Mães ativistas e estudantes em protesto no Senado americano, nesta quinta-feira, 26: poucas chances de que Congresso passe restrições a armas (Chip Somodevilla/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 26 de maio de 2022 às 16h49.
Última atualização em 26 de maio de 2022 às 23h24.
O roteiro já é conhecido nos Estados Unidos. Um massacre violento ocorre, muitas vezes em escolas com crianças e adolescentes, perpetrado por atiradores solitários e que deixa vítimas fatais. O país em luto entra então em um ferrenho debate sobre como — e se — as autoridades poderiam fazer algo mais para impedir novos ataques. As discussões acontecem, mas pouco muda, e novas tragédias se repetem tempos depois.
Nesta semana, o ataque que deixou 19 crianças e duas professoras mortas na Uvalde Elementary, escola de ensino fundamental da cidade de mesmo nome no Texas, abriu novo capítulo da discussão sobre legislação de armas nos EUA.
Mas com o país às vésperas de eleições legislativas em novembro, a expectativa é baixa de que o Congresso americano aprove mudanças significativas.
“Por favor, por favor, por favor, caramba. Coloquem-se no lugar desses pais pelo menos uma vez!”, pediu o senador Chuck Schumer, líder da maioria do Partido Democrata no Senado, após o atentado.
Schumer tenta fazer com que a oposição republicana na Casa aceite discutir maiores restrições à compra de armas nacionalmente, como implementando uma checagem de antecedentes mais rigorosa dos compradores.
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Já o senador republicano Ted Cruz, do Texas, disse que democratas têm “politizado” o assunto e que o foco deveria ser em colocar policiais armados na porta das escolas. “Não queremos tirar os direitos dos cidadãos cumpridores da lei”, concordou o senador John Barrasso, de Wyoming, também republicano.
O massacre no Texas foi um dos mais de 200 tiroteios ocorridos só em 2022 nos EUA. As vítimas tinham entre 10 e 11 anos, e estavam a dias de entrar em férias de verão.
Esse foi também o mais mortal ataque em uma escola desde Sandy Hook, em 2012, quando um atirador matou 26 pessoas, a maioria crianças, em Newtown, Connecticut. Só no mês de maio, entre massacres em escolas e outros locais, mais de 40 pessoas morreram nos EUA. Os dados são da Gun Violence Archive, que contabiliza os episódios.
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A carnificina em Uvalde, uma pequena cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, acontece semanas depois de um atirador de 18 anos abrir fogo contra clientes de um supermercado em Buffalo, no estado de Nova York. O ataque deixou dez mortos. O caso, em uma comunidade majoritariamente negra, foi classificado como “terrorismo doméstico” e já vinha ressuscitando os debates sobre regras armamentistas nos EUA.
Há duas semanas, o presidente Joe Biden, também democrata, visitou Buffalo e pediu que o Congresso avance na legislação.
Nesta semana, após o ataque em Uvalde, ele voltou a falar sobre o tema. “Por que estamos dispostos a viver com essa carnificina?”, questionou, chamando o caso de “simplesmente doentio” e criticando nominalmente a NRA, associação de rifles e que financia a campanha de uma série de políticos americanos.
Um grupo de mães fez um protesto em frente ao Senado nesta semana, com a participação de políticos democratas. “Nossas crianças têm de ser corajosas porque nossos senadores são covardes”, dizia um cartaz de uma das mães manifestantes.
Protestos também são esperados em Houston, no próprio Texas, onde a NRA realiza sua conferência anual nesta semana.
A lei para posse e porte de armas nos EUA é uma das mais permissivas do mundo graças à segunda Emenda da Constituição, que assegura que “o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido”.
A partir desse ponto central na Carta Magna, cada estado tem autonomia para decidir o quão rigorosas serão as leis para venda de armas. O tema tende a ser altamente polarizador nos EUA. Estados conservadores e de maioria republicana têm legislação mais branda, enquanto estados progressistas e de maioria democrata colocam mais restrições aos potenciais compradores.
Ativistas anti-armas pedem regras nacionais, que não fiquem somente a cargo dos estados.
No momento, o principal texto em discussão é um projeto já aprovado na Câmara, que tem maioria democrata. O projeto tornaria mais rigorosa a checagem de potenciais compradores de armas no mercado privado.
O texto está parado no Senado. A casa é hoje dividida entre 50 senadores republicanos e 50 democratas, além do voto de minerva da vice-presidente, Kamala Harris. Para que a lei passe, é preciso de 60 votos, devido ao mecanismo chamado de “filibuster” nos EUA.
Outra proposta em discussão é estabelecer uma chamada “bandeira vermelha” que proibiria que indivíduos com problemas mentais ou que pareçam oferecer risco à sociedade tenham armas.
Essas duas pautas têm algum apoio majoritário entre a população. 70% dos republicanos e 92% dos democratas são a favor de checagem mais ampla, e 85% dos republicanos e 90% dos democratas apoiam que pessoas com problemas mentais não possam comprar armas, segundo pesquisa de 2021 do Pew Research Center.
Também há propostas, ainda mais difíceis de serem aprovadas, para tornar mais rigorosa a venda de rifles e armas automáticas, como as usadas no massacre no Texas.
Os EUA têm uma das maiores concentrações de armas no mundo. Há mais de uma arma por pessoa no país, segundo a base de dados Small Arms Survey.
A proporção de mortes ligadas a armas nos EUA é muito superior à de outros países desenvolvidos. Por isso, ativistas anti-armas citam com frequência o caso da Austrália, que proibiu compras de armamentos pesados por civis e aumentou a regulação no comércio de armas. A taxa de homicídio australiana despencou.
Quatro em cada dez adultos americanos dizem viver numa residência com armas, segundo outra pesquisa do Pew Research Center. Republicanos (44%) e homens (39%) são os que mais responderam que pessoalmente possuem uma arma.
Desde Columbine, em 1999 (quando 13 pessoas foram mortas numa escola de ensino médio, um dos marcos da história de atentados a escolas), estima-se que mais de 200 mil alunos nos EUA já tenham sido impactados pela violência armada.
Além dos atentados de fato, há constantes treinamentos e ameaças não concretizadas de tiroteios, o que faz com que as crianças americanas convivam com a temática desde muito cedo.
As tragédias tiveram alguma pausa na pandemia, com as escolas fechadas, mas têm, infelizmente, voltado a ser notícia. Nesta semana, o FBI, agência de inteligência americana, publicou um relatório em que mostra que o número de ataques ativos a tiros em escolas subiu 52% em 2021 em relação ao ano anterior.
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O debate não é novo. No ataque massivo em Sandy Hook, o então presidente democrata Barack Obama (de quem Biden foi vice) havia tentado pressionar o Congresso a passar legislações nacionais sobre armas. Mas as medidas não avançaram.
Anos depois, outro ápice do movimento anti-armas nos EUA veio em 2018, após um atentado que deixou 18 mortos na escola de ensino médio Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, na Flórida. Na ocasião, sob governo do ex-presidente republicano Donald Trump, protestos massivos a favor de mudanças nacionais ocorreram em centenas de cidades dos EUA, organizados pelos próprios estudantes.
Anos depois, novamente a pressão da opinião pública aumenta, e os embates entre os dois lados se seguirão à tragédia de Uvalde. Mas será difícil que algo mude nos Estados Unidos por ora.