogado acredita que existe um espaço, defendido pela associação "Livres Pensadores", que servirá para abrir um debate sobre o laicismo na sociedade tunisiana, considerada uma das mais abertas do mundo muçulmano, apesar da firmeza do salafismo radical e violento.
Um debate construtivo como o que conseguiram levantar no último Ramadã, mês sagrado do jejum para os muçulmanos, no qual houve a primeira manifestação para reivindicar o direito a comer em público.
"A Constituição garante a liberdade de consciência, e aqueles que não acreditam no islã não deveriam ser obrigados a jejuar para fingir diante dos demais. Sofrem uma grande repressão", acrescenta Baatour.
O advogado lembrou que, durante esse mesmo período de Ramadã, quatro pessoas foram condenadas a um mês de prisão por "desacato público e atentado ao pudor" após comerem na rua.
Nesse sentido, a "Livres Pensadores" qualifica como "uma violação dos direitos individuais" o fato de a maioria de cafés e restaurantes do país estar fechada durante o mês de jejum sagrado.
"Existe uma circular que proíbe os muçulmanos de comprar álcool durante o Ramadã. Se você for a uma loja, vão te pedir um passaporte estrangeiro. Se disser que é tunisiano, és considerado muçulmano. Não muda nada dizer a eles que é ateu", diz Baatour.
Na Tunísia, o artigo seis da Constituição aprovada após a revolta que acabou com a ditadura de Zine El Abidine Ben Ali garante a liberdade de crença, de consciência e de culto, embora no primeiro artigo proclame que "o islã é a religião" do Estado.
Tal artigo não pode ser revisado e, segundo Baatour, é uma contradição, já que "dizer que a maioria dos tunisianos é muçulmana é certo, mas dizer que um país é muçulmano é uma brincadeira".
"Um país não pode ter uma religião. Não peregrina, não dá esmola, não reza cinco vezes ao dia, não jejua. Um país não é uma pessoa. É estúpido dizer que um país tem uma religião".
Mas a associação tenta ir além, e refuta também a imposição de uma identidade étnica e religiosa ao afirmar que "a Tunísia não é árabe nem muçulmana".
"A Tunísia é tunisiana. É preciso fazer uma revisão total da história que glorifica a conquista árabe que levou o islã ao Magrebe de forma pacífica. Os árabes foram invasores sanguinários e é necessário revisar todos os massacres que foram cometidos contra a população autóctone", ressalta Baatour.
"Geneticamente, os árabes representam 4% dos tunisianos, há 12% de origem europeia e 60% de origem amazigh (berbere)".
Sob essas premissas, e diante de um Parlamento dominado pelo partido islamita moderado Ennahda, pilar da coalizão que governa o país, e um movimento jihadista estabelecido (a Tunísia é a quarta nação do mundo em número de combatentes radicais), a associação admite que sua tarefa é titânica e perigosa.
Ainda assim, a "Livres pensadores" pretende realizar conferências para sensibilizar a opinião pública, além de exigir a supressão da disciplina de educação religiosa nos programas educacionais do país e daqueles textos jurídicos que são discriminatórios contra os ateus.