Carro elétrico: (Universal Images Group/Getty Images)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 3 de setembro de 2023 às 06h33.
A transição energética, como a adoção em massa de veículos elétricos, traz uma nova oportunidade para a América Latina atrair investimentos estrangeiros, especialmente na área de mineração. A região, afinal, abriga reservas de metais usados nas baterias, como lítio e cobre, entre outros. No entanto isso pode gerar conflitos, avalia o cientista político argentino Aníbal Pérez-Liñán, diretor do Kellog Institute for International Studies, da Universidade de Notre Dame, em Indiana, Estados Unidos.
"Não há transição energética sem minerais e sem mineração, e boa parte dessa mineração vai estar na América Latina. Isso significa uma grande oportunidade potencial para a região, mas também uma nova fonte de conflitos, porque essa mineração vai gerar recursos para os governos centrais e custos sociais muito localizados para alguns setores da população em certos territórios", avalia o pesquisador, em entrevista à EXAME.
Na conversa, Liñán falou sobre diversas questões que marcam a situação do continente: ele vê um desgaste dos partidos politicos e dificuldade dos governos atuais se reelegerem e se manterem no poder. Um sinal claro disso é a vitória de Javier Milei nas primárias presidenciais da Argentina. Ele também vê entraves no esforço do governo Lula para ampliar a presença do Brasil em grandes questões internacionais.
Pérez-Liñán pesquisa democracia e instituições políticas na América Latina e escreveu o livro "Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America" (Impeachment presidencial e a nova instabilidade política na América Latina).
Confira os principais trechos da entrevista com Pérez-Liñán.
A América Latina pode viver um novo boom de commodities por causa transição energética?
Não há transição energética sem minerais e sem mineração, e boa parte dessa mineração vai estar na América Latina. Isso significa uma grande oportunidade potencial para a região, mas também uma nova fonte de conflitos, porque essa mineração vai gerar recursos para os governos centrais e custos sociais muito localizados para alguns setores da população em certos territórios. Boa parte da América Latina tem criado infraestruturas legais para implantar princípios de consulta prévia, como para comunidades afetadas por projetos de desenvolvimento, mas vamos ver se, no contexto de uma nova oportunidade econômica, esses princípios vão ser respeitados.
O governo Lula tem buscado recuperar e ampliar o espaço do Brasil no cenário internacional. Como avalia os primeiros resultados disso?
É difícil para o Brasil recuperar a mesma importância que tinha na década de ouro de Lula porque as condições econômicas da América Latina não são as mesmas. O Brasil não tem a prosperidade econômica que tinha no período entre 2002 e 2013, a década gloriosa do governo do PT, e o contexto internacional mudou muito. Bolsonaro era um presidente muito criticado pelo sistema internacional, e, portanto, simplesmente suceder Bolsonaro significou uma recuperação do prestígio do Brasil, da mesma forma que a eleição de Barack Obama depois de George W Bush representou uma recuperação para os Estados Unidos. Às vezes, simplesmente uma mudança de governo traz um novo horizonte para um país no cenário internacional. Nesse sentido, o Brasil sem dúvida está em melhor posição e tem maior credibilidade internacional hoje.
No entanto, algumas das ações que Lula tem tomado para reposicionar o Brasil no contexto internacional são muito complicadas porque estamos em um contexto muito mais polarizado do ponto de vista moral. Se aproximar da Rússia, buscar ser um mediador crível na crise da Ucrânia, a ambiguidade em relação à Venezuela, todas essas são posições que debilitam a credibilidade internacional do Brasil como um país democrático que busca se projetar como líder regional.
Como avalia o desempenho dos governos de esquerda que venceram eleições recentes na América Latina. Há de fato um movimento de Onda Rosa?
A interpretação da política latino-americana em termos de ondas é menos útil hoje do que no começo do século porque vemos uma América Latina muito mais mesclada em termos ideológicos, muito mais diversa. Assim, vemos de maneira menos consistente o tipo de ondas que víamos no começo do século 21. Naquele momento, houve o desgaste de políticas neoliberais dos anos 1990 e, como consequência, o surgimento de diversos líderes de esquerda, porque a população estava votando contra a política econômica anterior. Ao mesmo tempo, houve um boom econômico relacionado com a alta no consumo na China, que ativou a economia latino-americana e permitiu que essa Onda Rosa fosse muito exitosa em termos de popularidade dos presidentes.
Agora, a partir de 2013, e o Brasil é um exemplo muito claro, essa popularidade caiu. Desde então, temos visto uma série de movimentos diferentes. Em alguns países, a esquerda conseguiu se manter no poder. Em outros, a direita ganhou. O padrão hoje parece não ser tanto um de modelo ideológico, mas, desde a crise da covid-19, é muito difícil para qualquer partido do governo se manter no poder. Há uma grande insatisfação da população com o Estado, a economia, a segurança pública. Não há perspectiva de futuro, e a população vota de forma consistente contra o partido do governo, seja de esquerda, como Gabriel Boric, que não é um mau governo, mas o resultado para a população chilena não é satisfatório, sejam presidentes de direita como o de Mauricio Macri, que não foi um mau governo, mas a situação econômica na Argentina era terrível. O único partido de governo que parece capaz de continuar ganhando eleições na América Latina é o Colorado, do Paraguai.
Como avalia a vitória de Javier Milei nas primárias argentinas? O resultado pode ter reflexos na política de outros países da região?
O estilo de Milei é um agressivo, o que tende a afastar parte do eleitorado na Argentina. Portanto, não está garantido que ele vá ganhar as eleições. Porém, sim, isso é possível porque ele é a figura nova. Os meios de comunicação estão prestando muita atenção, e ele está moderando um pouco seu discurso. Com isso, talvez consiga capturar a parte do eleitorado de direita que o vê com preocupação. Muitos o consideram muito volátil e imprevisível.
O que distingue Milei não é tanto a sua posição ideológica, que é libertária e historicamente rechaçada pelo eleitor argentino. Um tipo de discurso que teria talvez entre 5% e 15% do eleitorado, nunca mais do que isso. O que mobiliza é a figura de outsider e contra a política tradicional, que tem permitido a ele capturar a imaginação do eleitorado na era das redes sociais, mas além do conteúdo ideológico do discurso. Temos visto esse estilo na direita, como Donald Trump, mas também na esquerda. E temos visto também isso sem posição ideológica, como no caso do presidente Nayib Bukele em El Salvador. Hoje em dia o que importa não é tanto o conteúdo da comunicação, mas sim o estilo da comunicação.
Milei é reflexo de mudanças mais profundas na política?
Estamos em um momento de transição. Os partidos tradicionais estão em crise e os novos partidos do século 21 também parecem estar, porque nenhum projeto político oferece um horizonte de futuro claro. Os líderes, outsiders políticos, ganham eleições de maneira inesperada, como foi com Bolsonaro e como pode ser com Milei. Como tantos outros, são em geral líderes com um discurso negativo, de crítica contra a ordem política e têm propostas extremas, o que faz com que os eleitores irritados os apoiem. Mas, em geral, eles não têm uma proposta de futuro clara. Isso é o que está faltando na América Latina: uma série de projetos políticos em disputa, mas que apresentem modelos viáveis de desenvolvimento econômico para a sociedade.
Na era das redes sociais, os líderes têm formas de se comunicar com os eleitores sem os partidos políticos e os meios de comunicação tradicionais. Isso tem criado uma grande instabilidade, porque a imprensa livre e os partidos são os pilares da democracia no século 20. Mas minha suspeita é que este é um momento histórico temporário de reacomodação e que os partidos e a imprensa vão ter de se reinventar para esta nova era, porque não há democracia sem partidos nem imprensa livre.
Como vê o avanço do discurso linha-dura e da violência política no continente, como o assassinato de Fernando Villavicencio, que era candidato no Equador?
Temos visto um fortalecimento do crime organizado em toda a América Latina em diferentes graus, em diferentes países. Isso cria um campo muito propício para que o eleitorado peça por segurança pública. E quando ocorrem eventos trágicos, como o assassinato do candidato presidencial no Equador, isso reforça a percepção de que o Estado está em crise e é incapaz de governar e prover segurança. Então, isso fortalece o discurso de candidatos que propõem políticas de linha dura e que vão contra os direitos humanos. Historicamente na América Latina, região com experiência forte de ditaduras militares, esses discursos de linha dura tinham bastante resistência da população, mas na medida em que o crime organizado vai se fortalecendo, esses discursos parecem ganhar maior tração. O exemplo de Nayib Bukele é particularmente problemático porque ele se transformou em um presidente enormemente popular em El Salvador e, portanto, muito poderoso e uma inspiração para presidentes que querem seguir este modelo na América Latina.
A popularidade de Bukele tem criado uma ilusão política, porque a mesma sociedade que lhe deu um cheque em branco para enfrentar o crime organizado é a mesma que vai começar a sofrer as consequências das políticas linha-dura que violam direitos humanos. Estamos assistindo a prisões sem base legal, julgamentos massivos sem o devido processo. É parecido com o que aconteceu na América Latina durante as ditaduras militares: a população respaldou as ditaduras contra a violência política, mas depois foi vítima em parte dessa violência do Estado.
Como os governos podem atuar para combater o crime organizado? Há espaço para mais parcerias internacionais na região?
O crime organizado é um problema transnacional, e, portanto, as soluções também serão. A resposta ao crime não deve ser somente militar. O exemplo do México é muito claro: o país optou por uma resposta militar há anos e o único resultado é um aumento dramático das mortes e da violência e um número de desaparecidos que supera em muito os de qualquer ditadura militar na América Latina.
Tem-se falado muito da colombianização da política latino-americana, em referência à Colômbia nos anos 1980, quando cartéis de droga como o de Pablo Escobar intervinham na política de maneira violenta. Mas uma lição que a experiência da Colômbia oferece é que a resposta a um crime organizado muito poderoso, para ser efetiva, tem de estar ancorada em um enorme trabalho de inteligência, para desarmar as redes criminais, inclusive suas conexões dentro do Estado, e um sistema de cooperação internacional.
Como vê a posição da América Latina em relação aos EUA e à China, que disputam poder em várias áreas?
É uma situação comum a quase todo o Sul global. A China se aproximou para fazer investimentos com sentido comercial e pragmático, sem orientação política e nenhuma agenda moral nas relações com os países, o que a permite negociar com qualquer tipo de governo em qualquer lugar do mundo. Os Estados Unidos têm adotado uma postura defensiva, de ir aos países e dizer a eles que não deveriam negociar com a China, porque é um país perigoso. Porém, isso não satisfaz nem aos governos nem às empresas desses países. Os Estados Unidos têm perdido terreno, simplesmente porque sua diplomacia nessa área não é boa.
Os problemas da Venezuela têm sido menos debatidos em nível internacional. Como avalia a situação do país neste momento?
Há uma certa calma no contexto venezuelano, porque a economia está melhor para certa parte da população, apesar de que boa parte viva em estado de carência muito forte. Alguns países não veem nenhum objetivo estratégico em entrar neste debate. A migração venezuelana, embora não seja tão visível como antes, segue um tema central para a América Latina, e isso significa que o problema da democracia na Venezuela não vai desaparecer rápido. O governo venezuelano tem popularidade muito baixa, e a única maneira de se manter no poder será aumentar a repressão à medida que as próximas eleições se aproximam. Cedo ou tarde, os países da OEA terão de enfrentar este problema.