Faixa de Gaza: "esta é uma guerra diferente das anteriores", diz médico (Roberto Schmidt/AFP)
Da Redação
Publicado em 26 de agosto de 2014 às 06h28.
Gaza - Vestido de verde, recém saído da sala de cirurgia, Javier Palacios, cirurgião plástico espanhol que trabalha como voluntário no hospital Al Shifa, passeia pelos corredores do principal centro médico de Gaza.
Desde 1994, pelas mãos da organização Médicos do Mundo, pôs seus conhecimentos a serviço da guerra, ou melhor dizendo, para combatê-la, em zonas de conflito como a antiga Iugoslávia, Bósnia, Mauritânia, Indonésia e Congo.
É difícil para ele até mesmo lembrar a quantidade de lugares nos quais encarou a faceta mais cruel do ser humano.
"Felizmente meu hospital na Espanha está comprometido com a ajuda humanitária, e, sempre que os Médicos do Mundo me requisitam, me permite viajar", explica em um escritório da unidade de queimados.
O centro é talvez um dos maiores símbolos do última ofensiva israelense sobre o enclave litorâneo que, ainda em andamento, já deixou mais de 2.100 mortos e 10.600 feridos.
"Com milhares de feridos só nas primeiras semanas, o hospital não colapsou, não acho que outros centros com melhores recursos teriam conseguido dar essa resposta", conta Palacios admirado pela capacidade da equipe para lidar com a situação.
É a segunda vez deste espanhol em Gaza e as circunstâncias de suas viagens são sempre a guerra - a último visita foi em 2008 - e as medidas de segurança impedem que sua rotina vá além da casa ao hospital e vice-versa.
No centro, repete principalmente o atendimento a pessoas que apresentam "perda de substância", detalha, que significa a perda de pele ou músculos devido aos estilhaços.
"Ao contrário de outros feridos bélicos, neste há poucos ferimentos de bala. Em sua maioria são causados por obuses e mísseis, porque não é uma guerra direta", ressalta.
Para seu colega Nafiz Abu Shabar, cirurgião plástico chefe do departamento de queimados, "esta é uma guerra diferente das anteriores".
"Os tipos de ferimentos, a altura na qual ocorrem, como na cabeça, se devem a que Israel está concentrado em atacar casas. Trabalhei durante 30 anos e é a primeira vez que vejo este tipo e número de feridos", destaca Shabar.
"Os músculos absorvem os produtos tóxicos das bombas que passam ao sangue. O fígado se contamina e os pacientes precisam de diálises. Em alguns casos é reversível, em outros têm que continuar com tratamento por toda a vida", descreve.
E se estavam preparados, explica Shabar, é porque já têm experiência em fazer frente a situações como esta com recursos limitados.
"Estamos sós. Os palestinos estamos sozinhos e, se não fazemos isto, ninguém fará. Nos olham como em um filme e falam de nós como números. Somos um campo de treinamento para Israel, que testa o armamento americano contra nossas crianças, contra os civis. É um mundo injusto", protesta.
De cabelos brancos e porte elegante, suas palavras gotejam frustração. "Estamos oito anos sob ocupação. Oito anos sob um estreito bloqueio. Inclusive nossa comida, nossa medicação, tudo está controlado. Como o mundo pode aceitar isto?", denuncia.
A poucos metros, o porta-voz do Ministério da Saúde, Ashraf Al Qedra, sempre impecável em seu roupão branco, não abandonou Al Shifa nos quase 50 dias de ofensiva.
"Meus filhos me pedem para voltar, mas sua mãe lhes conta que não posso", conta este homem pelo qual passam os nomes de cada vítima e ferido para que depois ávidos jornalistas os transformem no que Abu Shabar denuncia: números.
"Acreditamos em nosso trabalho, queremos dizer o que acontece na Palestina para que não se ouça só a versão israelense. Acreditamos que nossa mensagem deve ser escutada", conclui Qedra antes de ser absorvido, de novo, pelo centro que também se transformou em seu lar.