Bolsonaro e Ernesto Araújo durante videoconferência dos líderes do G20. (Marcos Corrêa/PR/Flickr)
Fabiane Stefano
Publicado em 6 de novembro de 2020 às 17h17.
Última atualização em 6 de novembro de 2020 às 18h27.
A iminente vitória do democrata Joe Biden nos Estados Unidos tira do presidente Jair Bolsonaro seu principal aliado conservador na arena mundial e pode levar o governo brasileiro a algumas correções na sua política externa, mas não se espera uma guinada total que termine por alienar seus apoiadores dentro do país.
A avaliação feita à Reuters por diplomatas experientes é que Bolsonaro terá que baixar o tom da crítica aos democratas --chamados de "comunistas" por muitos de seus apoiadores-- porque não é viável uma relação de conflito aberto com o governo da maior potência mundial.
"O Brasil nunca criticou abertamente um governo americano, seja em governos de direita ou de esquerda. Isso simplesmente não se faz", disse um diplomata, na condição de anonimato.
Aconselhado a não fazer comentários sobre o processo eleitoral norte-americano, Bolsonaro tem conseguido evitar apoio explícito às declarações infundadas de Donald Trump de que houve fraude nas eleições -- teoria encampada por um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Apesar de manter clara sua preferência pela reeleição do aliado republicano Trump, nesta sexta-feira, em discurso em Santa Catarina, Bolsonaro já admitiu que Trump "não é o homem mais importante do mundo".
Fontes ouvidas pela Reuters admitem que temas como fim do multilateralismo e ataques à globalização, sempre presentes no discurso do chanceler Ernesto Araújo, não farão nenhum sucesso com um governo democrata, muito mais simpático ao multilateralismo.
O próprio chanceler, que já escreveu um artigo em que dizia que Trump era o único capaz de salvar a cultura ocidental, pode ser uma baixa na tentativa do governo brasileiro de estabelecer algum diálogo com um governo Biden.
Alguns aliados de Bolsonaro colocam a substituição do chanceler como uma medida necessária para iniciar uma relação mais pragmática com um governo democrata. Bolsonaro, no entanto, tende a resistir a imposições pragmáticas do tipo, especialmente pelo fato de Araújo ter a amizade de seus filhos.
"Acho que ele pode ir ficando, pelo menos por algum tempo, mas não sei se resiste muito tempo", disse uma segunda fonte.
No Itamaraty, a postura desde o dia da eleição nos Estados Unidos é de silêncio absoluto. Araújo não comentou até agora publicamente o processo norte-americano. Outros diplomatas procurados pela Reuters também optaram por não comentar.
Da mesma forma, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a quem Bolsonaro sempre defende, pode terminar sendo retirado do cargo se os norte-americanos se unirem aos europeus em uma pressão sobre a questão ambiental brasileira, o que é bastante provável, como indica o programa de governo Biden e suas falas até agora.
"Esse está muito marcado pela regressão da questão ambiental no país", disse a segunda fonte. "E esse é um tema que tem reflexos comerciais."
Sustentado também pela política do governo Trump de negar mudanças climáticas, o governo Bolsonaro, até agora, desafiou boa parte das ameaças internacionais relacionadas ao meio ambiente. O próprio presidente chegou a falar em deixar o Acordo de Paris, como Trump fez essa semana. A ameaça não foi adiante porque, ao contrário dos norte-americanos, o Brasil teria dificuldade de lidar com as consequências econômicas de uma medida como essa.
Uma derrota de Trump deve deixar o Brasil isolado também em outros temas, como direitos humanos e direitos das mulheres, por exemplo. Desde o início do governo Bolsonaro, o país deu uma guinada em posições tradicionais nessa área.
O Brasil, por exemplo, se aliou a países islâmicos conservadores para retirar de textos do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas temas como desigualdade, igualdade de gênero, direitos LGBT e tortura. Em uma resolução sobre direitos reprodutivos das mulheres, trabalhou para retirar do texto a garantia a educação sexual para meninas e o acesso a informação e serviços de saúde sexual e reprodutiva.
O governo brasileiro também trabalhou para enfraquecer o mandato do Conselho de Direitos Humanos, tirando o poder de monitoramento do órgão. Nesses temas, nem sempre os EUA trabalharam em apoio às resoluções, mas em vários casos, no governo Trump, se abstiveram. Em um possível governo Biden essa postura deve mudar.
No entanto, esses são temas em que se prevê pouca mudança na postura do governo Bolsonaro, já que são posições que agradam o eleitorado conservador do presidente. Mais que isso, raramente trazem impactos econômicos para o país.
"Não vejo possibilidade de mudanças. Isso não traz consequências comerciais", disse a segunda fonte.
Ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Ricupero avalia que a eleição de Biden pode de fato consolidar o isolacionismo brasileiro. Para o embaixador, a agenda brasileira tinha apoio basicamente restrito a Trump, e uma vitória de Biden pode ser a gota d’água para aumentar ainda mais uma posição solitária do governo Bolsonaro.
"Eu acho que a maior consequência será que o isolamento internacional do Brasil ficará completo. O único vínculo hoje que o Brasil tem é com o governo Trump. Com europeus nossa relação é difícil e conflitiva e na América Latina os ventos são contra a ideologia do Bolsonaro", disse à Reuters.
"A única alternativa aos EUA é a China, e o esporte predileto do governo daqui é dar pontapé nos chineses. Ou seja, o Brasil vai concretizar o ideal de ser pária", acrescentou, referindo-se a uma fala de Araújo em seu discurso do dia do diplomata, no final de outubro.
No dia, em discurso de mais de 40 minutos, Araújo desfiou todo seu repertório de críticas ao multilateralismo e ao que chama de globalismo, citou Trump e Bolsonaro como únicos defensores da liberdade e decretou: "Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária."