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Simpatia entre Lula e Trump não será determinante nas relações entre os países, diz Sérgio Fausto

Pesquisador da Fundação FHC comenta relações entre Brasil e EUA e fala sobre livro que traz análises de como o Brasil pode navegar um cenário global em transformação

Lula na ONU: presidente teve conversa com Donald Trump após discursar no plenário (Ricardo Stuckert / PR/Divulgação)

Lula na ONU: presidente teve conversa com Donald Trump após discursar no plenário (Ricardo Stuckert / PR/Divulgação)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 27 de setembro de 2025 às 08h05.

O Brasil e os Estados Unidos vivem um dos momentos mais desafiadores de sua relação, e a “química” pessoal surgida entre os presidentes Lula e Donald Trump deve ter poucos efeitos para mudar este cenário, avalia o cientista político Sérgio Fausto.

“É verdade que simpatias e antipatias pessoais têm algum peso na relação entre líderes políticos e, por isso, podem influenciar de alguma maneira as relações entre os países. Mas simpatias e antipatias pessoais não são determinantes nas relações internacionais. Ainda mais em se tratando de uma personalidade como a de Donald Trump”, diz Fausto, em entrevista à EXAME.

Fausto é diretor-executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso (FFHC), que realiza estudos sobre política internacional e outros temas. A FFHC lançou neste mês o livro "O Brasil diante das turbulências internacionais", em que diversos especialistas debatem como o país pode navegar este novo cenário. O livro pode ser baixado gratuitamente neste link.

Na conversa, Fausto fala sobre as ideias debatidas no livro e como o Brasil pode se posicionar também frente a outros desafios, como as relações com a China e a Europa. Leia a seguir a entrevista. 

Como vê o cenário nos Estados Unidos, que teve mudanças muito grandes em pouco tempo, após a volta de Donald Trump ao poder?

Todos nós que acompanhamos a política americana tínhamos uma ideia do que vinha pela frente, mas veio com uma força e rapidez que é surpreendente. É o jogo não jogado; houve pouca resistência até aqui, mas não se pode dizer que há um regime autocrático consolidado nos Estados Unidos. Não é isso ainda, mas os sinais são muito ruins.

Os ventos na Europa são na direção da direita. Ainda falta tempo para a eleição no Reino Unido, mas se as eleições fossem hoje, possivelmente o UK Reform poderia obter maioria. A Marine Le Pen, talvez não ela, mas o Jordan Bardella, o antigo Front National pode muito bem. Qual é o efeito disso no mundo e nas relações internacionais? Não será pequeno. 

No caso americano, diria que é óbvio que, e isso é curioso, porque é um traço de continuidade no mundo em que muitas coisas mudam rapidamente. O único ponto de convergência entre democratas e republicanos é o jogo duro em relação à China. Varia o modo de fazer, mas isso é uma constante. Assim como é uma constante a busca pela China de maior espaço no sistema internacional, agora de maneira mais assertiva. Isso não muda. Assim como não mudará o Vladimir Putin, que é um dado da política internacional até onde a vista alcança.

Como lidar com a pressão com o que os Estados Unidos estão fazendo com o Brasil? 

Não acho que haja outra reação legítima que não seja de rechaço. Essa interferência é absolutamente inaceitável e me espanta que haja forças políticas no Brasil que instiguem o governo americano, mesmo que de alguma maneira sejam complacentes com o que o governo americano vem fazendo, seja de direita ou de esquerda. Nós temos o direito elementar como país independente de resolver internamente os nossos conflitos sem a intromissão.

Agora, a questão difícil é como você lida com questões comerciais quando por trás delas, na verdade, não há fundamento econômico. Há um fundamento político e uma pressão para que o país capitule. 

Isso não vai se resolver da noite para o dia e vai depender também dos ventos políticos dentro do Trump, até que ponto ele está disposto a exercer pressão máxima até onde? Trump chegará a não reconhecer o resultado da eleição brasileira do ano que vem se o vencedor não for do seu agrado? Há cerca de um ano, isso pareceria inteiramente sem sentido. Hoje é necessário contemplar essa hipótese.

Como a conversa inicial entre Lula e Trump muda o cenário da relação entre os dois países?

É verdade que simpatias e antipatias pessoais têm algum peso na relação entre líderes políticos e, por isso, podem influenciar de alguma maneira as relações entre os países. Mas simpatias e antipatias pessoais não são determinantes nas relações internacionais. Ainda mais em se tratando de uma personalidade como a de Donald Trump. 

De que outras formas a relação entre o Brasil e os Estados Unidos mudou?

Há a percepção de uma volta da doutrina Monroe, que há uma clara tentativa de interferência mais incisiva na política interna da região, que tem a ver com a questão chinesa, com a competição. É uma preocupação crescente com a assertividade, para não dizer agressividade, dos Estados Unidos.

Há também um reconhecimento de que há uma conexão direta hoje entre a política externa americana e a nossa política interna. E que isso é um dado novo e preocupante para a condução da política externa brasileira, no caso das tarifas, como pretexto de pressão por razões políticas, é mais do que evidente.

Mas, obviamente, não há ali a defesa de que nós devamos nos afastar dos Estados Unidos para nos aproximarmos da China. Ao contrário, o Brasil tem que procurar manter o seu laço de tal maneira a não adernar demais para o lado chinês. Há um jogo de equilíbrio.

Voltou a disputa pela hegemonia global. Muito provavelmente você vai ter a definição de esferas de influência. E há lugares onde essa disputa por influência está em jogo. A América Latina é um deles, porque geograficamente, culturalmente e politicamente no mundo de esferas de influência é esperável que seja uma esfera de influência americana, mas a China já botou os seus pés aqui. E é importante do ponto de vista chinês essa presença na América Latina em geral e no Brasil em particular.

O livro debate como o mundo está se tornando multipolar, com várias potências disputando poder. Como o Brasil poderá navegar este novo cenário?

O Brasil precisa de alianças. É uma potência média, que não tem o que se chama de excedente de poder. Tem recursos de poder que são significativos, sobretudo na área ambiental, mas que têm que ser alocados com eficiência justamente porque não são comparáveis aos recursos de poder que têm as grandes potências, notadamente na área militar.

O Brasil deve ficar atento nesta reconfiguração do mundo, que está saindo de uma certa ordem para uma situação em que a nova ordem não está clara e configurada. Quais são as alianças que nós podemos fazer para aumentar o grau de autonomia relativa do Brasil, para pelo menos preservá-lo diante da luta entre os dois gigantes?

Aí, a aliança com a Europa é uma avaliação positiva. Traz efeitos econômicos, mas do ponto de vista estratégico, vê-se como um ativo adquirido agora muito importante. Há também a possibilidade de cooperação com Índia, Indonésia, África do Sul, etc.

O Brasil pode de alguma forma influenciar este processo?

O Brasil pode ter algum papel para que essa nova ordem, que vai demorar a chegar, tenha uma característica multipolar e o mais possível baseada em regras estáveis, e um reconhecimento realista que tem muita confusão pelo meio do caminho.

Essas alianças também são fundamentais para que se diminua o custo de transição, para que nos protejamos de choques adversos, sejam econômicos, comerciais, militares, etc., ao longo desse percurso. Há, também, o reconhecimento de que no mundo de hoje, não é só a ordem internacional que está sendo chacoalhada. São as políticas internas dentro de cada estado nacional. A volatilidade e a polarização fazem com que a Europa hoje não seja necessariamente a Europa daqui a 5 anos.

A política externa sempre foi condicionada pela política interna dos países, mas agora, como a política interna tem um grau de variância maior, o grau de imprevisibilidade na conexão entre a política externa e a política doméstica é maior. E um mundo muito mais difícil de navegar e muito desafiador para um país como o Brasil. 

Nesta semana, tivemos a Assembleia Geral da ONU. Como fica o papel da ONU neste contexto multipolar?

A ONU está brutalmente enfraquecida. Mas a reconfiguração de algum fortalecimento do multilateralismo deve ter como objetivo último o fortalecimento da Organização das Nações Unidas. Ela é uma espécie de ideia que aponta o horizonte para o qual os nossos esforços devem apontar, ainda que ela esteja convalida hoje. É um espaço que precisa ser ocupado. A ONU se encontra hoje, desde que foi criada no final da Segunda Guerra Mundial, no seu estágio de maior debilidade. Mas ela não pode morrer. Seria trágico para a humanidade deixar morrer essa instituição e essa ideia.

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