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Norte-coreanos que fugiram do país enfrentam dificuldades no Sul

Mais de 30 mil norte-coreanos moram na Coreia do Sul e enfrentam dificuldades para conseguir trabalho

Coreias: cúpula histórica entre os líderes coreanos acontecerá em maio (Jorge Silva/Reuters)

Coreias: cúpula histórica entre os líderes coreanos acontecerá em maio (Jorge Silva/Reuters)

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AFP

Publicado em 26 de abril de 2018 às 10h19.

Quando o soldado de elite norte-coreano Joo Seung-hyeon arriscou a vida atravessando um campo minado para se refugiar na Coreia do Sul sonhava com um futuro próspero. A realidade se mostrou outra: assim como acontece com muitos de seus conterrâneos, ele sofre discriminação e desprezo na Coreia do Sul.

Excluído pelos sul-coreanos, que consideram os vizinhos do norte como "bárbaros toscos", Joo teve muitas dificuldades para conseguir um emprego, em grande parte devido a seu forte sotaque norte-coreano.

Em seu périplo, o ex-soldado, agora com 37 anos, trabalhou em um restaurante onde ganhava metade do que recebiam seus companheiros sul-coreanos.

Joo Seung-hyeon resistiu a tudo e praticou, ouvindo o rádio, para se livrar das inflexões norte-coreanas e imitar o sotaque do sul.

Em seu tempo livre, estudou para ter um título universitário e acabou completando um doutorado em Estudos sobre a Unificação, tornando-se o primeiro norte-coreano a conquistar esse grau acadêmico.

Acaba de publicar um livro sobre os desafios que os desertores norte-coreanos enfrentam em uma sociedade que é radicalmente diferente.

Desde o fim da Guerra da Coreia (1950-53), mais de 30.000 norte-coreanos fugiram da pobreza e da repressão empreendendo a difícil e perigosa viagem para o Sul.

Nos anos 1970 e 1980, eram recebidos com grande pompa na Coreia do Sul, onde a unificação figura como um objetivo na Constituição. Alguns eram tratados como "heróis".

Quando as deserções a conta gotas se transformaram em uma enxurrada de refugiados na década de 1990, por conta da fome que deixava milhares de mortos na Coreia do Norte, a opinião dos sul-coreanos mudou, porém.

Hoje, muitos refugiados se queixam da dificuldade de encontrar trabalho, ou de fazer amigos. Seus conhecimentos e suas competências são considerados obsoletos, ou irrelevantes, e uma parte dos sul-coreanos os olha com suspeita e até desprezo.

Alguns chegam a considerá-los "intocáveis".

A taxa de desemprego entre os desertores norte-coreanos é de 7%, quase o dobro da média nacional, e sua renda mensal é a metade da média do país.

Estigma

Segundo um estudo, cerca de 20% dos norte-coreanos são vítimas de fraudes, roubos e de outros crimes, corroendo a ajuda de 19.000 dólares que o governo lhes dá para facilitar sua instalação.

Joo desertou em 2002, atraído pelas sirenes da "liberdade e da prosperidade" anunciadas pelos alto-falantes que o Exército sul-coreano coloca ao longo da fronteira.

Ele decidiu, então, abandonar seu posto como soldado e passou pelo arame farpado, cruzou um campo minado e, em meia hora, atravessou a Zona Desmilitarizada que divide a península. É exatamente ali que acontece, nesta sexta-feira, uma cúpula intercoreana nada habitual.

Já no Sul Joo teve de enfrentar uma pressão que desconhecia.

"De cara caí neste mundo ultracompetitivo, onde prevalece o princípio da sobrevivência do mais forte", afirmou.

"Essa realidade era, para mim, mais fria do que a noite de inverno, em que cruzei a fronteira sozinho", desabafou.

"Me dei conta de que, talvez, nunca vá ser capaz de me livrar do estigma de 'desertor norte-coreano'", lamentou.

Um futuro sombrio

Apesar de ter um título, recebeu centenas de "nãos" ao se identificar como desertor quando se candidatava a um emprego. Quando ocultava sua origem, conseguia ser entrevistado e até contratado.

Hoje, trabalha como professor universitário. "Um caso muito raro", diz ele, que aponta o fator "sorte".

Seu livro está cheio de histórias de partir o coração, como a de um desertor que se suicidou diante da impossibilidade de conseguir um trabalho, apesar de ter obtido com grande esforço um título universitário.

Outro refugiado decidiu deixar a Coreia do Sul, quando soube que pais de crianças sul-coreanas se negavam a ter seus filhos frequentando a mesma escola que o dele.

Joo é um dos nove soldados que cruzaram a fronteira terrestre de 2000, o último deles em novembro, sob uma épica chuva de tiros que foi capa de vários jornais.

Atualmente, desse grupo, dois estão presos por consumo de drogas e tentativa de assassinato, outro se tornou alcoólatra e faleceu de câncer de fígado, um quarto ficou paralítico após ser atropelado por um carro e outro vive fora do país.

"Muitos soldados dizem que lamentam terem vindo para o Sul", disse Joo à AFP.

Ele não se arrepende e cita os casos de jovens que conseguem se integrar.

Voltar para o Norte

Um estudo do governo mostrou que 23% dos norte-coreanos que vivem na Coreia do Sul havia pensado em voltar para o Norte, devido à nostalgia.

Alguns realmente conseguiram. Pelo menos 20 deles apareceram na imprensa estatal de Pyongyang contando o "inferno" que viveram no Sul, onde eram tratados como cidadãos de segunda.

Nessa guerra de versões, Seul acusa Pyongyang de ter sequestrado alguns deles, cujas aparições são grotescamente coreografadas, enquanto se desconhece o destino final dessas pessoas.

As organizações de defesa dos direitos humanos afirmam que os desertores são duramente castigados no Norte.

"Nunca considerei a vida no Sul como um inferno, mas me parte o coração ver aqueles que arriscaram sua vida para vir se suicidarem, ou emigrarem para outros países, devido à discriminação e ao estigma", reconheceu Joo.

Esse tema mostra um panorama complexo para uma eventual reunificação.

"Os norte-coreanos são pessoas muito orgulhosas e nunca vão tolerar que se despreze seu orgulho nacional e pessoal", afirmou.

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