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Retomada do ativismo das torcidas argentinas preocupa Milei

Torcedores argentinos, que se opuseram a governos em períodos democráticos e na ditadura, ocupam vácuo deixado pela oposição

Javier Milei, presidente da Argentina, durante discurso em dezembro (Nicolas Garcia/AFP)

Javier Milei, presidente da Argentina, durante discurso em dezembro (Nicolas Garcia/AFP)

Agência o Globo
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Publicado em 23 de março de 2025 às 11h01.

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Em 24 de outubro de 1981, quando a Argentina ainda vivia uma das ditaduras mais violentas de sua História (1976-1983), torcedores do time Nova Chicago desafiaram o regime militar cantando a marcha peronista durante um jogo contra o Defensores de Belgrano.

O hino do Partido Justicialista (PJ), cujo líder era o general Juan Domingo Perón — eleito três vezes presidente e morto em 1974, em seu terceiro mandato —, havia sido proibido pelos militares. No dia seguinte, em sua primeira página e com destaque, o jornal Clarín informava: “Incidentes e presos num estádio de futebol: polícia deteve 49 pessoas no Nova Chicago por cantar a marcha peronista.”

O episódio, lembrado nos últimos dias por manifestantes que participaram dos protestos contra o governo de Javier Milei ao lado de aposentados, é um dos muitos exemplos na História do país que ilustram o vínculo entre futebol e política.

O impacto social do ajuste imposto pelo governo argentino — o maior dos últimos 60 anos — levou torcedores de futebol a ocuparem um vazio deixado pela oposição, ainda desarticulada e sem capacidade de capitalizar os problemas que começam a surgir no horizonte da Casa Rosada.

Líder inesperado

Nas últimas semanas, a aliança entre aposentados e torcedores conseguiu convocar duas grandes marchas contra o ajuste de Milei. E na última quinta-feira, sob forte pressão das ruas, a Central Geral de Trabalhadores (CGT) convocou a terceira greve geral contra o governo, que acontecerá no dia 10 de abril.

A origem da união foi o depoimento de um torcedor do clube Chacarita. Em entrevista a um canal de TV local, o aposentado Carlos explicou por que estava na rua protestando, vestindo uma camiseta de seu time de futebol. A imagem viralizou e levou torcedores do Chacarita a se organizarem, contagiando apoiadores de outros clubes.

— Estávamos marchando toda quarta-feira e sempre éramos reprimidos pela polícia. Bater num aposentado que protesta porque está vivendo na pobreza é inadmissível. Cortaram minha mão quando eu ajudava um colega de 82 anos — disse o aposentado ao GLOBO durante a marcha da última quarta-feira, que contou com o apoio de movimentos sociais diversos, sindicatos e organizações da sociedade civil.

Num país no qual os idosos — chamados popularmente de “abuelos”, que significa avós — são considerados parte essencial das famílias, os ataques aos aposentados despertaram uma sociedade que, até agora, parecia adormecida diante dos problemas diários causados pelas medidas econômicas adotadas para estabilizar uma economia que há décadas vive de crise em crise.

E esse despertar não teria acontecido sem a participação das torcidas.

— A torcida do Chacarita me viu e disse: chega. Vieram defender os avós, e ocupamos, todos, um espaço que estava vazio. Mas a culpa é do governo, que nos reprimia de forma vergonhosa — acrescenta Carlos que, como todos os entrevistados nesta reportagem, preferiu não revelar seu sobrenome.

Em 2018, quando o governo do presidente Mauricio Macri (2015-2019), que foi presidente do Boca Juniors, começava a enfrentar problemas econômicos que acabaram levando à sua derrota nas eleições de 2019, a torcida do San Lorenzo escreveu uma música contra o chefe de Estado. Um dos trechos da letra dizia: “Você chegou ao governo com mentiras, endividou toda a Argentina. Com os meios de comunicação e o controle do Estado roubou dos aposentados.” Uma das medidas mais questionadas de Macri foi justamente sua fracassada reforma da Previdência.

Peronismo em baixa

Quando o governo do ex-chefe de Estado entrou em crise, o peronismo ainda estava forte e, aliado ao kirchnerismo, conseguiu voltar ao poder. Mas, agora, a situação é outra: peronismo e kirchnerismo estão em baixa e, mesmo que consigam algumas vitórias nas legislativas de 26 de outubro, ainda parece distante um cenário no qual seus dirigentes, entre eles a ex-presidente Cristina Kirchner, sejam capazes de desafiar a popularidade de Milei, atualmente em torno de 45% e 46%.

Com esse panorama ainda sombrio para a oposição, o futebol, como em outras épocas, ganhou espaço.

— Muita gente me pergunta quais são os próximos passos. A única coisa que falta na Argentina é que a torcida do Chacarita se torne um partido de oposição — diz Alejandro, que promoveu a primeira participação de torcedores na marcha dos aposentados. — O futebol é hoje o que mais nos une.

Militantes

Num país no qual o futebol é uma paixão nacional, o despertar das torcidas representa uma novidade que preocupa o governo. Após a repressão exercida contra os manifestantes na marcha de 12 de março, Milei responsabilizou grupos de barras bravas (os hooligans argentinos) pela violência, pediu o afastamento da juíza Karina Andrade, que ordenou a libertação de 114 detidos alegando falta de provas, e a prisão, posteriormente, de 29 pessoas.

Mas, na visão do sociólogo Pablo Alabarces, professor de Cultura Popular na Faculdade de Comunicação da Universidade Nacional de Buenos Aires (UBA), chamar aqueles que apoiaram os aposentados de violentos é um equívoco.

— A convocação para participar da marcha dos aposentados foi feita por outra categoria que existe há mais de 20 anos e chamamos de “torcedores militantes”. São grupos que militam em seus clubes e que, inclusive, têm relações tensas com os barras bravas, basicamente porque defendem sua autonomia em relação aos negócios clandestinos entre eles, os políticos e a polícia.

Esses grupos, acrescenta o sociólogo, “passaram a ter visibilidade desde 2016, quando foi criada a Associação de Torcedores, para se opor a projetos de Macri”.

Nos clubes de futebol argentinos, a política está sempre presente, comentam os aposentados Raul, Miguel, Susana e Cecilia. Para eles, pensar que os barras bravas seriam solidários com os aposentados é desconhecer o funcionamento das torcidas organizadas.

— Muitos times têm comissões de direitos humanos — afirma Raul.

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