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Kim Jong-un e Maduro fisgaram o "peixão" Donald Trump

O sonho de todo tirano ou líder populista é ser notado pelos governantes das grandes potências

Trump e Pence: enquanto os americanos criticam o “destempero” de Trump, os norte-coreanos se regozijam, como um pescador ao fisgar um peixe grande (Jonathan Ernst/Reuters)

Trump e Pence: enquanto os americanos criticam o “destempero” de Trump, os norte-coreanos se regozijam, como um pescador ao fisgar um peixe grande (Jonathan Ernst/Reuters)

EH

EXAME Hoje

Publicado em 12 de agosto de 2017 às 07h23.

Última atualização em 14 de agosto de 2017 às 13h05.

Lourival Sant'Anna

O sonho de todo tirano ou líder populista — que nada mais é que um aprendiz de tirano — é ser notado pelos governantes das grandes potências. Alguns, como os sucessivos reis da Arábia Saudita e o falecido xá Reza Pahlev do Irã, conseguiram isso como aliados dos Estados Unidos. Outros o tentaram desafiando presidentes americanos, como Fidel Castro em Cuba e Mahmud Ahmadinejad no Irã (com certo êxito), e Hugo Chávez na Venezuela (sem sucesso). Saddam Hussein no Iraque viveu as duas experiências.

Kim Jong-un, o jovem herdeiro da dinastia comunista norte-coreana, de 34 anos, vinha tentando isso em vão desde sua chegada ao poder, em dezembro de 2011. Na última semana, Jong-un finalmente conseguiu arrastar um presidente americano para um bate-boca.

O tema da disputa: quem tem mais coragem de disparar armas nucleares. E o mundo, antes preocupado apenas com a personalidade instável de Jong-un, agora divide suas atenções com a impulsividade de Donald Trump.

É preciso reconhecer que Jong-un trabalhou duro para isso. No dia 4 de julho, quando os EUA comemoram sua independência, a Coreia do Norte testou seu novo míssil intercontinental, o Hwasong-14. Festejou o fato de que ele poderia atingir “o coração dos Estados Unidos” transportando ogivas nucleares.

Jong-un tripudiou: “É um presente de dia da independência”. Era, também, um blefe: segundo os especialistas, o programa estava avançando muito depressa, mas os norte-coreanos ainda não tinham chegado ao continente americano.

No dia 28, novo teste. O míssil propositalmente subiu muito antes de descer, para mostrar seu alcance sem ameaçar de fato o território americano. E aí, sim: pelos cálculos dos técnicos, ele poderia ter atingido grandes cidades da Costa Oeste americana, distantes de 9 a 10 mil km da Península da Coreia.

Ainda faltam duas coisas: miniaturizar as ogivas para encaixá-las nesses mísseis e melhorar sua estrutura, para não serem incinerados ao voltar para a atmosfera. Mas foi mais um avanço notável. A Agência de Inteligência de Defesa americana estima que eles consigam dentro de um ano.

Trump respondeu com o fígado. Em um evento na terça-feira 8, dedicado ao problema do abuso de opioides, o presidente abandonou o discurso sobre o tema de saúde pública, preparado pelos seus assessores, e falou de improviso sobre os norte-coreanos: “Eles enfrentarão fogo e fúria como o mundo nunca viu”.

O mundo também nunca tinha visto um presidente americano falar dessa forma, nem abordar esse tema sem antes ouvir seus secretários de Defesa e de Estado, seu conselheiro de Segurança Nacional e seus assessores de comunicação.

O presidente foi no dia seguinte ao Twitter, explicar suas afirmações. Em resumo, ele repetiu que prefere o mundo desnuclearizado, e que a maior ameaça não é o aquecimento global, como afirmara seu antecessor, Barack Obama, mas as armas nucleares. Entretanto, enquanto isso não acontecer, “ninguém, incluindo a Coreia do Norte, vai nos ameaçar com o que quer que seja”.

Mas o estrago estava feito. Enquanto os americanos criticavam o “destempero” de Trump, os norte-coreanos se regozijavam, como um pescador ao fisgar um peixe grande. Na quinta-feira, o general Kim Rak-gyom, comandante da Força Estratégica do Exército Popular Coreano, declarou, sobre Trump: “Um diálogo efetivo não é possível com alguém privado de razão, e só a força absoluta pode funcionar com ele”. O general chamou a frase de Trump de “uma carga de non-sense” e observou que o presidente, que está em férias, passa todo o seu tempo em campos de golfe, e não consegue “entender a gravidade da situação”.

O comandante anunciou planos de lançar em meados deste mês quatro mísseis contra a costa de Guam, território americano situado no Pacífico Ocidental, a 4 mil km da Coreia. Segundo o general, esse “ataque envolvente” empregará quatro mísseis de alcance intermediário Hwasong-12, que sobrevoarão os municípios de Shimane, Hiroshima e Koichi antes de cair no oceano, a uma distância de 30 a 40 km da costa de Guam.

Duas novidades nesse anúncio: seria a primeira vez que mísseis norte-coreanos invadiriam o espaço aéreo japonês, embora já tenham caído várias vezes no mar territorial do arquipélago; além disso, Pyongyang nunca havia antecipado uma ação militar com tamanha precisão de detalhes.

Incidentalmente, é bom observar que a Coreia do Norte não apresenta suas ameaças da forma gratuita como às vezes pode parecer. O país se declara ameaçado por manobras conjuntas realizadas periodicamente pelos Estados Unidos com a Coreia do Sul e/ou com o Japão, com os quais mantêm pactos de defesa mútua, e pela presença de baterias de mísseis e de 28 mil soldados americanos no território sul-coreano.

Trump considerou a ameaça contra Guam “uma mudança no jogo”, e se defendeu das acusações de falta de temperança: “Francamente, as pessoas que estavam questionando aquela declaração… foi dura demais? Talvez não tenha sido dura o bastante. Eles vêm fazendo isso ao nosso país há muito tempo, e chegou a hora de alguém fazer algo pelo povo deste e de outros países”.

Trump assegurou que não deixará que Kim Jong-un ameace os EUA, o Japão ou a Coreia do Norte. Ele disse que o governo americano está avaliando sua situação militar na Ásia, e completou: “Estamos nos preparando para muitos eventos alternativos diferentes”. Isso inclui aumentar em “muitos bilhões de dólares” o orçamento de baterias de interceptação de mísseis.

As declarações foram dadas à imprensa em Bedminster, Nova Jersey, onde o presidente descansa em um de seus campos de golfe. Ele estava reunido com o vice-presidente Mike Pence, o diretor da CIA, Mike Pompeo, o conselheiro de Segurança Nacional, general Herbert Raymond McMaster, e o assessor de Segurança Interna Tom Bossert, entre outros.

Na sexta-feira, no mesmo local, Trump acrescentou mais um alvo a sua beligerância. “Temos muitas opções para a Venezuela, incluindo uma possível opção militar, se necessário”, disse ele aos repórteres. À pergunta sobre se essa eventual ação seria liderada pelos EUA, ele respondeu: “Não falamos disso. Mas uma operação militar é certamente algo que poderíamos levar adiante”. Nicolás Maduro também adorou: ele acabava de superar seu tutor, Hugo Chávez. Nem quando disse que a tribuna da Assembleia Geral da ONU cheirava a enxofre, e chamou de “diabo” o então presidente americano George Bush, que havia acabado de discursar, Chávez conseguiu arrancar uma resposta.

O código Trump

Os políticos americanos têm uma expressão, que costumam adotar como regra de conduta: “Não vou dignificar isso com uma resposta”. Trump não é um político.

A natureza militar de suas reações à Coreia do Norte — e agora à Venezuela — na última semana contrasta fortemente com a linha adotada até o fim de semana passado, quando o governo americano estava festejando sua mais recente vitória diplomática: a aprovação, no Conselho de Segurança da ONU, das mais duras sanções contra um país nas últimas décadas.

Depois de negociar exaustivamente com a China e a Rússia, para evitar que exercessem seu poder de veto, os americanos obtiveram a aprovação da proibição da compra de carvão, ferro, chumbo e frutos do mar da Coreia do Norte. Juntos, esses produtos representam um terço das exportações do país, ou 1 bilhão de dólares.

As sanções impedem também a contratação, por outros países, de trabalhadores norte-coreanos — outra importante fonte de receita do regime. E impõem limites a joint ventures com empresas de outros países, e ao seu financiamento.

O gesto da China de não vetar essa resolução foi uma demonstração de boa vontade, que o próprio Trump acolheu, dizendo-se encorajado a buscar uma saída negociada para a crise. Sem a ajuda econômica e a proteção política da China, o regime norte-coreano provavelmente já teria desmoronado.

Na sexta-feira, depois de uma semana de bate-boca entre Trump e os representantes de Jong-un, Pequim pediu cautela: “A China espera que todas as partes relevantes sejam cuidadosas em suas palavras e ações, e façam coisas que ajudem a aliviar as tensões e a elevar a confiança mútua, em vez de trilhar o velho caminho de fazer curvas para mostrar força, e de aumentar as tensões”, disse o porta-voz da chancelaria, Geng Shuang.

O regime chinês usa o jornal Global Times para dar seus recados mais duros. Em editorial, o jornal aconselhou o governo chinês a “responder com mão firme” se as ações dos EUA e da Coreia do Norte “prejudicarem os interesses da China”.

O jornal continua: “A China deveria deixar claro que se a Coreia do Norte lançar mísseis que ameacem o solo americano e os EUA retaliarem, a China permanecerá neutra. Se os EUA e a Coreia do Sul lançarem ataques e tentarem derrubar o regime norte-coreano, a China os impedirá”.

As provocações da Coreia do Norte não agradam a China, porque oferecem aos EUA justificativas para reforçar sua presença militar na região. Entretanto, a China, assim como a Rússia, que também tem uma pequena fronteira com a Coreia do Norte, consideram que a queda do regime comunista levaria à unificação da península sob o governo da Coreia do Sul — criando assim uma vizinhança incômoda com um aliado dos EUA.

Diante desse dilema, analistas consideram que o governo americano deveria oferecer garantias convincentes à China de que retirariam suas tropas, baterias de mísseis, navios e outros equipamentos militares da península e arredores. Entretanto, há uma clara resistência de parte do establishment de defesa americano de abrir mão de sua projeção sobre essa região.

Agora, o presidente Trump, que enfrenta sérios problemas políticos internos, parece estar assumindo essa briga para si, até como forma de desviar a atenção e de angariar apoio.

Também com relação à Venezuela, o governo americano seguia até aqui uma linha relativamente cautelosa. Adotou apenas sanções individuais contra o presidente Nicolás Maduro e outros 13 funcionários do governo. Nem mesmo a discussão de um embargo do petróleo venezuelano — do qual os EUA são os maiores importadores, com 700.000 barris diários — avançou.

O que assusta uma parte dos americanos — em geral aqueles que não votaram no presidente — é que eles parecem estar reencontrando uma faceta de Trump que conheceram durante a campanha do ano passado, e que foi revelada por anúncios de sua rival democrata, Hillary Clinton.

Em um desses anúncios, um oficial da reserva chamado Bruce Blair, que durante muito tempo operou o arsenal nuclear, dizia-se preocupado com a falta de auto-controle do candidato.

Na sequência, eram mostradas gravações de Trump em seus comícios, dizendo frases do tipo: “Eu os bombardearia até arrancar as tripas deles. Eu quero ser imprevisível. Eu amo guerra”. Em outras ocasiões, Trump questionou por que não se podia usar as armas nucleares: “Para que fazemos, se não podemos usar?”

Ao final, o oficial dizia: “A ideia de Donald Trump com armas nucleares me mata de medo. Deveria matar todo mundo”. Uma pesquisa encomendada pela Fox News em outubro revelou que 57% dos eleitores confiavam mais em Hillary, ante 31% em Trump. Mas outras razões levaram esses mesmos eleitores a escolher o candidato republicano. E, mesmo nesse caso, sua forma de falar lhes inspira sinceridade e firmeza.

Fred Doucette, vice-líder da maioria republicana na Assembleia Legislativa de New Hampshire, e veterano da Marinha, disse ao jornal The Washington Post: “O presidente falou na linguagem que Kim Jong-un entende, e pessoalmente acho que eles deviam seguir em frente com isso e mostrar para eles que estamos falando sério”.

Trump não está sozinho. E precisa mais que nunca do apoio de americanos como esse.

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