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Mundo caminha para transição histórica, diz consultoria de risco

Em entrevista à EXAME, o cientista político Christopher Garman, da Eurasia, maior consultoria de risco político do mundo, discute as mudanças geopolíticas globais e as consequências da guerra na Ucrânia

Christopher Garman, da Eurasia: mundo passa por transição histórica (Lela Beltrão / EXAME/Exame Hoje)

Christopher Garman, da Eurasia: mundo passa por transição histórica (Lela Beltrão / EXAME/Exame Hoje)

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Carla Aranha

Publicado em 28 de maio de 2022 às 11h00.

Última atualização em 31 de maio de 2022 às 09h56.

Em meio a uma inflação de 8,3% (no índice apurado em abril), a mais alta dos últimos 40 anos, e preocupações com o cenário macroeconômico, a popularidade do presidente Joe Biden vem caindo. O índice de aprovação ao governo girou em torno de 36% no final de maio, o nível mais baixo desde a posse de Biden, segundo uma pesquisa da agência de notícias Reuters e do instituto Ipsos. Ao mesmo tempo, o grau de influência e poderio americano tem sofridos baixas em regiões como a América Latina e o Oriente Médio.

Em entrevista à EXAME, o cientista político Christopher Garman, diretor executivo para as Américas da Eurasia, maior consultoria de risco politico do mundo, discute como o vácuo de lideranças globais, as mudanças geopolíticas e a nova crise econômica estão impactando os Estados Unidos e as democracias ocidentais -- e podem moldar um momento de transição histórica. Veja os principais trechos: 

 Como você avalia o atual momento da posição americana no Ocidente, no que diz respeito ao papel de liderança dos Estados Unidos e às mudanças geopolíticas que estão ocorrendo?

Bom, primeiro há um fator estrutural que vem se acumulando há décadas, que é o tamanho e o papel das economias emergentes, começando evidentemente pela ascensão da China. E na medida que temos um reequilíbrio econômico no mundo, há várias fricções que vão se acumulando. Isso se manifesta no desejo de países de terem uma voz maior, que envolve esforços multilaterais. O G20 foi uma manifestação da ampliação desses novos stakeholders. Estamos vendo isso nos últimos 20, 30 anos e tem se exacerbado. Esse é um processo lento e estrutural.

E como você analisa, nesse contexto, a esnobada que o México e o Brasil deram nos Estados Unidos em relação à Cúpula das Américas, que acontece em Los Angeles no início de junho? O Brasil acabou confirmando, diante dos apelos do governo americano, mas o México, não.

Essa esnobada talvez seja mais possível hoje do que há 15 ou 20 anos atrás, quando os Estados Unidos tinham um papel mais dominante. A China virou o principal parceiro comercial da região, então claramente a América Latina depende menos economicamente dos Estados Unidos do que no passado. Agora, dito isso, o papel da liderança americana permanece importante. O dinamismo da economia americana em termos tecnológicos é uma referência, então a tese do declínio do poder americano, que é um debate forte entre especialistas de relações internacionais, tem sido menos agressiva do que muitos acadêmicos estavam projetando dez anos atrás.

Isso vem ocorrendo sim, mas é um declínio mais gradual em um contexto em que a potência americana em termos de dinamismo da economia e tecnologia permanece relevante. Mas claro que se você conversar com lideranças da América Latina, vão dizer que estar perto de Washington é muito menos relevante hoje do que era há 20, 30 anos.

Como fica a liderança americana no Oriente Médio, uma região na qual os Estados Unidos estiveram muito presentes nas últimas décadas? Qual foi o peso da retirada americana do Afeganistão, no ano passado?

Há um processo doméstico nos Estados Unidos de um foco maior na política doméstica. Donald Trump manifestou esse desejo. Então, há uma liderança americana olhando mais para dentro e menos para fora. Joe Biden é um internacionalista, mas está mais focado agora na crise da Rússia. De qualquer forma, há uma retração no papel dos Estados Unidos no Oriente Médio, e não só no lado da retirada do Afeganistão, mas também com uma relação muito estremecida com a Arábia Saudita.

Mas olhando para a capacidade dos Estados Unidos em cumprir um papel proativo, de presença em regiões como essa, de ser a polícia do mundo, está havendo um enfraquecimento. Nós na Eurasia estamos batendo muito na tecla de um fenômeno que nosso fundador, o Ian Bremer, denominou como G0. Teve o G7, o G20 e o G0 é um ambiente em que você não tem uma liderança forte global. É uma tese forte que a gente vem defendendo, de que a capacidade de liderança global caiu estruturalmente. Isso impacta dos Estados Unidos em particular.

Por que?

Olhando para frente, temos uma democracia nos Estados Unidos que está se mostrando disfuncional e vamos caminhar para uma eleição muito conturbada em 2024, com a possibilidade de Trump voltar. A geologia da opinião pública nos Estados Unidos está mais podre e a capacidade de liderança no sistema global está diminuindo.

Tudo isso não faz parte de um conjunto de características típico de momentos de transições históricas?

Sim. A gente vem defendendo que a tese de que estamos caminhando para um cenário de polaridade em termos geopolíticos, entre Estados Unidos e China. Mas há outro elemento, que é um problema de curto prazo, relativo à política americana e europeia de impor um regime de sanções severo contra a Rússia e embarcar em uma cruzada de uma luta entre países liberais e democráticos contra regimes autocráticos.

Houve simpatia com uma posição dura contra a Rússia no início, mas a ambição americana e europeia é transformar a Rússia em um estado de pária. E não acho que isso não vai ter apoio em grande parte dos mercados em desenvolvimento.

Essa política externa americana já está começando a gerar atritos e pode ser uma fonte de desgaste com lideranças na América Latina, na África e partes da Ásia. Não interessa uma política de isolamento da Rússia em termos financeiros e comerciais, até porque os países estão sofrendo hoje com uma crise de inflação, alimentos e energia. A Rússia está interligada com a economia global e impor um regime de sanções severos contra a Rússia é muito mais sério do que fazer isso com o Irã e tem repercussões muito mais largas. Tanto que a postura de países como o Brasil e o México é de procurar lidar com a Rússia normalmente depois que o conflito chegar ao fim e não de participar de uma coalisão que vai isolar a Rússia.

A extensão de sanções europeias à Rússia, com embargo à importação de combustível e gás natural, pode ter repercussões políticas?

A pressão política por ampliar as sanções está crescendo ao mesmo tempo em que aumetam as preocupações com uma recessão na Europa e nos Estados Unidos. Mas a preocupação com segurança está falando mais alto do que a preocupação econômica. Mas isso é um debate em que lideranças na Europa se sentem ameaçadas com a invasão russa na Ucrânia. Para o resto do mundo, essa é uma questão muito distante.

Mas um aumento de sanções à Rússia não pode resultar em uma piora da economia na Europa?

Pode, e isso inclusive já está acontecendo. A Europa vai tentar eliminar a importação de petróleo da Rússia até o final deste ano. Politicamente, está difícil não adotar uma posição dura mesmo que as lideranças europeias reconheçam o risco econômico que isso traz. Em relação ao gás, não dá para cortar tão rápido, mas o que estamos escutando é que a Europa pode reduzir a dependência do gás russo mais rápido do que estávamos imaginando há dois ou três meses.

Isso pode trazer uma crise social e econômica para a Europa?

Gera sim um desafio econômico para a Europa, em termos de preço de energia e aumento da inflação.

A inflação chegou a 9% em abril no Reino Unido e está crescendo na Europa de uma forma geral. Como você essa questão?

A inflação é o calcanhar de Aquiles de todas as economias agora. E está causando um choque global.

E isso vale inclusive para os Estados Unidos, certo?

Sim, o presidente Biden está em dificuldades por causa disso.

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