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"Surpresa" da eleição, Geórgia define hoje o Senado dos EUA — e o futuro republicano

O estado tem nesta terça-feira o segundo turno das eleições para duas vagas no Senado que definirão a maioria nos próximos dois anos do governo Biden

Cartaz com Warnock e Ossoff, candidatos na Geórgia: após a vitória de Biden no estado pela primeira vez em quase 30 anos, democratas querem levar as cadeiras restantes no Senado (Brandon Bell/Getty Images)

Cartaz com Warnock e Ossoff, candidatos na Geórgia: após a vitória de Biden no estado pela primeira vez em quase 30 anos, democratas querem levar as cadeiras restantes no Senado (Brandon Bell/Getty Images)

CR

Carolina Riveira

Publicado em 5 de janeiro de 2021 às 06h00.

Última atualização em 5 de janeiro de 2021 às 10h53.

No fim do ano passado, algumas ligações fizeram o presidente do Senado americano, Mitch McConnell, repensar sua posição sobre o trilionário pacote governamental de estímulo. O tema estava emperrado no Congresso havia meses, com a falta de um acordo entre republicanos e democratas. Os partidos pareciam irredutíveis e o acordo fadado a ficar para 2021.

Mas poucos dias antes do Natal, os republicanos passaram de opositores a apoiadores da iniciativa, mesmo com valores maiores que o desejado. O motivo: o segundo turno da eleição para o Senado na Geórgia, que acontece oficialmente nesta terça-feira, 5, e definirá a maioria na Casa neste começo do governo de Joe Biden.

Na ocasião, McConnell disse aos colegas republicanos que a oposição do partido ao pacote, defendida até então, estava fazendo os dois senadores republicanos na Geórgia "apanharem" na campanha. O estímulo terminou sendo aprovado, no valor de 900 bilhões de dólares.

"Essa eleição do Senado é quase uma questão de sobrevivência para o Partido Republicano", diz o internacionalista e cientista político Leonardo Paz, do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

As duas vagas em disputa são atualmente dos republicanos, que detêm a maioria. Se os democratas conquistarem ambas, igualam os republicanos em número, com 50 senadores. Um possível desempate nas futuras decisões do Senado, nesse caso, ficaria para a vice-presidente Kamala Harris, o que favorece os democratas.

"O esforço para o lado republicano para manter a maioria é menor, e é isso que está precificado nos ativos do mercado. Mas as pesquisas têm mostrado quase um empate técnico, e um cenário em que os democratas levem as duas vagas também não é absurdo", diz o economista Arthur Mota, da Exame Research.

Com os democratas já tendo controle da Câmara, a maioria no Senado vai definir o quanto Biden conseguirá aprovar seus projetos nos próximos anos. Mais do que isso, seria uma vitória simbólica na Geórgia, onde Biden foi o primeiro candidato democrata a vencer na disputa presidencial desde Bill Clinton em 1992.

A Geórgia não escolhe um democrata para alguma de suas vagas no Senado desde a década de 90.

Outrora tradicionalmente republicano, o estado é agora um "trabalho em andamento" para os democratas, diz o cientista político Charles Bullock, professor da Universidade da Geórgia. "A vitória de Biden na Geórgia não indica que seja um estado azul", diz, se referindo à cor do Partido Democrata. "Mas o estado está ficando mais balanceado em termos de partidarismo."

Os demais senadores americanos já foram eleitos na mesma eleição de novembro que elegeu Biden como presidente. Mas, tal como no embate presidencial -- que Biden venceu na Geórgia por pouco mais de 11.000 votos --, o pleito do Senado no estado foi muito apertado e precisou ser levado a um segundo turno.

Das duas vagas em disputa, o reverendo democrata Raphael Warnock liderou no primeiro turno contra a atual senadora Kelly Loeffler (32,9% dos votos contra 25,9%). Na segunda vaga em disputa, o democrata Jon Ossoff ficou atrás do atual senador David Perdue (49,7% para Purdue, contra 48% de Ossoff).

O presidente Barack Obama (ao centro), em comício pedindo votos a Jon Ossoff (esq.) e Raphael Warnock (dir.), candidatos ao Senado na Geórgia (Jessica McGowan/Getty Images)

Vencer no pleito de hoje, portanto, será crucial para construir a imagem dos dois partidos. "Se os republicanos vencerem, isso indicará que a derrota de Trump foi mais uma rejeição pessoal do que uma rejeição ao Partido Republicano", diz Bullock.

A rejeição pessoal a Trump pode ter impactado, por exemplo, a performance democrata sobretudo entre eleitores negros, um terço do eleitorado na Geórgia.

Em pesquisa EXAME/IDEIA feita com eleitores americanos em outubro passado, Trump teve rejeição de 72% entre eleitores negros, ante 43% entre brancos. Ainda assim, esse eleitorado tem também suas complexas divisões internas, sobretudo entre os mais velhas. Uma das pesquisas de boca de urna mostram que Trump, mesmo fazendo declarações contra manifestações antirracistas que tomaram a Geórgia, teve 18% dos votos de homens negros e 36% de latinos -- e numericamente mais votos do que em 2016.

O herdeiro de Luther King e a jovem promessa

Ambos os candidatos democratas que desafiam o status quo da Geórgia acenam para um crescente eleitorado jovem e engajado, embora nenhum deles tenha carreira política prévia em Washington. Warnock, 51 anos, é pastor da mesma igreja que foi liderada por Martin Luther King na década de 60 e tem as questões raciais como uma das bases da candidatura.

Já Ossoff, aos 33 anos, seria o senador mais jovem dos EUA em 40 anos, e tem focado em temas como questões ambientais e combate à corrupção. Nesta eleição, chamou atenção por usar o TikTok para falar com o eleitorado. Na adolescência, Ossoff também estagiou no gabinete do deputado John Lewis, falecido no ano passado e também companheiro de Luther King no ativismo na Geórgia.

Mudanças demográficas, com mais eleitores jovens e urbanos, são parcialmente responsáveis pelo resultado positivo aos democratas na Geórgia e em outros estados no Sul americano -- Biden venceu também no Arizona, novamente pela primeira vez desde Bill Clinton.

As pesquisas por ora são inconclusivas sobre o resultado de hoje. Os votos começarão a ser apurados à noite, e o resultado pode demorar dias, como já aconteceu com a eleição presidencial.

Se a eleição de novembro é algum indicativo, os candidatos democratas devem, como Biden, vencer com folga nos votos pelo correio, votos antecipados e nas regiões metropolitanas, como Atlanta, e com maior apoio entre os jovens. Já Trump venceu entre os mais velhos e em cidades menores -- comportamento que se repetiu em outros estados.

Se os republicanos vencerem, isso indicará que a derrota de Trump foi mais uma rejeição pessoal do que uma rejeição ao Partido Republicano

Charles Bullock, da Universidade da Geórgia

Outro dos destaques na Geórgia nesta eleição foi o papel de ativistas como a ex-deputada e ex-candidata a governadora Stacey Abrams, que se tornou um dos principais nomes nacionais por seu trabalho de registrar eleitores.

Eleitores negros na Geórgia e em outros estados do Sul vêm apontando há anos práticas que classificam como “supressão dos votos”. Em Atlanta, cartazes com o nome de Abrams tomaram as ruas na celebração pela vitória de Biden no ano passado.

Stacey Abrams, ativista pelo direito ao voto e ex-candidata à governadora na Geórgia: milhares de novos eleitores registrados e relevância nacional (Ethan Miller/Getty Images)

Abrams chegou a ser cotada como vice na chapa de Biden na vaga que terminou indo para Kamala Harris, mas, na próxima eleição, a tendência é que dispute novamente o governo da Geórgia, que perdeu por pouco em 2018. 

Apesar da proximidade de Abrams com a ala mais à esquerda do partido democrata, a aposta do professor Bullock, da Universidade da Geórgia, é que tanto Warnock quanto Ossoff se mantenham mais ao centro se eleitos. "Os democratas na Geórgia estão se tornando mais liberais [politicamente], mas não tão liberais quanto Bernie Sanders e outros que se denominam mais como 'solicialistas democratas'", diz. 

O desafio da era Obama

A última vez que os democratas controlaram o Senado foi no biênio 2013-15. A própria Câmara vinha sendo republicana nos últimos anos. Os republicanos tinham maioria entre os deputados desde 2011, no fim do primeiro mandato do ex-presidente Barack Obama, e os democratas só recuperaram a Câmara em 2018.

Não à toa, o segundo mandato do ex-presidente foi dos períodos mais complexos de governabilidade.

No pleito deste ano, a Câmara continuou democrata -- embora com maioria menor do que anteriormente. Havia alguma expectativa de conquistar também maioria no Senado logo no primeiro turno, o que não se concretizou.

Entre uma eleição geral e outra (como a que aconteceu em 2020), há no modelo americano as chamadas midterms, sendo as próximas marcadas para 2022. Um terço do Senado é renovado a cada dois anos, enquanto a Câmara toda é renovada nesse período.

Dentre os desafios de negociação com o Congresso que se aproximam, uma expectativa é que Biden, que esteve próximo da Casa em seu tempo como vice de Obama e como congressista, consiga acenar para alguns republicanos moderados. "Um dos motivos pelos quais escolheram Biden como candidato é sua capacidade de negociação bipartidária -- foi por exemplo muito amigo do McCain [ex-senador], que era um símbolo republicano", afirma Paz, da FGV.

Na outra ponta, Biden terá de balancear a aproximação com os republicanos aos acenos para uma ala mais à esquerda do Partido Democrata, lideradas por nomes como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. "O fato de os EUA terem esse sistema quase bipartidário, significa que o que é o 'esquerda' para eles é um leque estruturalmente grande. Eu gosto de brincar que é como se o Biden fosse PSDB e a AOC fosse PSOL. Como equilibrar os dois?", diz o cientista político.

A própria dificuldade do Congresso americano em passar o pacote de estímulo adicional no ano passado pode ser vista como um aperitivo do que está por vir. Mota, da Exame Research, aponta que grandes mudanças legislativas com a vitória republicana no Senado dividido seriam mais difíceis, tanto eventuais novos estímulos como as pautas mais controversas, como aumento de impostos ou maior regulação a empresas.

Já se concretizada a chamada "onda azul" com vitória democrata no Senado, uma expectativa é de maior facilidade na aprovação não só de um pacote fiscal, mas de uma tese de expansão dos gastos públicos, que chegue à casa dos trilhões -- com maior investimento em infraestrutura, investimentos "verdes" e alguma frente de gastos sociais, como saúde e educação que já vinham desde Obama.

Ainda assim, não são esperadas grandes surpresas na política de um governo democrata. Os mercados têm visto com mais confiança o governo Biden nos últimos meses, incluindo em meio à escolha de seu gabinete, que teve pouco espaço para alas mais à esquerda democrata.

Uma das escolhas mais elogiadas pelo mercado financeiro foi o nome de Janet Yellen como secretária do Tesouro -- que terá papel de liderança na resposta econômica à crise do coronavírus. Yellen, aponta Mota, já tem tradição de defender políticas fiscais mais abrangentes e gastos públicos, e essa é uma expectativa dos mercados para a política econômica da era Biden. "A política fiscal consegue atingir a economia real de uma forma muito mais direta, sobretudo em um governo eleito com um pacote de gasto público muito generoso", diz.

Das desavenças internas nos partidos aos embates com o "outro lado do corredor", a eleição na Geórgia acontece ainda em meio aos polêmicos áudios de Trump. O presidente apareceu em uma ligação pressionando o secretário de Estado na Geórgia a reaver os resultados da eleição. "Eu só quero encontrar 11.780 votos", disse, se referindo à derrota contra Biden e alegando fraude no pleito.

Os pedidos de Trump para reverter o resultado já foram negados pela Justiça, mas deixam, ainda assim, um forte clima de polarização para os próximos anos, que vão impactar sobremaneira o governo Biden.

"É muito mais difícil agora do que era há algumas gerações ganhar votos da minoria no Congresso. As lealdades partidárias estão muito fortes", diz Bullock. "Tudo isso significa que o 117º Congresso muito dificilmente vai adotar qualquer legislação que traga mudanças dramáticas."

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