PONTE EM GIRONA: o amarelo símbolo da Catalunha vai ficando mais presente à medida em que nos aproximamos da cidadezinha (Juan Medina/Reuters)
Da Redação
Publicado em 23 de dezembro de 2017 às 10h03.
Última atualização em 23 de dezembro de 2017 às 10h03.
Girona — À medida que o trem avança na direção de Girona, a paisagem vai ficando mais amarela. Não só pelas folhas das árvores ressequidas pelo outono, mas principalmente porque o amarelo é a cor da Catalunha, que colore as bandeiras nos prédios, os cartazes nos postes e os laços presos com um alfinete nos sobretudos de muitos transeuntes.
Girona é o reduto dos separatistas, onde Carles Puigdemont nasceu — em Amer, no interior da província —, foi jornalista e finalmente deputado e prefeito da capital de mesmo nome, entre 2011 e 2016. Em janeiro daquele ano, o Parlamento elegeu Puigdemont presidente da região da Catalunha, com o mandato de levar adiante o processo de independência.
Destituído pelo governo central espanhol ao declarar a independência depois da vitória do “sim” no plebiscito de 1.º de outubro, Puidgemont acompanhou a vitória dos separatistas nas eleições catalãs de quinta-feira de Bruxelas, onde se refugiou para escapar da ordem de prisão pelo crime de “rebelião”, que prevê até 30 anos.
O homem que empurrou a antiga luta por mais autonomia na Catalunha para uma reivindicação praticamente sem volta de independência, e deu-lhe visibilidade mundial, é um líder improvável, com pouco carisma, que chegou à presidência quase por acaso.
Puidgemont ganhou notoriedade em 1992, durante os Jogos Olímpicos de Barcelona. O juiz Baltasar Garzón, que mais tarde ficaria mundialmente famoso ao ordenar a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, mandou prender integrantes do grupo separatista catalão Movimento de Defesa da Terra (MDT), que planejavam atentados terroristas durante os Jogos.
Na época editor-chefe do jornal Le Punt, de Girona, Puidgemont lançou uma campanha pela libertação dos presos, que chegaram a 45, incluindo outros ativistas e até jornalistas da publicação por ele comandada. Com isso, o jornalista, que desde criança acalentava o sonho de uma Catalunha independente, converteu-se numa espécie de herói dos separatistas.
Mas Puidgemont entraria para a Generalitat, o governo regional catalão, apenas em 1999, como diretor da Agência Catalã de Notícias, cuja criação ele mesmo propôs. Também com verbas do governo catalão, ele criou a revista em inglês Catalonia Today, dirigida por sua mulher, a jornalista e intérprete romena Marcela Topor.
Em 2002, ele se tornou diretor da Casa de Cultura de Girona, por indicação do então presidente da assembleia legislativa da província, Carles Pàramo, do tradicional partido catalão pró-autonomia Convergência e União (CiU), que depois de sucessivos escândalos de corrupção seria rebatizado Partido Democrata Europeu da Catalunha (PDeCAT) e, finalmente, este ano, Juntos pela Catalunha.
Em 2006, ele se elegeu deputado regional pela (CiU), em 2011, prefeito de Girona e, em 2016, presidente do governo da região, o que corresponde no Brasil ao cargo de governador.
No ambiente extremamente polarizado da Catalunha depois do plebiscito e da intervenção, a imagem que os moradores de Girona têm de Puigdemont depende de que lado eles estão. Os separatistas o vêem como um homem honesto e acessível, que se entregou à causa da independência. Os que preferem continuar cidadãos da Espanha questionam sua capacidade intelectual, criticam seu oportunismo e o consideram manipulado por radicais e saqueadores dos cofres públicos.
A independência se tornou um traço tão forte de divisão que está acima das ideologias de esquerda e de direita. Puidgemont e seu partido, Juntos pela Catalunha, são considerados de direita. No entanto, os separatistas de esquerda, embora votem em outros partidos que também defendem a independência, nutrem simpatia por ele, por ter levado adiante a causa.
É o caso da assistente social Gemma Vidal, de 46 anos, e do músico Ignasi Marco, de 45. “Somos toda vida a favor da independência, em princípio por razões sentimentais, mas depois vimos que estamos sendo estafados pelos políticos espanhóis em geral”, diz Vidal, que trabalha para a entidade católica Caritas.
A Catalunha representa 20% do PIB da Espanha e 16% da população. Os separatistas afirmam que a região arrecada 23% dos impostos do país e recebe apenas 9% em receitas, uma diferença de 16,5 bilhões de euros ao ano. “A Espanha nos rouba”, é um de seus lemas preferidos. O governo central e os unionistas contestam esses números.
Vidal é há muito tempo eleitora do partido anarquista de extrema esquerda Candidatura da Unidade Popular (CUP). Marco votava antes pela Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), menos radical que a CUP. Entretanto, diz que, depois do “Procés”, como é chamado o plebiscito, reprimido pela polícia espanhola, seguido da declaração da independência, que resultou na intervenção do governo central, ele decidiu também votar na CUP na quinta-feira.
“Nunca votamos nesse partido, porque não gostamos da direita”, disse o casal, referindo-se à legenda de Puidgemont. Para apoiar a coalizão em 2016, a CUP exigiu a cabeça de Artur Mas, então líder do PDeCAT. Herdeiro de uma fábrica têxtil, e de uma família que séculos atrás teria explorado a escravidão, Mas é considerado “aristocrata” pela esquerda. Foi graças a isso que Puidgemont se tornou líder do PDeCAT e presidente do governo catalão.
“Ainda que não compartilhemos as ideias dele, vemos que é uma pessoa honesta”, diz o casal. Eles elogiam também o fato de que Puidgemont foi um prefeito muito próximo: “A gente encontrava com ele na feira comprando frutas. Ele passava por nós e nos cumprimentava.”
Essa é uma qualidade marcante de Puidgemont. Elena Serra, de 63 anos, funcionária administrativa da secretaria municipal de educação, conta que sua mãe de 88 anos “tem muito carinho por ele” porque uma vez ele a ajudou a descer escadas. “Ele foi jornalista, conhece muito bem os problemas da cidade”, acrescenta.
“Só tenho palavras boas para Puidgemont, embora eu o conheça mais agora do que quando era prefeito”, reconhece sorrindo a veterinária Jessica Galera. “Gosto da forma como ele se entregou ao Procés. O governo da Espanha nunca se comportou bem. Temos que pagar mais impostos e pedágios que todo mundo.”
Galera continua: “Tudo é para os imigrantes. Tenho 33 anos e o governo da Espanha nunca me deu nada. Aos 20, comprei meu apartamento”. Na província de Girona, os estrangeiros registrados — sem contar os ilegais — representam 40% da população. Latino-americanos, asiáticos, africanos e europeus vêm em busca da prosperidade da Catalunha, uma das regiões mais ricas da Espanha.
Como assistente social da Caritas, que atende refugiados, Vidal tem a visão contrária sobre os imigrantes. Mesmo assim, o tema também é um de seus argumentos em favor da separação. Quando se pergunta a ela se não se preocupa em deixar de ser parte da União Europeia (UE), que já deixou claro que não reconhecerá a Catalunha, Vidal responde: “A UE é uma fraude. Não faz nada pelos imigrantes e refugiados. Já sabíamos que era um bando de fascistas”.
Marco complementa: “Há pessoas que já estão acampadas há dois invernos, e eles não dão um passo para acolher esses refugiados. A UE foi criada para ser um lobby, começou como uma questão econômica, não social”.
O desejo da independência realmente se sobrepõe a quaisquer outras preferências ideológicas. O desejo de continuar como parte da Espanha, também. Em Girona é um pouco mais difícil de encontrar anti-separatistas, mas eles existem. Só estão acuados, e preferem que seus nomes não sejam publicados.
O interessante é que eles também se sentem “estrangeiros” na Catalunha, discriminados e menosprezados. O símbolo desse menosprezo está no termo depreciativo usado pelos catalães para se referir aos imigrantes espanhóis e seus filhos: “charnegos”. Em sua origem, a palavra significa “cachorros”.
Uma advogada cuja família é de origem andaluz observa que um dos dois hospitais de Girona se chama Dr. Domènec Martí i Julià, em homenagem a um psiquiatra e líder nacionalista do início do século 20, que dizia que os catalães eram arianos puros e não deviam se casar com espanhóis, porque eles eram burros.
Mesmo tendo vindo com cinco anos de idade para a Catalunha, ela se sente discriminada. Diz que nas novelas exibidas pela TV3, o canal estatal catalão, quando há um personagem malandro ou preso por ter cometido algum crime, fala espanhol. Já as pessoas educadas e boas falam sempre catalão.
Ela sentiu isso na educação de seu filho. Hoje com 20 anos, ele considera que os espanhóis exploraram e prejudicaram os catalães, ao longo da história. “Quando pergunto como e quando, ele não sabe me responder especificamente”, conta a advogada. “Voltaremos a ser ricos quando nos livrarmos dos espanhóis”, repete o rapaz. “Ele já me disse que quando tiver filhos vai falar com eles em catalão. Isso me deixa triste.”
A advogada afirma que seus parentes e amigos em outras partes da Espanha dizem que suas casas estão à disposição para quando quiser ir embora. “Mas aqui é meu lugar. Não vou sair daqui.”
A honestidade de Puidgemont é colocada em dúvida pelos unionistas em Girona. Eles apontam, por exemplo, para as ligações do ex-prefeito e presidente destituído com Josep Maria Matamala, dono de uma papelaria e da empresa que realiza as quatro ferias anuais da cidade, incluindo a das flores, que atrai muitos turistas, nos meses de outubro. Os gironenses especulam que Matamala está pagando a estadia e o advogado de Puigdemont em Bruxelas.
Uma mulher conta que seu filho, que estudou com um filho de Matamala, foi passar um fim de semana na casa de campo da família, na montanha de Montjuic, e que o rapaz abriu uma gaveta cheia de notas de 500 euros e disse: “Pode pegar algumas para você. Meu pai tem muitas”.
A empresa de Matamala se beneficia de contratos com a prefeitura de Girona. Segundo reportagem do jornal El Mundo, Puigdemont foi seu sócio até 2005, quando se lançou a deputado.
A própria escolha do advogado de Puidgemont em Bruxelas, Paul Bekaert, remete os gironenses a suas conexões complicadas. Bekaert foi advogado de terroristas do grupo separatista basco ETA, que se refugiavam na Bélgica para escapar da prisão na Espanha. Acredita-se que um daqueles militantes soltos depois da campanha liderada por Puidgemont no jornal El Punt em 1992, Miquel Casals, esteja por trás da indicação de Bekaert.
Segundo a advogada, o MDT e o Terra Livre, organizações extremistas às quais Casals foi acusado de pertencer, tiveram contato com a ETA.
Um dos alvos dos atentados a bomba seria uma réplica da caravela do Descobrimento da América, considerada pelo grupo um “símbolo do colonialismo espanhol”.
Herdeiro de apartamentos alugados no centro de Girona e funcionário licenciado do governo catalão, Casals é frequentador de um bar chamado Apple Café (mais conhecido como “bar dos chineses”, por causa de seus donos), que fica no térreo do edifício onde ele mora. Frequentadores do bar contam que ele se vangloria, em voz alta, de ter aconselhado Puidgemont a radicalizar no processo da independência, e insinua que o amigo precisa de seus conselhos porque não é muito inteligente. Quando o ex-prefeito visita a cidade, é visto circulando com Casals. As mulheres de ambos são muito amigas. A de Casals é ucraniana. A de Puidgemont, romena, seria também vidente, dizem alguns gironenses, associando-a aos ciganos.
Puidgemont é acusado de ter mentido inicialmente em seu currículo, ao afirmar que tinha estudado filologia catalã e comunicação. Ele não concluiu nenhum curso universitário, e foi trabalhar como jornalista. Para muitos espanhóis, Puigdemont é a encarnação do que os catalães dizem a respeito deles: malandro e pouco instruído.
Fato é que a vitória dos separatistas nas eleições parlamentares de quinta-feira na Catalunha faz com que Puigdemont volte a ganhar força. Suas ideias, e sua visão de Catalunha, vão permanecer vivas e fortes, tal qual uma boa botifarra, o embutido típico de Girona.