Combatente curdo na linha de frente contra o Estado Islâmico (EI) em Gwar, no norte do Iraque: coalizão internacional de combate ao EI ganhou reforços importantes em 2015 (Ahmed Jadallah/Reuters)
Gabriela Ruic
Publicado em 18 de dezembro de 2015 às 14h58.
São Paulo – Em 2015, o mundo assistiu com atenção os desdobramentos da ameaça que o Estado Islâmico (EI) representa não apenas para o Oriente Médio, mas também para os países ocidentais, como mostraram os atentados em Paris (França) e o massacre na cidade de San Bernardino (Estados Unidos).
Confiando sobretudo em ataques aéreos, a coalizão liderada pelos Estados Unidos ganhou reforços importantes depois que França e Reino Unido decidiram participar dos bombardeios e a Alemanha ter aprovado se juntar à campanha. Há ainda a Rússia, que desde setembro atua na Síria.
O cenário para 2016, contudo, no que diz respeito ao combate aos extremistas, é de incertezas, especialmente sobre como é possível enfraquecê-los e minar as suas influências.
Com isso em mente, EXAME.com conversou com os analistas de conflitos internacionais Rick Brennan e Ghadi Sary sobre quatro pontos em torno dessa ameaça: a atuação da coalizão até agora, a possibilidade do envio de tropas terrestres para Síria e Iraque, o papel da Rússia e como, afinal, o mundo deve combater o grupo.
Brennan é ex-oficial da Força Aérea dos EUA e hoje é cientista político sênior da RAND Corporation, instituição de análises políticas e de assuntos militares com 65 anos de história. Sary é analista do Programa de Estudos em Oriente Médio e Norte da África da Chatham House, entidade parte do Instituto Real de Relações Internacionais do Reino Unido.
Abaixo, confira o que eles pensam sobre esses assuntos:
Como enxergam os esforços da coalizão internacional até agora?
Rick Brennan:
“A estratégia está indo na direção certa, mas não está indo longe o suficiente ou conta com capacidades suficientes para fazer os danos necessários para destruir o EI. Primeiro, por que há uma falha da administração que diz respeito às restrições impostas à força aérea e que não permitem que ela seja usada em todo o seu potencial.
Segundo, por que a administração está reticente quanto ao envio de tropas terrestres, mas coisas simples como manter controladores aéreos em solo trabalhando com forças especiais poderiam tornar mais eficiente o ataque contra as posições do grupo. E isso é algo que poderia ser facilmente feito posicionando esses controladores com as forças curdas.
Terceiro, creio que houve uma mudança significativa nessa estratégia depois que o presidente Obama autorizou o envio das forças expedicionárias especiais, como nos moldes das forças de operações especiais que atuaram no Iraque a partir de 2004. Esse tipo de capacidade é útil não apenas para ir atrás dos alvos, mas para gerar inteligência para ataques futuros.
A reticência em colocar tropas terrestres na Síria ou no Iraque e a falta de vontade de se usar a força aérea em todo o seu potencial são grandes obstáculos para a coalizão. E vejo esses como os dois pontos mais fracos da estratégia atual. ”
Ghadi Sary:
“Até agora, a estratégia se baseou em ataques aéreos extensos, mirando militantes do alto escalão do grupo e sua infraestrutura e foi possível frear a sua expansão. Apesar do seu início intenso, o EI está hoje em retração, especialmente no Iraque e no norte da Síria, onde perderam largas porções de território. Nada disso teria sido possível sem a intervenção da coalizão internacional.
Contudo, isso abriu o caminho para um novo dilema sobre quem irá substituir o EI uma vez que o grupo seja retirado de uma cidade ou território, enquanto cresce a competição entre facções que o combatem e que têm agendas conflitantes, como os curdos do Iraque, as tribos sunitas, as milícias xiitas, o exército iraquiano ou os curdos da Síria.
Não podemos esquecer que essa competição existia antes de o EI surgir e essas questões nunca foram resolvidas. ”
Por que EUA e OTAN estão tão reticentes em iniciar uma guerra por terra?
Rick Brennan:
“O discurso da administração Obama é de que não se deve colocar soldados em solo, pois o EI usaria isso como ferramenta de recrutamento. Além disso, olha para o que houve no Iraque, onde esteve por quase nove anos, e lembra que ainda há problemas por lá. Se usa essa experiência para justificar que enviar tropas terrestres para Síria ou Iraque não seria eficaz.
Mas esse pensamento falha ao não reconhecer os ganhos significativos que foram feitos contra a rede Al Qaeda na época e que quando as forças dos EUA deixaram o Iraque em 2011, a rede estava enfraquecida e seus remanescentes estavam na Síria.
Na retirada do Iraque, não foram deixadas capacidades suficientes para o treinamento dos soldados e que pudessem também ajudar nos esforços antiterroristas. Tampouco foi construída a inteligência necessária para lidar com essas organizações. Esses são fatores que contribuíram para o surgimento do EI e para a ressurgência da Al Qaeda na região.
A lição, aqui, é a de que há um papel para forças terrestres dos EUA e da coalizão, mas ele não é dominante. Ninguém sugere colocar 100.000, 150.000 soldados em solo, mas 20.000 trabalhando ao lado dos exércitos de países sunitas como Jordânia, Egito ou com os curdos. Esse tipo de parceria poderia ir longe nas tentativas de libertar a região do EI.
Contudo, eu creio que a relutância da administração reside também no fato de que o presidente Obama prometeu acabar com as guerras no Iraque e no Afeganistão. Para ele, finalizar essas guerras significava a retirada das tropas desses países. Só que isso não é encerrar um conflito, mas apenas encerrar a participação dos EUA.
E a questão que deveria ter sido respondida era: o que deixaríamos de legado nesses países se não fôssemos embora de forma responsável? E nossa experiência sugere que a retirada das tropas não foi feita de forma adequada e hoje estamos pagando o preço por isso. “
Ghadi Sary:
“Isso não é tão simples. Primeiro, temos os custos econômicos e logísticos, e mais problemas relacionados aos custos legais e políticos de se ter tropas em terra. Com os governos da Síria e Iraque recusando o envio de tropas, a coalizão teria de conseguir autorização da ONU para prosseguir com a ação. Algo que seria muito difícil considerando vetos da Rússia e da China.
Os Estados Unidos têm experiência em combater essas insurgências desde os tempos em que era presente no Iraque e uma das lições aprendidas é que sem o apoio da população local, que deve estar mobilizada contra esses grupos, os soldados vão obter poucas vitórias quando falamos no contexto de uma guerra urbana moderna. Há benefícios maiores quando falamos em apoiar forças orgânicas como a Força Democrática Síria, o Exército Livre da Síria ou o exército iraquiano, que vem fazendo bons avanços.
O envio de tropas ocidentais ou da coalizão por vias terrestres poderá também incentivar que milícias jihadistas que até agora se opunham ao EI e detinham um posicionamento neutro lutem ao lado dos extremistas com base em argumentos ideológicos. ”
E sobre o envolvimento da Rússia na guerra civil síria e seu apoio ao regime de Bashar Al-Assad?
Rick Brennan:
“Creio que terá um efeito desestabilizador. A Rússia tem feito praticamente nada no que diz respeito ao combate ao EI. Seus esforços estão concentrados somente em atacar as forças de oposição ao regime de Assad.
Temos que enxergar o envolvimento russo como uma tentativa do presidente Vladimir Putin de trazer a Rússia para o cenário global, fazendo com que ela se torne uma potência dominante e que consiga ter o controle e influência sob países como Irã e Síria. Tudo isso é parte da estratégia global de Putin e eu creio que terá consequências negativas para a região. ”
Ghadi Sary:
“A Rússia escolheu a Síria para ser o seu palco internacional e vimos as forças russas usando uma variedade de seu arsenal no combate ao EI, mas telas também têm mirado o Exército Livre da Síria, que se opõe ao regime de Assad. Isso mostra que a Rússia está mais interessada em manter ele no poder que na luta contra o grupo. Se uma solução política não for alcançada em breve, a Síria se tornara um atoleiro para todas as partes envolvidas. ”
Qual seria uma solução sustentável para a ameaça do EI e como o mundo deveria combatê-lo?
Rick Brennan:
“O mundo precisa reconhecer que o problema não é apenas o Estado Islâmico. O EI é um dos vários grupos que adotaram uma visão apocalíptica do pensamento radical islâmico. É uma ideologia que deve ser combatida também no Islã. A rede Al Qaeda é parte disso, o EI é parte disso, mas há ao menos dez outros grupos que também compartilham dessa ideologia.
Essa é uma ameaça a tudo que os países modernos consideram importantes em termos de liberdades. Esses grupos querem impor esse pensamento a todos. Hoje, essa ameaça não é eminente para muitos países, mas a realidade é que esses grupos não enxergam fronteiras.
Então, o mais importante é que o mundo esteja unido contra um inimigo comum que, por sua vez, é contra a forma como todos nós vivemos. Precisamos trabalhar com a comunidade islâmica para exorcizar esse tipo de pensamento radical. “
Ghadi Sary:
“Desafiar a ideologia e o apoio financeiro do grupo são os dois pontos principais em qualquer estratégia. Isso exige de nós um acordo sobre como será a forma da Síria e do Iraque no futuro, já que os dois estão se desintegrando militarmente, ao passo que seria mais sustentável se acordos de compartilhamento de poder nos dois países pudessem ser alcançados diplomaticamente e baseados na riqueza e distribuição de recursos entre suas populações.
Uma vez que isso seja percebido, eu creio que o EI ficaria isolado e perderia a habilidade de explorar as diferenças entre as populações na Síria e no Iraque. “