Indiana em área de exploração de carvão: cientistas realizaram testes e dizem saber qual é o principal culpado: o mercúrio (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 5 de dezembro de 2014 às 20h25.
Nova Deli - A morte chegou sem avisar às cabanas de barro de Jogaeal, no centro da Índia.
Uma por uma, as crianças começaram a morrer, muitas vezes agonizando e acometidas pelos mesmos sintomas: convulsões, queimação nas extremidades, náuseas, vômitos, febre e diarreia.
No final de 2011, os pais tinham enterrado 53 de seus filhos nesse povoado rural que fica em uma colina arborizada, onde vivem principalmente pequenos produtores de subsistência e trabalhadores por dia.
A situação se repetiu em três outros povoados perto e dentro dos distritos contíguos de mineração de carvão Singrauli e Sonbhadra, a cerca de 965 quilômetros ao sudeste de Nova Délhi. Pelo menos mais uma dezena de crianças com sintomas semelhantes sucumbiu, além de diversos adultos.
A indignação com essas mortes deu início a uma investigação realizada pelos diretores médicos do governo regional do distrito de Sonbhadra – e os resultados só aumentaram a indignação.
A maioria das mortes estava vinculada ao consumo de água poluída, de acordo com relatórios obtidos pela Bloomberg News em outubro.
Os relatórios não informavam quais eram esses poluentes, mas cientistas independentes realizaram testes toxicológicos abrangentes na região e dizem saber qual é o principal culpado: o mercúrio.
Uma pesquisa realizada em outubro de 2012 pelo Centro para a Ciência e o Meio Ambiente, um grupo de investigação de interesse público com sede em Nova Délhi, descobriu que os níveis de mercúrio das amostras da água de beber de alguns vilarejos era 26 vezes superior ao limite que o Departamento de Padrões da Índia considera seguro para o consumo humano.
Os peixes de um lago perto dos povoados, que costumam servir de alimento para os moradores, tinham níveis de mercúrio duas vezes superior ao que é considerado seguro pelo governo indiano, de acordo com o relatório.
O governo indiano sabe disso há muito tempo. Em uma pesquisa de três horas de duração conduzida na década de 1990, o Instituto de Pesquisa Toxicológica da Índia, controlado pelo governo, encontrou níveis perigosos de mercúrio no sangue, no cabelo e nas unhas dos habitantes da região Singrauli. Contudo, a poluição continua a aumentar. Dados das Nações Unidas mostram que a Índia só perde para a China em termos de emissões anuais de mercúrio.
Prioridade para as corporações
Tudo isso reforça a crítica de que o impulso de modernização da Índia através dos setores de extração, como a mineração de carvão e de urânio, coloca as prioridades das empresas acima da saúde dos cidadãos.
A Índia ainda não “considera o custo dos efeitos da poluição sobre a saúde das pessoas e do ecossistema” quando analisa os custos e os benefícios de projetos industriais, disse Kritee, cientista sênior do Fundo de Defesa Ambiental dos EUA, no Colorado, que há anos estuda a poluição provocada pelo mercúrio. Enquanto isso não mudar “a saúde humana e ambiental virá em segundo lugar”, de acordo com Kritee, que usa apenas um nome.
As estatísticas comprovam isso. O Banco Mundial estima que a degradação ambiental custa à Índia 5,7 por cento do seu PIB a cada ano – e é responsável por cerca de um quarto das 1,6 milhão de mortes infantis por ano.
Como o mercúrio e outros poluentes chegam à região não é um mistério. O que as vítimas tinham em comum é a proximidade ao enorme reservatório Govind Ballabh Pant Sagar e aos rios que o alimentam. Cercada por minas, usinas que queimam carvão e indústria pesada, essas águas coletam efluentes contaminados pelos descartes das fábricas e absorvem o mercúrio residual da queima de carvão.
Essas águas estão entre as mais poluídas do país, conforme um relatório do governo indiano – e servem como fonte primordial de água potável e peixes para a região –. O reservatório é a “principal fonte de água” da região e “está seriamente poluído pelos descartes de cinzas de combustível pulverizadas e outros efluentes que provêm das indústrias”, de acordo com o Tribunal Nacional Verde, criado em 2010 pelo Parlamento indiano a fim de lidar com as preocupações ambientais. “Há usinas termelétricas, além de quase 1.000 fábricas poluentes. Isso realmente não se discute”.
Sinais de alerta
“Algumas pessoas da região já começaram a apresentar sintomas de envenenamento com mercúrio e está na hora das autoridades pararem para escutar”, disse Ramakant Sahu, cientista do centro que ajudou a realizar testes abrangentes para a identificação de químicos tóxicos. “O mercúrio e outros metais vêm se acumulando há anos. Todos os sinais de alerta estão aí”.
Ninguém sabe a magnitude real das doenças e mortes relativas à poluição nesses vilarejos, porque nenhum órgão do governo realizou o tipo de pesquisa exaustiva que seria necessária para compreender a questão. Amarendra Bahadur Singh, atual diretor de medicina do distrito Sonbhadra, disse que pretendia recomendar uma pesquisa assim a seus superiores.
O centro sem fins lucrativos estima que muitos dos 1,1 milhão de moradores que vivem perto do reservatório e de seus afluentes podem estar em risco.
O Ministério do Meio Ambiente e Florestas da Índia pretende atacar os problemas de poluição do país de modo enérgico e em breve passará a exigir que todas as empresas que emitem poluentes instalem sensores nos pontos de descarga, disse o ministro do Meio Ambiente Prakash Javadekar em resposta às perguntas feitas pela Bloomberg News sobre os problemas de poluição nos distritos mineradores. O governo ainda não definiu a data de implementação para o sistema que possibilitará que os órgãos monitorem constantemente para identificar as violações “em tempo real e entrar em ação”, disse Javadekar. “Será um passo revolucionário”.
Falta de carros-pipa
Para muitos, o plano do Ministério do Meio Ambiente e Florestas da Índia para restringir a poluição industrial é retrógrado. De acordo com Sahu, do centro, as iniciativas tomadas pelo governo central e pelo governo regional para reduzir a poluição perigosa e lidar com os danos colaterais têm sido esporádicas e ineficientes.
Às vezes, os fiscais regionais responsáveis pelo meio ambiente emitem advertências de paralisação para os poluidores, mas é raro que as multas ou paralisações realmente sejam aplicadas, disseram os moradores locais e os cientistas que estudaram a região. Não houve nenhuma iniciativa relevante para limpar o lago.
As medidas para evitar que os moradores bebam a água contaminada costumam fracassar. Em maio, por exemplo, o Tribunal Nacional Verde ordenou que as companhias em atividade nos distritos mineradores Singrauli e Sonbhadra levem água potável em carros-pipa para os moradores após a ocorrência de surtos frequentes de doenças relativas à poluição da água.
No entanto, os locais dizem que os carros-pipa costumam desaparecer durante dias ou semanas. “Eles não vêm e nós bebemos a água que temos”, disse Tejbali, morador do vilarejo Kirwani, que às vezes cruza o reservatório a remo para trabalhar uma jornada em uma usina química.
Sua filha de 12 anos, Soni – que às vezes sente como se os pés e as mãos estivessem pegando fogo – começou a apresentar sinais do que os cientistas do Centro dizem temer que se trate de envenenamento com mercúrio, de acordo com os exames que fizeram com ela.
Govind Ballabh
O transbordamento das cinzas de carvão pulverizadas – também conhecidas como cinzas volantes – costuma escurecer a represa artificial Govind Ballabh. Empresas de químicos e outras despejam efluentes tóxicos nas águas do reservatório e usinas de energia produzem mercúrio e eletricidade. O mercúrio se mistura com compostos orgânicos que se transformam em metilmercúrio – que, de acordo com os cientistas, é mais tóxico para os humanos e para os animais porque é mais fácil de ingerir.
A represa e o reservatório foram inaugurados em 1962 pelo primeiro primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru quando o país deu início a um impulso modernizador. Inicialmente, o projeto visava a energia hidrelétrica e a irrigação para a região. Depois do descobrimento de grandes reservas de carvão apareceram mineradoras, fábricas e mais usinas elétricas.
Alguns moradores têm idade suficiente para lembrar dos dias em que os rios corriam limpos e o reservatório fluía sem contaminantes. “Bebemos essa mesma água há anos”, disse Tejbali. Não é possível ver ou sentir o cheiro do mercúrio nos alimentos ou na água. Nem do arsênico nem da grande quantidade de outros metais pesados que foram detectados lá através dos testes toxicológicos.
Grandes corporações
A morte de tantas crianças em 2011 foi o que convenceu os moradores de que havia algo muito mais sinistro do que a ladainha costumeira de fatores – falta de higiene, desnutrição e assistência médica precária – contribuindo para as altas taxas de mortalidade da região devido a doenças como malária, pólio e influenza.
Algumas das maiores corporações da Índia funcionam nesses corredores de poluição. A Coal India Ltd., maior mineradora de carvão do mundo, controla mais de 1 bilhão de toneladas das reservas do lugar através de uma subsidiária, a Northern Coalfields Ltd.
A NTPC Ltd., empresa de energia nacional da Índia, opera usinas de eletricidade a carvão. Outra companhia estatal, a Uttar Pradesh Rajya Vidyut Utpadan Nigam Ltd., opera uma usina de carvão de 1.630 megawatt perto da cidade de Anpara.
A Northern Coalfields cumpre as regulações indianas de mineração na operação de suas minas e no descarte dos resíduos, disse Tapas Nag, diretor administrativo da companhia. Nag disse que acredita que os registros de altas taxas de doenças nos distritos mineradores são exagerados. “Talvez haja certa concepção equivocada em alguns relatórios prévios realizados por algumas ONGs”, disse.
Um porta-voz da estatal NTPC disse que a empresa adere a todas as regras ambientais e que sempre que as autoridades detectam uma violação, a companhia atua prontamente para retificá-la.
O diretor técnico da Uttar Pradesh Rajya Vidyut, Murlidhar Bhagchandani, disse que a companhia opera suas usinas e seus depósitos de cinzas de acordo com a lei. “Os depósitos de cinzas foram criados com todas as autorizações... Convidamos agências independentes para realizar verificações mensais de nosso cumprimento das leis ambientais. Somos constantemente monitorados pelo órgão regulador”.
Pesca nas cinzas volantes
Para entender o que os moradores enfrentam, uma visita a Anpara é esclarecedora. Torres altas expelem um fluxo constante de fumaça e vapor no ar. Gigantescos canos de ferro e aço emergem da usina, que se estende por cerca de 8 quilômetros, com algumas partes elevadas sobre estacas, até uma série de campos rodeados por diques baixos. Lá, uma mistura cinzenta semiderretida de cinzas jorra ruidosamente nos depósitos chamados de tanques de cinzas.
As cinzas volantes, que contêm traços de arsênico e radiação de baixo nível, são uma das principais causas da poluição do ar, da água e do solo e da degradação da terra, pois provocam “a interrupção de ciclos ecológicos” e “perigos ambientais”, de acordo com a Comissão de Planejamento da Índia, uma organização consultiva do governo liderada pelo primeiro-ministro do país.
Ram Narayan Panika, 40, mora em uma das duas casas que estão à beira do tanque de cinzas de Anpara. Há duas décadas, havia 100 casas nesse campo. Agora, há centenas de toneladas de cinzas. A casa dele está impregnada delas.
“Todos se foram e em breve eu serei obrigado a levar a minha família embora”, disse ele, de pés descalços sobre os canos de lama de carvão que passam por cima da casa dele. “Acho que as cinzas foram para a água. Elas entram na nossa cabana, na nossa comida. Estão em todos os lugares”.
Às vezes, ele filtra com um tecido a água de beber retirada de uma bomba manual, mas geralmente bebe a água sem filtrar. Panika sente dores e uma sensação de queimação nas mãos e nos pés, disse ele. Seu filho de 12 anos, Pradeep Kumar, tem lesões cutâneas.
As cinzas não representam um problema só para Panika. Quando os depósitos transbordam, as cinzas vão parar no reservatório. Pescadores costumam entrar em busca de suas presas, ignorando a poluição. No dia em que os repórteres conversaram com Panika, um homem sem camisa boiava em um pneu em meio às cinzas, tentando pegar um peixe.
Shiv Balak, 20, e sua esposa, que trabalham em construções, entram na água cinzenta à altura da cintura para pescar as cinzas e a areia, que colocam em sacos de batata. Um empreiteiro local lhes paga 80 rúpias (cerca de US$ 1,29) por cada saco. Hoje, eles encheram 29 sacos. Balak não sabe em que a mistura é utilizada.
“Até agora tenho saúde e faço o que posso para ganhar algum dinheiro”, disse Balak. “A água e a areia vêm da usina de energia, então devem estar sujas. Não tenho nenhum problema de saúde agora, mas quem sabe o que acontecerá no futuro”.
Às vezes, ele retira peixes mortos do tanque. Nem sempre ele os come – mas às vezes, sim.