(Anadolu Agency/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 10 de junho de 2021 às 06h00.
Última atualização em 10 de junho de 2021 às 20h46.
Eram pouco antes das 11 horas da manhã de segunda-feira, 7, no Peru quando a bolsa de Lima entrou em circuit breaker, a pausa nas operações invocada após quedas muito bruscas. O principal índice financeiro do país caía mais de 7% e o dólar despencava com a matemática que estava aos olhos de todos: Pedro Castillo, candidato autodeclarado de extrema esquerda nas eleições presidenciais do país, estava prestes a superar em número de votos na apuração a ex-congressista de direita Keiko Fujimori.
Castillo, de fato, confirmaria a virada pouco mais de uma hora depois, e desde então, a disputa no país segue voto a voto. O candidato do Perú Libre chegou a cerca de 50,2% dos votos, contra 49,8% de Fujimori, do Fuerza Popular. Enquanto Castillo recebia votos das regiões mais longínquas do país, Fujimori encostava com votos do exterior, e assim, o placar pouco se alterou a cada atualização do Onpe, escritório eleitoral que apura os resultados.
O Peru ainda não tem um vencedor oficial, e entre contagem dos votos e avaliação de eventuais recursos, a espera pode durar dias a fio. Mas aos 51 anos, Pedro Castillo Terrones, o até então quase desconhecido professor de escolas na zona rural peruana, já é símbolo de um movimento inevitável. Independentemente dos resultados, o “candidato dos camponeses” obteve metade dos votos válidos de um Peru que entrou na eleição presidencial profundamente dividido — nas urnas e em todo o resto.
Até esta eleição, a principal aparição de Castillo havia sido liderando uma greve de professores em 2017, já no governo de Pedro Pablo Kuczynski (o PPK). Na ocasião, PPK se enfraquecia diante dos embates com o Congresso amplamente fujimorista, e o movimento de Castillo e dos colegas ganhou projeção nacional. Antes disso, de 2005 a 2017, esteve filiado ao antigo partido de centro-esquerda Peru Posible, do ex-presidente Alejandro Toledo (2001-06), onde disputou somente uma eleição local, que não venceu.
Em uma eleição normal, seria bem provável que um candidato como Castillo não chegasse sequer ao segundo turno. Mas essa não foi uma eleição normal no Peru: o primeiro turno teve nada menos do que 18 candidatos, uma das eleições mais fragmentadas da história recente. O processo eleitoral aconteceu após o país chegar a ter três presidentes no mesmo mês em 2020, em meio a escândalos de corrupção, protestos e impeachment.
Foi neste cenário tumultuado que Castillo surpreendeu ao ser o candidato mais votado no primeiro turno. Na esquerda, a principal aposta era Veronika Mendoza, jovem política de 40 anos e de visões mais moderadas, que por pouco não tirara a vaga da própria Fujimori no segundo turno em 2016. Desta vez, ficou somente em sexto.
“Por não ser visto como o principal nome da esquerda, Castillo foi de certa forma deixado de lado na campanha dos opositores, que miraram em Veronika”, diz o cientista político André Kaysel, especialista em estudos latino-americanos do Departamento de Ciência Política da Unicamp.
Mas isso não explica tudo, diz o professor, que estudou a política peruana do último século. Apesar das visões de igualdade econômica, defesa de estatizações e de aumento de impostos, Castillo não é necessariamente o porta-voz do eleitor de esquerda tradicional. Embora tenha ganhado os votos desse grupo no segundo turno, inclusive se aliando a Mendoza, seu eleitorado se construiu de fato nas áreas mais pobres do Peru.
Castillo nasceu na cidade de Puña, na província de Chota, e vive na mesma região até hoje. O professor é símbolo vivo do tipo de perfil que vendeu ao eleitor peruano. Fora dos holofotes da política institucional por boa parte da vida, se formou em educação na Universidade César Vallejo e fez mestrado em psicologia educacional, começando a lecionar nos anos 1990 na educação primária. Seus pais, Ireño e Mavila, são ambos camponeses analfabetos.
“Sua votação foi, em grande medida, uma autêntica rebelião andina contra Lima e o litoral”, diz Kaysel.
Dentro do campo da esquerda, Castillo está mais próximo dos conservadores nas pautas de costumes. Já fez declarações contra temas como direitos reprodutivos das mulheres e união civil LGBT, caminho que também o ajudou a conquistar votos dos eleitores fora dos grandes centros. Esse discurso deve ficar mais progressista à medida que Castillo costura aliança com alas da centro-esquerda, mas mostra o perfil ambíguo do professor em um país ainda profundamente religioso e conservador.
Sua estratégia fica bem definida em alguns episódios da campanha: em plena era das redes sociais, o candidato do Perú Libre teve uma presença online quase pífia. Escolheu fazer carreatas presenciais pelo país, falava aos eleitores pelo rádio e privilegiou a campanha nas áreas mais pobres — em alguns desses lugares, como na região andina de Cusco, venceu no segundo turno com mais de 80% dos votos.
“O Peru não é um país homogêneo, são vários países. O Castillo vem do Peru rural, produtor agrícola, dos pequenos povoados. Outros políticos, como a própria Veronika, vêm do Peru mais urbano, dos arredores de Lima”, explica Maurício Moura, fundador do IDEIA, instituto especializado em opinião pública, e com experiência em pesquisas eleitorais no Peru. “Castillo representa esse Peru esquecido.”
Castillo e sua ligação com os povos originários o faz ser comparado muitas vezes a Evo Morales, ex-presidente da Bolívia. Seja ou não um "Evo peruano", é fato que sua ascensão pode alterar o equilíbrio de forças na América do Sul, diz Kaysel, da Unicamp. Em linha com movimentos de protestos como na Colômbia e no Chile, o pesquisador avalia que há uma onda de questionamentos ao modelo econômico dos últimos anos. Isso inclui a estratégia anterior de presidentes de esquerda nos anos 2000, que tentaram conciliar crescimento com combate às desigualdades, mas sem alcançar mudanças mais profundas.
“O Peru é um dos países mais ricos da América Latina, com um litoral importante e grande produtor de minérios, e que até hoje tem sido um bastião dos governos mais à direita na região”, diz. “O fato de que esse país pode estar girando à esquerda tem um impacto significativo."
Um símbolo mais crasso dessas possíveis mudanças regionais é a participação do Peru no Grupo de Lima, que defende maior interferência na Venezuela de Nicolás Maduro, e do qual Castillo deve sair se for eleito, como fez Alberto Fernández na Argentina. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer nesta quarta-feira que “perdemos o Peru”, em referência à liderança de Castillo na apuração.
Castillo conseguiu ser o porta-voz de um movimento de insatisfação que já existia no Peru. O mapa eleitoral deste ano, embora ainda não encerrado, se mostra bastante parecido ao de eleições anteriores: há uma alta rejeição ao sobrenome Fujimori nas regiões mais pobres do país, como nos Andes e na Amazônia peruana.
O governo de Alberto Fujimori (1990-2000), pai de Keiko, foi palco de crimes humanitários como a esterilização forçada de milhares de mulheres nas regiões andinas. Nesses lugares, até hoje o fujimorismo segue perdendo eleições.
Somando-se a isso os casos de corrupção que desgastaram sua imagem, Keiko, que está em sua terceira eleição presidencial, teve meros 13% dos votos no primeiro turno.
Com os moderados de fora, a eleição peruana virou, antes de tudo, um duelo de rejeições: quase sete em cada dez peruanos com votos válidos não escolheram nem Castillo nem Fujimori como postulantes para estar na reta final.
“Keiko não seria competitiva no segundo turno novamente contra um candidato de centro, como foi contra PPK na última eleição. E Castillo também teria muita dificuldade de conseguir os votos de 50% da população se não fosse contra Keiko", diz Moura, do IDEIA.
A polarização faz com que o clima seja dos mais instáveis. Fujimori alegou fraude na contagem dos votos, e parte de seus apoiadores já pedem nas redes sociais que o Exército interfira no caso de vitória de Castillo. Nesta quarta-feira, a candidata também questionou a legalidade de ao menos 500.000 votos, que poderiam mudar o rumo da eleição.
Na eleição de 2016, Fujimori já havia acusado fraude, quando perdeu por apenas 0,24% dos votos para PPK. Na ocasião, terminou reconhecendo a derrota. Desta vez, ao que parece, sua campanha deve seguir reforçando as acusações por mais tempo.
Jorge Salas, presidente do JNE, júri responsável por oficializar os ganhadores, tem rechaçado as acusações de Fujimori e disse que são produto de "imaginação febril".
O Peru chegou a fazer testes com urnas eletrônicas, mas a eleição de 2021 foi feita totalmente com voto em papel.
Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) também afirmam que o processo peruano transcorreu dentro da legalidade.
Para Samuel Rotta, da Proética, capítulo da Transparência Internacional no Peru, o cenário é instável, mas as instituições eleitorais do país ainda são vistas como eficientes e gozam de níveis de confiança altos por parte da maioria da população, o que deve garantir uma transição democrática, seja quem for o vencedor.
“As instituições eleitorais têm conseguido manter autonomia frente ao poder político e levar adiante eleições em contextos adversos e caóticos”, diz.
O Ministério da Defesa peruano também disse nesta quarta-feira que seu papel nas eleições se limita a garantir a segurança. O comunicado foi visto como um aceno importante, descartando a possibilidade de algum apoio que impeça a transição democrática.
Se confirmado como vencedor, Castillo tomaria posse no fim de julho, ao lado do novo Congresso eleito. A partir daí, o que se seguiria seria uma grande incógnita, dizem especialistas.
O tom mais radical do candidato no primeiro turno ganhou contornos moderados nas últimas semanas. Após a queda na bolsa de Lima, o chefe da equipe econômica da campanha de Castillo, Pedro Francke, divulgou um comunicado afirmando que, em um eventual governo, seria respeitada a autonomia do Banco Central e outros mecanismos de mercado.
— Pedro Francke (@pedrofrancke) June 8, 2021
No Brasil, analistas compararam o comunicado à "Carta aos Brasileiros" que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, divulgou para acalmar os mercados após vencer as eleições de 2002.
O partido de Castillo também não tem maioria parlamentar, e um eventual governo teria de fazer concessões.
O Congresso no Peru tem poder para votar uma moção de confiança e destituir o gabinete dos presidentes, enquanto o presidente tem poder de destituir o Congresso e convocar novas eleições. Essa modelo levou à queda de PPK e depois de seu vice, Martín Vizcarra, ambos tendo governado em pé de guerra com os congressistas, amplamente fujimoristas na última legislatura. Se não conseguir um acordo, um presidente como Castillo poderia rapidamente estar na mira de um impeachment.
“A aliança somente com a centro-esquerda não é suficiente para tocar uma agenda reformista", diz Moura, do IDEIA. "O Congresso peruano, como o brasileiro, tem um grupo fisiologista. E a grande pergunta é o quanto Castillo estará disposto a abrir mão de algumas pautas para negociar."
A expectativa é que Castillo também busque se consolidar politicamente com apoio externo, por meio de sua base nos movimentos populares.
Por isso, será insustentável se manter caso não cumpra algumas das promessas feitas a seu eleitorado. Com sua campanha tendo o slogan “chega de pobres em um país rico”, um dos temas sensíveis aos eleitores de Castillo foi a maior taxação e regulação a mineradoras atuando no Peru, em áreas como a extração de cobre, uma das principais frentes da economia do país.
Em um país devastado pela crise da covid-19 e pela pobreza, as demandas são urgentes, e buscar um equilíbrio entre as promessas e o possível será um desafio.
“Nestes últimos 30 anos, o Peru cresceu economicamente de forma muito desigual e a população que perdeu -- ou que não ganhou muito -- com o que se conhece de forma vaga como este ‘modelo econômico’ quer se sentir incluída”, diz Rotta, da Proética.
Por esse motivo, a Constituição de 1993, herança do fujimorismo, foi um dos principais alvos de ambos os candidatos na campanha.
Rotta aponta que uma mudança de Constituição tem respaldo popular, mas seria lenta e complicada. “Isso pode levar dois ou três anos, e nesse meio tempo pode acontecer qualquer coisa”, diz.
A pandemia deixou ainda mais clara a lista de insatisfações dos peruanos. Nela está, por exemplo, a ausência de uma rede de proteção social mais ampla em um país em que três em cada quatro trabalhadores são informais. O Peru também não tem um sistema de saúde público como o brasileiro, o que se provou fatal com o coronavírus — o país teve uma das maiores taxas de mortalidade do mundo e total colapso na saúde. “Houve gente vendendo tudo o que tinha para comprar cilindro de oxigênio para os familiares”, diz Kalsey, da Unicamp.
Enquanto isso, a vacinação engatinha: menos de 10% da população recebeu ao menos uma dose da vacina e menos de 4% recebeu a imunização completa. Uma das promessas de Castillo durante a campanha foi acelerar o processo.
O produto interno bruto peruano também caiu 11,2% em 2020. O desemprego está em altas recordes e mais de 3 milhões de peruanos deixaram a classe média diante do empobrecimento do país.
Seja qual for o resultado oficial no Peru, o certo é que um novo líder eleito terá de lidar com o saldo da divisão política profunda e dos desafios econômicos e sociais. Enquanto isso, o país seguirá dividido: entre os que acham que Castillo é uma grande promessa ou um grande fiasco.