Mundo

O intrincado xadrez do plebiscito no Curdistão

O Curdistão Iraquiano, uma região semi autônoma com 7 milhões de pessoas, vota pela independência na segunda-feira

Curdos festejam: manifestações a favor do plebiscito, com música e danças típicas, reuniram mais de 100.000 pessoas nos últimos dias (Ahmed Jadallah/Reuters)

Curdos festejam: manifestações a favor do plebiscito, com música e danças típicas, reuniram mais de 100.000 pessoas nos últimos dias (Ahmed Jadallah/Reuters)

EH

EXAME Hoje

Publicado em 22 de setembro de 2017 às 17h03.

Última atualização em 22 de setembro de 2017 às 17h25.

A próxima segunda-feira deverá representar um passo importante no destino de uma das maiores nações do mundo sem um Estado próprio. No Curdistão Iraquiano, hoje uma região semi autônoma com 7 milhões de habitantes, eleitores vão às urnas pela primeira vez, no próximo dia 25, em um referendo pela independência. É esperada uma vitória esmagadora do “sim”. As urnas já estão sendo recebidas em Erbil, capital do Curdistão, e diversas outras cidades da região – em muitas delas, manifestações a favor do plebiscito, com música e danças típicas, reuniram mais de 100.000 pessoas nos últimos dias.

Ao mesmo tempo, reações acirradas contra a votação têm tomado corpo dentro do próprio Iraque, nos países vizinhos – como a Turquia e o Irã, receosos de que os mais de 20 milhões de curdos que povoam seu território também se sintam incentivados a pleitear uma separação – e no Ocidente, onde preocupações com o enfraquecimento da luta contra o Estado Islâmico e a eclosão de novos conflitos no Oriente Médio dão a tônica.

Nas últimas semanas, as ameaças do governo central do Iraque, em Bagdá, tornaram-se mais agressivas. O primeiro-ministro Haider Al-Abadi declarou publicamente, no último dia 16, que está preparado para intervir militarmente na região caso haja focos de violência em decorrência do referendo. As autoridades do país tentaram, de todas a maneiras, proibir a realização do plebiscito, sob a alegação de que a medida é inconstitucional.

A batalha jurídica e os apelos de Bagdá até o momento parecem não ter afetado o presidente do Curdistão, Masoud Barzani, líder do Partido Democrático do Curdistão, criado em 1946.

A Turquia e o Irã, duas das mais poderosas forças políticas e econômicas locais, já declararam que podem tomar medidas enérgicas contra o Curdistão caso a votação siga adiante. No Ocidente, a posição dos países mais influentes não é muito diferente. No último dia 19, a União Europeia afirmou, por meio de um comunicado oficial, que o referendo precisa ser adiado, por representar um eventual enfraquecimento na batalha contra o Estado Islâmico e um novo período de instabilidade no Oriente Médio.

Os Estados Unidos seguem na mesma linha. No final de agosto, Jim Mattis, secretário de defesa americano, viajou a Erbil para se encontrar com Barzani e pedir o adiamento da votação. “É preciso permanecer focado na luta contra os grupos terroristas e não se distrair desse objetivo”, disse Mattis na ocasião.

A rejeição global ao plebiscito não mudou os planos dos líderes curdos. O referendo é considerado um primeiro passo rumo à independência do Curdistão. O desejo dos curdos de ter seu próprio território é antigo, e já foi adiado algumas vezes. A última delas foi em 2014, quando o Iraque foi invadido pelo Exército Islâmico e as forças de segurança iraquianas, ao lado dos Peshmerga, as tropas curdas, e dos integrantes da coalizão internacional se uniram na batalha contra os jihadistas. “O referendo tem um objetivo sagrado e não será mais uma vez postergado”, afirmou Barzani essa semana.

A menos de 250 quilômetros dali, o clima era outro. Os moradores de Kirkuk, cidade de 650.000 habitantes nas proximidades de Erbil, viveram momentos de forte tensão nos últimos dias, com a explosão de um carro-bomba, que matou uma pessoa e feriu outras dez, e a possibilidade de novos ataques. Moradores locais também relataram um aumento na presença de soldados das forças de coalizão, lideradas pelos Estados Unidos, e peshemergas.

O peso do petróleo

A eleição é importante também economicamente. “Kirkuk concentra cerca de 20% de todo o petróleo iraquiano, por isso está no epicentro dos conflitos atuais”, diz Richard Mallinson, analista geopolítico especializado no Oriente Médio da consultoria Energy Aspects, com sede no Reino Unido. “A eventual perda das receitas advindas da exploração de petróleo na região representaria uma rasteira econômica significativa para o governo central”.

O subsolo de Kirkuk guarda uma das três maiores reservas de petróleo do Iraque – o segundo maior produtor mundial, atrás apenas da Arábia Saudita – e responde pela extração de 450.000 barris por dia. Analistas apontam que sua capacidade de produção tem condições de dobrar no médio e longo prazo. A região tem atraído investimentos de alguns dos maiores players mundiais do setor, como a ExxonMobil e a Chevron, que se instalaram no local motivadas por incentivos fiscais, contratos atraentes e a relativa segurança desfrutada pelo Curdistão. A Rússia também entrou no jogo. Recentemente, a empresa russa Rosneft anunciou planos de construir um gasoduto em Kirkuk, exportando gás para a Turquia e a Europa.

Até pouco tempo, Kirkuk e suas riquezas não faziam parte do Curdistão Iraquiano. “Aliás, até hoje não faz, oficialmente”, afirma Mallinson. A cidade é habitada por curdos, que somam quase a metade da população, árabes (28%) e turcomenos (21%). Em 2014, quando o Estado Islâmico invadiu Mossul e outras cidades do Iraque, os Peshemerga tiveram um papel importante nas batalhas pela expulsão dos terroristas. Quando Kirkuk se viu ameaçada, os combatentes curdos foram em seu socorro – e não saíram mais de lá. O local integra um dos diversos territórios disputados entre o governo central do Iraque e o Curdistão Iraquiano, com um papel de peso na crise atual.

Esse cenário ficou ainda mais complicado a partir do último dia 20, quando o governo iraquiano anunciou o início das ofensivas para recuperar a cidade de Hawija (a 66 quilômetros de Kirkuk), ainda sob domínio do Estado Islâmico. A batalha está sendo conduzida pelo exército iraquiano e por milícias xiitas, apoiadas por Bagdá. Os analistas discutem o motivo pelo qual a operação, adiada várias veze,s teria sido deflagrada nesse momento. “É conveniente para o governo federal poder contar agora com tropas no local, caso haja conflitos na região de Kirkuk”, afirma Emily Hawthorne, analista para o Oriente Médio e Norte da África da Strartfor, plataforma internacional de inteligência geopolítica.

Segundo a especialista, a deflagração da batalha pela retomada de Hawija, um dos últimos enclaves do Estado Islâmico no Iraque, também representa um lembrete relevante do propósito comum de Bagdá e Erbil na luta contra os insurgentes.

Inspirações separatistas?

Existe o temor de que o precedente aberto pelo Curdistão possa motivar outras regiões do Iraque a trilhar um caminho semelhante, buscando mais autonomia do governo central, inclusive do ponto de vista fiscal. “Basra, no Sul, poderia pressionar por negociações mais duras com Bagdá por direitos de exploração de petróleo e contratos”, diz Emily. A região possui a maior parte das reservas petrolíferas do país, e do mundo.

Já os problemas com a Turquia e o Irã, não menos importantes, são de outra natureza. Os cerca de 20 milhões de curdos que vivem dentro das fronteiras turcas ocupam uma área rica em ouro, cobre e petróleo. O local também é rico em mananciais de água, provenientes dos rios Tigres e Eufrates, um recurso em escassez em diversas partes do Oriente Médio. O país repele com violência, há décadas, qualquer tentativa de insurreição dos curdos, mas construiu importantes laços comerciais com o Curdistão. Mais uma mostra de quão intrincados são as questões territoriais na região.

Acompanhe tudo sobre:Estado IslâmicoExame HojeIraqueReferendo

Mais de Mundo

Alemanha prepara lista de bunkers e abrigos diante do aumento das tensões com a Rússia

Relatório da Oxfam diz que 80% das mulheres na América Latina sofreram violência de gênero

Xi Jinping conclui agenda na América do Sul com foco em cooperação e parcerias estratégicas

Para ex-premier britânico Tony Blair, Irã é o principal foco de instabilidade no Oriente Médio