Vacinação contra a covid-19: o aumento do "nacionalismo vacinal" e o medo das vacinas alimentado pela desinformação são apenas alguns dos riscos (Jacob King/Pool/Reuters)
Ao final de 2020, os mercados financeiros — principalmente nos Estados Unidos — terão atingido novos picos, devido à esperança de que uma iminente vacina contra a covid-19 crie condições para uma recuperação rápida em forma de V. Além disso, com os principais bancos centrais das economias avançadas mantendo taxas de juros ultrabaixas e políticas monetárias e de crédito não convencionais, ações e títulos têm recebido um novo impulso.
Mas essas tendências aumentaram a distância entre Wall Street e pequenas e médias empresas, refletindo uma recuperação em forma de K na economia real. Os assalariados ou autônomos com renda estável, que podem trabalhar em casa e sacar das reservas financeiras existentes estão indo bem; os que estão desempregados ou parcialmente empregados em empregos precários e de baixa remuneração estão se saindo mal. A pandemia está, portanto, lançando as sementes para maior instabilidade social em 2021.
Nos anos que antecederam a crise da covid-19, 84% da riqueza do mercado de ações nos Estados Unidos estava em poder dos 10% dos acionistas (e 51% pelo 1% do topo), enquanto os 50% da base não detinham quase nenhuma ação. Os 50 bilionários mais ricos nos Estados Unidos eram mais ricos que os 50% mais pobres da população (um conjunto de cerca de 165 milhões de pessoas). A covid-19 acelerou essa concentração de riqueza, porque o que é ruim para as pequenas e médias empresas é bom para Wall Street. Ao dispensar bons empregos assalariados e, em seguida, recontratar trabalhadores autônomos, em meio-período ou por hora, as empresas podem aumentar seus lucros e o preço das ações. Essas tendências vão se acelerar com o tempo com a aplicação mais ampla de inteligência artificial e aprendizado automático ou de máquina (AI/ML) e outras tecnologias de substituição de trabalho, intensivas em capital e tendenciosas em competências.
Quanto aos mercados emergentes e países em desenvolvimento, a covid-19 desencadeou não apenas uma recessão, mas o que o Banco Mundial chama de “depressão pandêmica”, deixando mais de 100 milhões de pessoas à beira da pobreza extrema (menos de 2 dólares por dia).
Após entrar em queda livre no primeiro semestre de 2020, a economia mundial começou a viver uma recuperação em forma de V no terceiro trimestre, mas apenas porque muitas economias foram reabertas muito cedo. No quarto trimestre, grande parte da Europa e do Reino Unido entrava em uma recessão dupla em forma de W após a retomada dos drásticos bloqueios. Mesmo nos Estados Unidos, onde há menos apetite político por novas restrições à pandemia, o crescimento de 7,4% no terceiro trimestre provavelmente será acompanhado de um crescimento de 0,5%, na melhor das hipóteses, no último trimestre de 2020 e no primeiro trimestre de 2021 — uma medíocre recuperação em forma de U.
A renovada aversão ao risco entre as famílias americanas se traduziu em redução de gastos — e, portanto, menos contratações, produção e aplicação em capital. E dívidas elevadas no setor corporativo e em muitas famílias implicam mais desalavancagem, o que reduzirá os gastos, e mais inadimplência, o que produzirá uma crise de crédito, já que um aumento nos empréstimos inadimplentes prejudica os balanços dos bancos.
Globalmente, a dívida pública e privada aumentou de 320% do PIB em 2019 para surpreendentes 365% do PIB no final de 2020. Até agora, as políticas de dinheiro fácil evitaram uma onda de inadimplência de empresas, famílias, instituições financeiras, governos e países inteiros, mas essas medidas acabarão por levar a uma inflação mais alta como resultado do envelhecimento demográfico e dos choques negativos de oferta decorrentes da ruptura sino-americana.
Se as principais economias passarem por uma recuperação em forma de W ou U, haverá cicatrizes duradouras. A redução nas despesas de capital reduzirá o potencial de produção para sempre, e os trabalhadores que passarem por longos períodos de desemprego ou subemprego serão menos empregáveis no futuro. Essas condições, então, alimentarão uma reação política do novo “precariado”, minando potencialmente ainda mais o comércio, a migração, a globalização e a democracia liberal.
As vacinas contra a covid-19 não vão amenizar essas formas de sofrimento, mesmo que possam ser administradas de forma rápida e equitativa a 7,7 bilhões de pessoas no mundo. Mas não devemos apostar nisso, dadas as demandas logísticas (incluindo armazenamento refrigerado) e o aumento do “nacionalismo vacinal” e o medo das vacinas alimentado pela desinformação entre o público. Além disso, os anúncios de que as principais vacinas são mais de 90% eficazes foram baseados em dados preliminares incompletos. De acordo com cientistas que consultei, teremos sorte se a primeira geração de vacinas para a covid-19 tiver até 50% de eficácia, como é o caso das vacinas anuais contra a gripe. Na verdade, cientistas sérios estão manifestando ceticismo sobre as alegações de 90% de eficácia.
Pior, há também o risco de que, no final de 2021, os casos de covid-19 aumentem novamente à medida que as pessoas “vacinadas” (que ainda podem ser vetores de contágio e não estão verdadeiramente imunes) comecem a se envolver em comportamentos de risco, como aglomerações em ambientes fechados, sem máscaras. De qualquer modo, se a vacina da Pfizer for supostamente a chave para nossa salvação, por que seu CEO se desfez de milhões de dólares em ações no mesmo dia em que sua empresa anunciou os resultados dos testes inovadores?
Finalmente, há o grande evento político de 2020: a eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos. Infelizmente, isso não fará muita diferença para a economia, porque a obstrução por parte dos republicanos no Congresso impedirá os Estados Unidos de implementar o tipo de estímulo em grande escala que a situação exige. Nem Biden será capaz de gastar substancialmente em infraestrutura verde, aumentar impostos sobre corporações e os ricos, ou aderir a novos acordos comerciais como o sucessor da Parceria Transpacífica. Mesmo que os Estados Unidos estejam prontos para voltar a aderir ao acordo climático de Paris e consertar suas alianças, o novo governo será limitado naquilo que pode realizar.
A nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China continuará a se intensificar, levando potencialmente a um confronto militar sobre Taiwan ou o controle do Mar do Sul da China. Independentemente de quem está no poder em Pequim ou em Washington, a “Armadilha de Tucídides” foi lançada, preparando o cenário para um confronto entre a hegemonia estabelecida, porém enfraquecida, e a nova potência ascendente. Conforme a corrida para controlar as indústrias do futuro se intensificar, haverá ainda mais desencontro de dados, informações e fluxos financeiros, moedas, plataformas de pagamento e comércio de bens e serviços que dependem de 5G, AI/ML, big data, a internet das coisas, chips de computador, sistemas operacionais e outras tecnologias de ponta.
Com o tempo, o mundo estará firmemente dividido entre dois sistemas concorrentes — um controlado pelos Estados Unidos, pela Europa e por alguns mercados emergentes democráticos; o outro controlado pela China, que então dominará seus aliados estratégicos (Rússia, Irã e Coreia do Norte) e uma ampla gama de dependentes mercados emergentes e economias em desenvolvimento.
Entre a balcanização da economia global, a ameaça persistente de autoritarismo populista em meio ao aprofundamento da desigualdade, a ameaça do desemprego tecnológico liderado pela inteligência artificial, crescentes conflitos geopolíticos e desastres humanos cada vez mais frequentes e graves causados pela mudança climática global e pandemias zoonóticas (que são causadas em parte pela destruição de ecossistemas animais), a próxima década será um período de fragilidade, instabilidade e, possivelmente, caos prolongado. O ano de 2020 foi apenas o começo.
Nouriel Roubini é CEO da Roubini Macro Associates, apresentador do programa "Nouriel Today" e professor na Stern School of Business, da Universidade de Nova York (do Project Syndicate, 2020, www.project-syndicate.org)
Tradução de Anna Maria Dalle Luche