Protesto contra os Jogos de Inverno de Pequim em Taiwan: Estados Unidos convocaram boicote diplomático ao evento (Ceng Shou Yi/NurPhoto/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 3 de fevereiro de 2022 às 19h03.
Última atualização em 4 de fevereiro de 2022 às 12h20.
Era agosto de 2008 quando o médico belga Jacques Rogge ficou em pé no lotado estádio "Ninho de Pássaro" chinês. “Por um longo tempo, a China sonhou em abrir suas portas e convidar os atletas do mundo a Pequim para os Jogos Olímpicos. Nesta noite, esse sonho se torna realidade. Parabéns, Pequim!”, declarou o então presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI). Momentos depois, um orgulhoso Hu Jintao, então presidente da China, daria início oficial aos Jogos, ao lado de uma centena de líderes mundiais presentes — do ex-presidente americano George W. Bush ao brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. A cerimônia daquela noite, que estima-se ter custado US$ 100 milhões para produzir apresentações mostrando a história milenar chinesa, é até hoje considerada uma das mais grandiosas da história dos Jogos.
É em um cenário muito diferente que a mesma cidade de Pequim (ou Beijing, no nome em mandarim) dá nesta semana o pontapé à sua segunda Olimpíada em casa, os Jogos Olímpicos de Inverno.
A competição começou já nesta quinta-feira, 3, com partidas na madrugada brasileira, e se estende até o dia 20 de fevereiro. Com estimativa de terem custado mais de US$ 38 bilhões (dez vezes acima das projeções iniciais), os Jogos de Pequim 2022 acontecem com o mundo ainda preocupado com a covid-19, sem turistas presentes e uma China anfitriã que se torna cada vez mais uma potência global — posto que era ainda distante em 2008.
“Essa não é mais a China em ascensão, uma nação em desenvolvimento com a esperança de algum dia se juntar às potências. É, em vez disso, a China “ascendida”, um poderoso competidor e com suas ambições”, afirma Joe Renouard, professor residente do centro conjunto de Estudos Internacionais da Universidade Johns Hopkins e da Universidade de Nanjing, na China.
No mais claro reflexo desse novo momento geopolítico, a presença de George W. Bush na Olimpíada de 2008 contrasta com a ausência de Joe Biden em 2022. O atual presidente americano decretou um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno, seguido por países como Austrália, Canadá, Índia e Reino Unido.
Os atletas ainda podem participar da competição, fazendo desta uma medida mais branda do que os boicotes da guerra fria em Moscou 1980 e Los Angeles 1984, quando atletas americanos e soviéticos não competiram na casa do rival.
Do outro lado, visitam Pequim para a Olimpíada nomes como o presidente russo Vladimir Putin — que viajou à China para a cerimônia de abertura e um encontro com Xi Jinping, em meio à tensão com as potências ocidentais na fronteira da Ucrânia. A China tem sido discreta na lida com a crise ucraniana. Mas o conflito no leste europeu mostrará quanto o Ocidente está disposto a arriscar para defender aliados, o que respinga no caso de Taiwan, lembrou em entrevista anterior à EXAME o professor Maurício Santoro, do departamento de relações internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Além da Rússia, estão confirmados na abertura antigas repúblicas de influência soviética, como o Cazaquistão, e árabes, como o Catar. Da América Latina, região onde a China é a maior parceira comercial de muitos países, comparecem o presidente argentino, Alberto Fernández, de centro-esquerda, e o equatoriano Guillermo Lasso, de centro-direita. O diretor das Nações Unidas, António Guterres, assim como o chefe da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, também estão na lista de confirmados.
Já os principais países da União Europeia, que por vezes tentam se mostrar no meio do caminho nos embates sino-americanos, não aderiram oficialmente ao boicote mas também não enviaram representantes à abertura dos Jogos, com exceção da Itália e da Polônia.
“É um cenário em que a lista de quem vai ou não aos Jogos diz muito. O boicote americano acontece em um momento de guerra que não é só comercial, mas tecnológica e de narrativa”, diz Isabela Nogueira, coordenadora do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A Olimpíada de 2008 aconteceu em momento de emergência dos BRICs (grupo que incluía também Brasil, Rússia, Índia e África do Sul), quando a China entrava de vez no jogo da globalização. E os números desde então são impressionantes: a economia do país foi de US$ 4,6 trilhões em 2008 a US$ 18 trilhões em 2021, sendo também a única grande a crescer no pior momento da pandemia (apesar de desaceleração recente).
Desde 2008, a classe média chinesa passou de 3% para mais de 50% da população, enquanto a penetração de internet rápida foi de 20% para mais de 70% do país. Os trens de alta velocidade, que começavam a surgir para a Olimpíada de 2008, saíram de 73 para mais de 24 mil quilômetros construídos. As empresas chinesas, antes conhecidas pela mão de obra barata e manufatura de baixo valor agregado, se tornaram algumas das maiores do mundo — liderando em tecnologias de fronteira, como no disputado 5G.
“Hoje, a China não quer mais só ser aceita. Quer também convencer os outros países de assimilar padrões chineses, produtos chineses, tecnologia chinesa. Do ponto de vista do soft power, essa é uma dimensão importante da projeção do poder internacional de um país", completa Nogueira.
Pequim foi escolhida sede dos Jogos de Inverno ainda em 2015, quando o hoje presidente Xi Jinping estava no poder há somente dois anos.
A Olimpíada no gelo pode ser pouco popular entre os brasileiros, com esportes difíceis de serem praticados no clima tropical. Mas, globalmente, incluindo nos países desenvolvidos ao norte, os Jogos estão entre os mais importantes. A audiência na última edição (em Pyeongchang, na Coreia do Sul) chegou a 2 bilhões de pessoas no mundo, e US$ 1,5 bilhão em receita só para o COI, além de outros recursos de patrocínio a delegações e atletas.
Apesar disso, enquanto a primeira Olimpíada de Pequim foi vista como um acerto da China em 2008 — inclusive para a imagem global do país —, o resultado político da competição neste ano divide opiniões.
Jean Cabestan, pesquisador sênior do Centro Nacional de Pesquisa Científica Francês (CNRS) e autor do livro China Tomorrow: Democracy or Dictatorship? ("China amanhã: democracia ou ditadura?", numa tradução livre), acredita que a imagem chinesa já foi “negativamente afetada em meio às crescentes infrações contra os direitos humanos”.
A repressão a opositores foi ampliada com um estilo centralizador do governo Xi na comparação com o antecessor Hu Jintao, assim como a interferência em Hong Kong, a situação em Taiwan e as ações contra a minoria uigur. Na outra ponta, a própria ascensão da China no cenário internacional colocou o país como maior alvo de atenção (e críticas) de potências rivais. Tudo somado, uma pesquisa do Pew Research Center, dos EUA, aponta que as visões negativas sobre a China atingiram máximas históricas dentre a população de países ocidentais, incluindo na Europa — onde, na década passada, a visão favorável superava a negativa em vários países, na mesma pesquisa.
“As Olimpíadas não vão mudar isso, nem que sejam perfeitamente organizadas”, diz Cabestan.
A expectativa chinesa no ano passado era de que os Jogos de 2022 marcassem ainda alguma volta à normalidade pós-covid. Com o avanço da vacinação globalmente e quase 90% da população chinesa vacinada, a Olimpíada deste mês tinha tudo para celebrar um ambiente muito mais otimista do que nos Jogos de Verão, sediados no Japão (histórico rival chinês) sem torcida e turistas.
A ômicron estragou os planos. A China tem precisado promover quarentenas em partes do país para tentar evitar surtos de casos antes dos Jogos. Atletas e jornalistas ficarão, novamente, em “bolhas” para evitar contágios.
Uma das cartas na manga da China frente ao Ocidente, e que o governo esperava mostrar durante os Jogos, são seus números de combate à covid. No acumulado da pandemia, o país tem menos de 5 mil mortes, um número impressionante frente aos 1,4 bilhão de habitantes. São 800 mil vítimas nos Estados Unidos, 900 mil no conjunto da União Europeia e mais de 600 mil no Brasil, além de milhões de infectados.
A política chinesa de “covid zero”, que busca reduzir amplamente o número de casos, foi em alguma medida usada também em outros países, como Austrália, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Japão e Vietnã, sobretudo antes das vacinas.
Mas com o avanço da ômicron, tem sido difícil seguir mantendo o número de casos baixo. Nas semanas que antecedem aos Jogos, foram promovidas quarentenas rigorosas — o chamado lockdown — em algumas regiões chinesas, como o isolamento de 13 milhões de pessoas em Xi’an.
Assim, já se discute na China que, talvez, a tolerância aos contágios precise ser maior, como outros países têm feito. O tema deve estar presente amplamente nos Jogos. Mais de 50 pessoas envolvidas na competição foram diagnosticadas com covid-19 antes mesmo da abertura, segundo informe de 2 de fevereiro, e o número só tende a aumentar.
“A covid ainda é um grande tema na China”, explica Nogueira, do LabChina. “A primeira imagem que a China passou para o mundo sobre a pandemia foi de completa desorganização, uma série de trapalhadas naqueles primeiros dias em 2020. Depois, reverteram isso e conseguiram controlar a doença mais do que no exterior”, diz.
Por outro lado, lembra a pesquisadora, também há questionamentos sobre medidas de vigilância — como uso de localização por smartphones e uma certa “distopia” no controle da pandemia via tecnologia. "Ou seja, o balanço geral é positivo, de um país que conseguiu conter a pandemia em proporções gigantescas. Mas que também está sendo obrigado a fazer exercícios de autocrítica", resume.
Da Olimpíada ao debate sobre a covid zero, tudo acontece ainda a poucos meses do Congresso do Partido Comunista, em outubro. É dado como certo que o presidente Xi Jinping se manterá no cargo por pelo menos mais cinco anos, após alterações na Constituição que o permitem ter novo mandato. Ainda assim, com a crescente importância da China na economia mundial, a reunião será observada com atenção pelo resto do mundo, por definir as diretrizes chinesas para os próximos anos.
Renouard, do centro Hopkins-Nanjing, lembra que a Olimpíada deve interferir pouco na política interna chinesa, ainda que seja bem-sucedida e sem grandes transtornos. Os boicotes diplomáticos também devem ter pouco impacto na prática. "Como o resto do mundo não se uniu aos boicotes desta vez, as declarações diplomáticas acabam não sendo mais que uma irritação 'simbólica'", diz. Mas, na relação com o exterior, há uma inegável preocupação com possíveis incidentes, como declarações políticas dos atletas ou protestos, "especialmente se houver críticas públicas vocais”, diz o professor.
Se em 2008 a China sediou a Olimpíada pela primeira vez com o objetivo de se abrir ao mundo, agora, chega aos Jogos com uma inquestionável trajetória de sucesso econômico, mas mais fechada do que há uma década — e com questionamentos ainda fortes sobre seu futuro. Como em todos os eventos esportivos globais, a política e as disputas de poder serão pano de fundo enquanto atletas patinam, esquiam e correm a toda velocidade na neve em Beijing.