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"Trump mais ladra do que morde", diz ex-diretor da OMC

Pascal Lamy diz que tem percebido, até agora, uma atuação "soft" do presidente americano Donald Trump na política e na economia globais

Pascal Lamy, sobre Trump: "ele mais ladrou do que mordeu" (Sajjad Hussain/AFP)

Pascal Lamy, sobre Trump: "ele mais ladrou do que mordeu" (Sajjad Hussain/AFP)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 5 de maio de 2017 às 12h38.

São Paulo - Observador da interação política e econômica entre as grandes potências globais, Pascal Lamy, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), tem percebido, até agora, uma atuação "soft" do presidente americano Donald Trump na política e na economia globais.

"Ele mais ladrou do que mordeu", disse Lamy em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. No entanto, um ponto de atenção para Lamy - que, desde que deixou a OMC, tem se dedicado a escrever livros e a prestar consultorias a diversas empresas - é a eleição francesa. Segundo ele, dependendo do resultado das urnas, no domingo, a União Europeia pode sofrer um forte abalo. A seguir, os principais trechos da entrevista de Lamy, que esteve no Brasil para participar de um evento no Itaú Unibanco:

A ideia de uma governança global está em crise?

Acho que há duas questões diferentes. Acredito que a governança global tem sua própria dinâmica e lógica, e é algo que abordo no livro que acabei de publicar com Nicole Gnesotto (Où va Le Monde? - Free Market or Forced Market; em português: Para onde vai o mundo: Mercado Livre ou Mercado à Força?).

Existe essa reação antiglobalização, que alimenta alguns populistas. Acho que esses dois fenômenos ainda não colidiram, a não ser na integração europeia, que representa uma espécie de "mini" governança global.

Mas existe a possibilidade de as duas questões entrarem em colisão. Vamos cogitar que Donald Trump assuma uma visão mais protecionista e isso gere um contencioso na OMC.

A partir disso, a retórica dele pode ser: nós não ligamos para essa organização estúpida, isso não põe América em primeiro lugar. Até agora, a maior reação (contra a governança global) foi na Europa, com o Brexit.

Se Marine LePen vencer o segundo turno na França, isso pode ser um segundo baque na estrutura da União Europeia?

Eu tenho certeza de que a eleição da França é importante, mas eu espero que nenhum retrocesso aconteça. Mas eu também não acreditava no Brexit e dizia, um ano antes da eleição, que Trump não tinha chance alguma. Então, errei em tudo.

Qual é a função da governança global?

A governança global é um sistema de compartilhamento de poder necessário para discutir problemas mundiais, como meio ambiente, macroeconomia, trocas monetárias, questões tributárias, turismo e ciência, entre outros assuntos.

Então, essas organizações foram estabelecidas, desafiando a noção de que tudo deve ser resolvido por 200 países soberanos que apenas aceitam marginalmente influências externas.

Diante do que vemos hoje, não acredito que a governança global terá a cara que pensamos há 30 anos, o estabelecimento de uma democracia global.

Acredito que sempre haverá uma quantidade limitada de governança global, mas não será tão abrangente como imaginávamos.

E isso porque há um grande problema com o conceito de governança global, que é a legitimidade. E isso ocorre porque a legitimidade vem da proximidade.

Mas existem momentos em que o mundo precisa dessas organizações globais.

As organizações criadas depois da Segunda Guerra Mundial continuam a existir e ainda funcionam razoavelmente bem.

Entre os aspectos positivos, vimos as decisões econômicas globais migrarem do G-7 para o G-20 após a crise de 2008.

O que se viu com a crise é que existia um grande buraco na governança global, que era o setor financeiro.

Embora diversos países pedissem mais regulação, Estados Unidos e Reino Unido argumentavam que isso iria prevenir a inovação - na verdade, o que eles não queriam eram limites ao que ocorria em Nova York e Londres. E foi necessária a crise para que eles mudassem de ideia.

Ou seja: no momento de necessidade, as coisas acontecem. E não é um processo linear. É lento, complexo, desorganizado.

Por isso, não faz sentido a ideia de que um dia teremos uma governança global que espelhe os governos locais.

E quais são as saídas?

São duas saídas. A primeira delas é localizar assuntos globais. É assim que se ganha legitimidade. É melhor do que ter um monte de diplomatas fazendo uma bagunça em conferências internacionais.

O problema com os diplomatas é que, se eles resolvessem alguma coisa, perderiam o emprego.

O que eu chamo de polilateralismo é a construção de coalizões, com grupos organizados e a sociedade. Foi o que aconteceu com a questão de HIV-Aids, que nunca seria resolvida por diplomatas, mas que mudou graças ao ativismo.

Neste caso, a falha da Organização Mundial da Saúde (OMS) em tratar do assunto levou à criação da ONU-Aids.

O processo de convencimento das indústrias farmacêuticas de que era necessário garantir acesso a medicamentos em países em desenvolvimento não foi iniciado por alguém sentado em uma cadeira da ONU, mas sim pelas forças externas.

Então, eu não sou um pessimista, mas estou convencido de que criar outra ONU ou outra OMC simplesmente não é o caminho certo a se seguir para resolver questões globais.

O FMI e a OMC afirmam que um comércio internacional mais aberto ajuda os países mais pobres. Por que as pessoas comuns não têm essa percepção?

Acredito que, agora, elas tenham essa percepção. Elas não tinham essa noção na época de Seattle (quando milhares protestaram contra a OMC, em 1999).

É parte do problema que temos agora com o movimento antiglobalização. A classe média dos países desenvolvidos está dizendo que não se beneficiou com o livre-comércio.

Na realidade, a maior parte disso não tem relação com o comércio, mas com a tecnologia e a digitalização.

De certa maneira, é mais lógico do que o visto em Seattle: as pessoas dizem simplesmente que a abertura das fronteiras não foi boa para elas, especificamente.

Pode ter sido boa para a China, o Brasil e a África e também para os muito ricos e os mais pobres do meu país. Mas eu não sou pobre nem rico, sou classe média. Então, onde fico? É um pensamento típico do branco americano, que agora também se dissemina por alguns lugares da Europa.

Mas as pessoas também vêm perdendo direitos que consideravam adquiridos.

Nosso sistema de direitos foi criado nos países ocidentais, no fim do século 19. São sistemas coletivos de seguro-desemprego, de saúde e de previdência.

Com a crise de 2008, muitos desses sistemas cortaram benefícios. Nos Estados Unidos, o problema foi mais sentido, pois eles redistribuem cerca de 35% do que produzem.

Na Europa, o problema foi menos sentido, pois a redistribuição está na ordem de 45%. É por isso que o movimento antiglobalização, pelo menos por enquanto, ganhou contornos mais rebeldes nos EUA.

No caso da Europa, creio que precisamos esperar o futuro para ver. E a eleição na França vai ser um bom termômetro disso.

O que essa dicotomia da França nos revela, agora?

A divisão ideológica não é mais entre direita e esquerda. Existe uma nova divisão ideológica que está mais relacionada à questão da educação.

Tradicionalmente, a divisão entre esquerda e direita era de renda: pobres eram da esquerda, ricos da direita. Agora, é o nível educacional que divide os mais abertos dos mais fechados.

Mas há também outro grupo, que parece ter saído do nada e que nos mostra que nada é estável. E a eleição na França é um bom exemplo disso. Alguns candidatos simplesmente saíram de cena por causa desse clima de raiva e ressentimento, favorecendo outros tipos de competidores.

E essas "novas caras" podem surpreender e tomar o poder, como aconteceu nos EUA?

Acredito que ainda não podemos tirar uma conclusão sobre os Estados Unidos. Eu venho pensando muito sobre esse assunto e nós vamos publicar em breve uma análise sobre a posição de Trump sobre comércio que deverá ter o título "mais ladra do que morde". Em várias áreas, ele tem voltado atrás no que disse antes.

Então, na prática, a teoria é outra?

Ele representa uma mudança de estilo, está interessado em vitórias rápidas e pessoais. Ele não se importa em mudar de ideia - e faz isso no Twitter o tempo todo. Admite que os assuntos são mais complexos do que ele julgava inicialmente. Ele já mudou de ideia sobre Coreia do Norte, China, comércio, Alemanha...

Neste novo livro, eu e Nicole Gnesotto analisamos essa transformação global. E acredito que não podemos explicar essas mudanças usando ferramentas clássicas dos séculos 19 e 20, precisamos mergulhar mais fundo em antropologia e sociologia, imaginação e simbolismo.

Acredito que tenhamos sido muito racionais. E a eleição de Trump e o Brexit são provas disso. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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