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A crise russa de todo dia

Pressionada pela queda no preço do petróleo, pelas sanções do Ocidente, pelos gastos militares e pelo modelo de “capitalismo de Estado” capitaneado pelo presidente Vladimir Putin, a economia russa vive sua pior crise em duas décadas. O PIB encolheu 3,7% no ano passado, e o próprio Ministério da Economia russo prevê nova contração de 0,8% […]

VLADIMIR PUTIN: viagem à França estava programada para a próxima terça-feira / Konstantin Zavrazhin / Getty Images (Konstantin Zavrazhin/Getty Images)

VLADIMIR PUTIN: viagem à França estava programada para a próxima terça-feira / Konstantin Zavrazhin / Getty Images (Konstantin Zavrazhin/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 10 de junho de 2016 às 10h27.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h35.

Pressionada pela queda no preço do petróleo, pelas sanções do Ocidente, pelos gastos militares e pelo modelo de “capitalismo de Estado” capitaneado pelo presidente Vladimir Putin, a economia russa vive sua pior crise em duas décadas. O PIB encolheu 3,7% no ano passado, e o próprio Ministério da Economia russo prevê nova contração de 0,8% a 1% neste ano caso o barril de petróleo continue abaixo dos 40 dólares, conforme documento obtido pela agência Reuters. As exportações caíram 31,5% em 2015, em comparação com o ano anterior. Com a desvalorização do rublo, o PIB per capita se reduziu a quase metade, de 15.390 para 8.181 dólares. Combinado a uma inflação de 12,9%, isso tem erodido o poder de compra da população.

O desemprego está subindo lentamente, mas continua num patamar relativamente baixo, de 5,8%. A crise afeta os russos de maneiras bastante diversas. Antes da crise, desencadeada pela imposição das sanções em março de 2014, Vera Politova, de 30 anos, ganhava 75.000 rublos (hoje equivalentes a 5.090 reais, já aplicada a inflação de 27,25% do período na Rússia) como subgerente de marketing numa empresa finlandesa. A filial de Moscou foi fechada; e Vera, demitida. Ela continua desempregada: “Não é fácil encontrar hoje uma vaga com condições semelhantes às que eu tinha”.

O taxista Ilya Volkov, de 42 anos, conta que continua ganhando os mesmos 50.000 rublos (3.394 reais) por mês que ganhava antes da crise — o que significa que seu rendimento real caiu mais de um quarto. “Mesmo assim, para ganhar o mesmo que antes, tenho de trabalhar mais e sacrificar dias de folga, porque não posso me dar ao luxo de perder um cliente”, descreve Volkov. “As pessoas estão andando menos de táxi, e as tarifas não sofreram nenhum ajuste.”

Dona de um pequeno salão, a cabeleireira Natália Arashukova, de 42 anos, ganhava em torno de 70.000 rublos (4.753 reais) há dois anos. Ela diz que hoje a receita diminuiu muito pouco em termos nominais e que conseguiu manter a clientela, mas suas freguesas reduziram o número de idas ao salão.

Essa situação é comum não só entre os autônomos mas também entre os empregados, cujo salário não foi reajustado e, portanto, perderam para a inflação. O biofísico Igor Gudich, de 27 anos, continua trabalhando no mesmo instituto de pesquisas e com o mesmo salário: 55.000 rublos (3.737 reais).

As tensões sociais

Moscou é uma cidade relativamente cara — embora seu custo de vida seja 14% mais baixo do que o de São Paulo, segundo o site especializado Numbeo. O aluguel médio de um apartamento de um dormitório fora do centro da cidade custa 32.348 rublos, ou 1.728 reais. Os serviços de energia elétrica, água, aquecimento e coleta de lixo para um apartamento de 82 metros quadrados somam, em média, 6.587 rublos (352 reais). O litro de leite está mais ou menos o mesmo preço do Brasil: 60 rublos, ou 3,19 reais.

Comer fora custa caro, como em São Paulo. Um almoço num restaurante simples sai por 681 rublos (33,70 reais). O litro da gasolina custa menos: 35,24 rublos, ou 1,88 real. A passagem de ônibus, trem ou metrô também é mais barata do que em muitas capitais brasileiras: 45 rublos (2,40 reais).

Nem todos se deram mal com a crise. O empresário Alexey Somov, de 55 anos, que era dono de uma rede de distribuição de pescados, aproveitou as barreiras às exportações para a Rússia e abriu um novo negócio, de comercialização de produtos de fazendeiros locais: leite e derivados, carnes, farinhas integrais, frutas e verduras orgânicas. “Acertei, e hoje minha receita se multiplicou várias vezes, junto com os desafios”, diz Somov, que passou a faturar mais de 1 milhão de rublos (53.274 reais) por mês. “Apesar dos preços elevados dos produtos, clientes não faltam.” Ou seja, no nicho de mercado que ele encontrou, não há tanta crise.

Mas essa não é a realidade da maioria. A queda nos investimentos e na atividade econômica atingiu em cheio a construção civil e outros setores que empregam a mão de obra menos qualificada e de menor renda. Num sinal das tensões sociais, o governo criou em abril uma Guarda Nacional com um efetivo de 400.000 homens, comandados por Viktor Zolotov, ex-chefe de segurança de Putin, que se reportará diretamente ao presidente. A justificativa oficial é combater o terrorismo e o crime organizado. Mas em Moscou acredita-se que a medida tem relação com a necessidade de “manter a ordem” antes das eleições parlamentares de setembro.

Na última reunião do Conselho Econômico, Alexei Kudrin, ex-ministro das Finanças e presidente do Centro de Pesquisa Estratégica de Moscou, advertiu que a Rússia está ficando muito atrás tecnologicamente e, para voltar a crescer mais de 1%, não adianta ficar esperando que o preço do barril de petróleo retorne ao patamar acima de 80 dólares, mas, sim, “reduzir as tensões geopolíticas” para “integrar o país nas cadeias produtivas internacionais”. Pelos cálculos de Kudrin, que deixou a equipe econômica em setembro de 2001 por discordâncias com Putin e seu fiel primeiro-ministro, Dimitri Medvedev, as sanções custam 1% do PIB russo a cada ano.

Segundo fontes ouvidas pela imprensa russa que presenciaram a reunião a portas fechadas, a resposta de Putin não foi exatamente animadora: o presidente teria dito que a União Europeia e os Estados Unidos precisam entender que a Rússia tem uma história de mil anos e “não vai barganhar soberania por comércio”.

No final de 2013, o governo ucraniano se preparava para iniciar os procedimentos para o ingresso do país na União Europeia. Depois de ser chamado a uma reunião com Putin em Moscou, o então presidente Viktor Yanukovitch anunciou sua desistência desse processo e a inserção da Ucrânia na Comunidade Econômica Eurasiática, liderada pela Rússia. Em reação, eclodiram protestos em Kiev e em outras cidades, sobretudo no oeste e no centro da Ucrânia, mais permeáveis à influência europeia. Yanukovitch acabou renunciando em fevereiro de 2014.

Seguiu-se a eleição de um presidente pró-ocidental, Petro Poroshenko. A Rússia reagiu anexando a Península da Crimeia e apoiando um movimento separatista de russos étnicos no leste da Ucrânia que degenerou em guerra civil. Os Estados Unidos e a União Europeia retaliaram com sanções comerciais contra setores estratégicos da economia, como o de petróleo e o de armamentos. O gás russo ficou a salvo graças à dependência europeia. Os bancos estatais russos perderam o acesso a empréstimos de longo prazo. Os Estados Unidos impuseram também restrições de viagens para empresários e autoridades próximas a Putin, bem como o congelamento de depósitos bancários tanto de pessoas quanto de empresas. Essas iniciativas representaram um golpe econômico e político contra o esquema de Putin.

Empurrado para o corner, o presidente russo transferiu a luta para outra arena. Em meados de 2015, a Rússia lançou uma campanha de bombardeios contra aliados locais dos Estados Unidos e de seus parceiros europeus na Síria. Grupos tanto seculares quanto religiosos, direta ou indiretamente patrocinados por americanos e europeus na luta contra o regime de Bashar Assad, tornaram-se os alvos preferenciais de aviões e mísseis russos. Embora a narrativa fosse combater todas as forças “terroristas” atuando no país, os bombardeios russos concentraram-se no noroeste da Síria, onde se encontravam os parceiros de americanos e europeus, enquanto o nordeste, ocupado pelo Estado Islâmico, fortemente combatido pelas potências ocidentais, foi poupado. Com isso, Putin atendeu ao triplo objetivo de proteger seu aliado Assad, criar um ambiente irritante para seus algozes na Ucrânia e restaurar o prestígio perdido.

O fervor patriótico

Esse prestígio é central na estratégia de Putin, no poder desde 1999, de construir e preservar sua base social por meio de um sofisticado sistema de deslocamento da autoestima e da satisfação individuais para um contentamento e fervor patrióticos. “Restaurar o status de grande potência se tornou um código para restaurar a dignidade”, explica Andrei Kolesnikov, pesquisador do Carnegie Endowment em Moscou.

“Êxitos na política externa compensam o fato de que a dignidade não foi restaurada dentro do país. Uma conversa de 5 minutos com a maioria dos russos revela que eles se sentem totalmente indefesos face às pressões dos grandes e pequenos chefes, das concessionárias de serviços públicos, dos fiscais, tribunais, polícia, recrutadores do serviço militar obrigatório e até de patrulhas de rua feitas por forças irregulares.”

Segundo o pesquisador, o regime busca compensar as frustrações causadas pelo autoritarismo, a corrupção e os problemas econômicos com a suposta recuperação do papel de potência pela Rússia, que, paradoxalmente, eleva os gastos do Estado e agrava a crise da economia. “O cidadão russo pós-soviético parece — ou finge estar — satisfeito com uma sensação de pertencimento a algo grandioso e sem face, uma multidão que compartilha orgulho em si mesmo e em seu líder”, analisa Kolesnikov. “O russo médio sente de novo o orgulho de ser diferente de todo mundo e está pronto para sofrer em nome do bem maior.”

Essa estratégia de Putin de permanência no poder por meio de uma agressiva projeção de poder da Rússia levou o país ao isolamento e à atual crise — sobretudo com o petróleo não mais sustentando suas aventuras militares. “Se não fosse pelas sanções, o governo russo, os bancos e as empresas poderiam ter saído da crise pegando dinheiro emprestado, especialmente porque a dívida externa não era grande”, avalia Sergei Guriev, professor de economia na Sciences Po de Paris, ex-diretor da Nova Escola Econômica de Moscou e ex-assessor de Medvedev. Ele teve de deixar a Rússia em 2013 sob pressão por causa de suas críticas.

A reação internacional 

Os 28 chefes de Estado e de governo da União Europeia reúnem-se nos dias 28 e 29 deste mês em Bruxelas para discutir, entre outros temas, a continuidade das sanções contra a Rússia. Estão ocorrendo sinais de relaxamento, embora nem todos os países-membros concordem, e as decisões são tomadas por consenso.

Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha reconheceu no dia 27 que não está funcionando a abordagem do “tudo ou nada” para forçar a Rússia a cumprir o Acordo de Minsk. Firmado em setembro de 2014, o acordo prevê cessar-fogo e a retirada das forças paramilitares apoiadas pela Rússia no leste da Ucrânia. “Sanções não são um fim em si mesmo, servem para levar a uma solução política”, argumentou Martin Jaeger. Na véspera, na reunião do G-7 no Japão, a chanceler alemã, Angela Merkel, havia dito que era “cedo demais” para levantar as sanções.

De acordo com a revista alemã Der Spiegel, o governo em Berlim estuda remover restrições de viagens para parlamentares russos, reduzir o prazo de renovação das sanções de seis para três meses e mesmo relaxar as punições em troca do apoio russo à realização de eleições no leste da Ucrânia.

A Rússia está realizando uma ofensiva diplomática em países considerados mais simpáticos à sua causa, como Áustria, Grécia, Hungria e Itália, segundo o jornal International Business Times, de Nova York. Os russos salientam sua importância como parceiros comerciais, fornecedores de gás e petróleo e intermediários na solução para a guerra na Síria. O primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, criticou as sanções durante uma entrevista coletiva ao lado de Putin no dia 27 em Atenas.

O chanceler húngaro, Péter Szijjártó, afirmou, depois de uma reunião com seu colega russo, Sergei Lavrov, em Budapeste, que as sanções não seriam prorrogadas automaticamente. Em outro sinal de conciliação, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, anunciou que vai participar do Fórum Econômico de São Petersburgo, de 16 a 18 deste mês. Será a primeira visita de uma autoridade europeia à Rússia desde o início da guerra na Ucrânia em 2014.

Entretanto, a Grã-Bretanha, a Polônia e os países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia, ex-repúblicas soviéticas), que tradicionalmente mantêm posições mais duras em relação à Rússia, já afirmaram que as sanções têm de ser mantidas para conter as ambições imperialistas russas. “As opiniões na União Europeia não mudaram, mas o clima está mudando”, definiu Fyodor Lukyanov, diretor do Conselho de Política Externa e de Defesa, de Moscou, que assessora o governo russo. A expectativa é que as sanções sejam relaxadas no início do ano que vem.

Além da queda no preço do petróleo e das consequências das “ambições imperiais” de Putin, a Rússia é vítima de seu modelo econômico. Tanto que seus problemas são anteriores à queda no preço do petróleo e às sanções — que apenas os agravaram.

Em relatório publicado em dezembro de 2012, o Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento apontava a corrupção, a regulação excessiva, a falta de proteção dos direitos de propriedade, a falta de concorrência e de abertura e a expansão das estatais como causas da estagnação econômica russa. Intitulado “Diversificando a Rússia”, o relatório, baseado em pesquisas de campo, recomendava a desregulamentação, o aperfeiçoamento do sistema financeiro, a promoção da concorrência e da iniciativa privada e investimentos no capital humano e na inovação.

A Rússia se beneficia de um bom sistema de educação (seu desempenho no Pisa é próximo ao dos Estados Unidos), com uma tradição de pesquisas científicas e formação técnica, uma impressionante riqueza mineral, solos férteis e uma posição geográfica privilegiada de acesso aos mercados da Europa e da Ásia.

Seu problema é fundamentalmente político: a estratégia de Putin de permanência no poder. E não há no horizonte uma saída para esse obstáculo. No controle do país há 17 anos, Putin tem eliminado sistematicamente toda a oposição, calado a imprensa e mantido sua popularidade manipulando com maestria os sentimentos de inferioridade e as fantasias de grandeza dos russos. E, se tudo isso falhar, ele ainda tem sua nova Guarda Nacional para lembrar quem manda na Rússia.

(Lourival Sant’Anna)

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