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Macri: fim da briga no campo

Lourival Sant’Anna  Entre as muitas brigas compradas pelo casal Kirchner, que governou a Argentina entre 2003 e 2015, talvez a mais extravagante e contraproducente tenha sido a guerra travada com o setor agropecuário. Conhecida tradicionalmente como “celeiro do mundo”, a identidade da Argentina está profundamente conectada com o seu mundo rural. Ao assumir, em dezembro, […]

MACRI: visita de Temer gerou a convocação de manifestações por parte de grupos sociais e sindicatos de esquerda na Argentina / Agustin Marcarian/ Reuters

MACRI: visita de Temer gerou a convocação de manifestações por parte de grupos sociais e sindicatos de esquerda na Argentina / Agustin Marcarian/ Reuters

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Da Redação

Publicado em 19 de agosto de 2016 às 20h14.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h10.

Lourival Sant’Anna 

Entre as muitas brigas compradas pelo casal Kirchner, que governou a Argentina entre 2003 e 2015, talvez a mais extravagante e contraproducente tenha sido a guerra travada com o setor agropecuário. Conhecida tradicionalmente como “celeiro do mundo”, a identidade da Argentina está profundamente conectada com o seu mundo rural. Ao assumir, em dezembro, uma das primeiras providências do presidente Mauricio Macri foi atender às demandas do setor, de eliminar impostos de exportação, a necessidade de autorização para exportar e cotas cambiais para importar insumos e implementos. O resultado é uma mudança de humor que só uma goleada contra o Brasil seria capaz de produzir.

Pesquisa feita pela empresa Jefferson Davis, de Buenos Aires, mostra que 61% dos produtores agropecuários argentinos acreditam que a situação econômica do país vai melhorar no próximo ano. No ano passado, apenas 9% dos entrevistados apostavam nisso. Desde 2006, quando a série de sondagens anuais começou, esse índice oscilou entre 6% e 15%. Apenas 2% dos entrevistados em maio deste ano disseram que a situação vai piorar. Em 2015, esse índice era de 44% e, em 2014, chegou a 67%.

Com relação à situação atual, a imagem é mais sombria, mas muito melhor do que no ano passado. Neste ano, 7% dos entrevistados consideraram a situação atual “excelente” e 37%, “boa”. Em 2015, esses índices foram de 2% e 14%, respectivamente. A inflação dos últimos 12 meses chega a 46%. De acordo com o relatório LatinFocus Consensus Forecast, que reúne a média das estimativas do mercado, a inflação deve terminar o ano em 40%, combinada com uma recessão de 1,1%. Para o ano que vem, o mercado espera uma inflação de 20,3% e crescimento de 3,7%.

O legado deixado pela ex-presidente Cristina Kirchner incluiu preços de alimentos e energia artificialmente baixos. Ao retirar os subsídios, o governo Macri fez a inflação explodir. A tentativa de reorganização da economia é ameaçada por decisões da Justiça, como a de quinta-feira, 18, quando a Corte Suprema suspendeu aumentos na tarifa do gás, que chegavam a 1.000%. O tribunal exigiu que o governo promova audiências públicas antes de pôr o aumento em prática. O governo alega que as audiências já tinham sido realizadas pela administração anterior no ano passado, mas vai cumprir a ordem.

Entretanto, à pergunta sobre a conformidade com a maneira como Macri governa o país, 32% dos agropecuaristas se disseram “muito conformes” e 58%, “algo conformes”. Na pesquisa do ano passado, ninguém se declarou “muito conforme” com o governo Kirchner e 8%, “algo conformes”.

A reconciliação do governo central com os produtores rurais foi selada no dia 30, na abertura da Exposição Rural de Palermo, em Buenos Aires. Pela primeira vez em 15 anos, o presidente participou da cerimônia. Cristina chegou a ameaçar desapropriar o parque onde se realiza a tradicional feira, no bairro de Palermo. Macri parabenizou os produtores por serem os maiores geradores de emprego do país e afirmou: “Há sete meses trabalhamos no governo para que o campo sinta que tiraram o pé de cima dele e agora lhe estão estendendo a mão. O campo é muito mais do que ele pode produzir, é mais que os impostos que pode pagar, é nossa história e emblema.”

O presidente da Sociedade Rural, Luis Miguel Etchevehere, comemorou: “A governabilidade se consegue investindo e gerando emprego desde o primeiro momento, e sem especulações. O campo já deu a largada. E isso é só o começo”.

Às voltas com a inflação alta e o desabastecimento, causados pelos gastos públicos excessivos, o controle de preços e a falta de incentivos para os setores produtivos, Néstor Kirchner adotou impostos e a obrigatoriedade de autorizações de exportações, na tentativa de controlar o estoque de alimentos disponível no mercado. As medidas só serviram para desestimular a produção, reduzir as exportações e causar a fúria do poderoso setor.

Três meses depois de assumir a presidência, sucedendo seu marido, Cristina enfrentou uma paralisação dos produtores, com bloqueio de estradas e manifestações também nas principais cidades do país. Em solidariedade aos produtores e rejeição ao governo recém-eleito, manifestantes convocados pela líder oposicionista Elisa Carrió reeditaram os “panelaços”, protestos que haviam ocorrido na crise econômica de 2001 e 2002, e levaram à queda do então presidente Fernando de la Rúa.

Cristina, no entanto, não caiu. Eleita com 45% dos votos em 2007, e reeleita no primeiro turno com 54%, ela contava com um sólido apoio, graças a suas políticas populistas. Seu governo mobilizou suas bases de esquerda e populares e realizou contramanifestações de repúdio aos produtores e apoio à presidente. Paradoxalmente, apesar de seu enfrentamento com o setor agropecuário, seu governo foi beneficiado pelos altos preços das commodities agrícolas.

O estigma que fica 

Para o sociólogo Juan Carlos Tejada, diretor da consultoria Jefferson Davis, a guerra entre o governo e o agronegócio teve consequências não só econômicas, mas psicossociais. “A crise no campo em 2008 deixou uma marca na sensibilidade do produtor comum”, analisa ele. “Por um lado, enfrentou unido e com êxito a situação, mas, por outro, e como resultado, recebeu um ataque inédito do governo, que enfrentou com a população, tanto das grandes cidades quanto de seus povoados. A perda de reconhecimento da população é um dos mais importantes estigmas que ainda persistem.”

Um pouco como aconteceu durante o Plano Sarney, nos anos 80, o governo argentino usou as Forças Armadas para confiscar o gado nas fazendas e garantir o abastecimento interno. A propaganda do governo, que jogava a culpa dos preços altos nos empresários, assim como faz o governo de Nicolás Maduro na Venezuela, criou um clima de polarização e hostilidade. “O produtor sente que é malvisto pela população e que isso é injusto e sobretudo mal intencionado.”

Segundo o sociólogo, “a mudança de governo e as medidas anunciadas impactam positivamente na possibilidade certa de produzir novamente”. Ele observa que “a resposta foi imediata e já se vislumbra aumento de cultivos de trigo e milho, que não essenciais para um ciclo agrícola normal”.

Tejada pondera que o “clima proativo” não exclui a preocupação com a inflação, altos custos de insumos, falta de crédito e arrendamentos caros. “Mas são variáveis inerentes ao negócio, e que de alguma maneira o produtor administra.” O pesquisador diz que o setor está voltando a investir em máquinas, veículos, insumos e aumento da área plantada. “Isso dinamizará também muitas indústrias e comércios do interior.”

O crescimento da produção deve vir acompanhado do aumento das pressões para que a Argentina conquiste novos mercados para seus produtos agrícolas. Como diz o ministro da Agricultura, Ricardo Buryaile: ”Produzimos para 400 milhões de habitantes e somos pouco mais de 40 milhões. A alternativa é abrir mercados: se não o fizermos, vai haver uma depressão dos preços internos”.

Com a inércia do Mercosul — que no momento não tem sequer presidência —, paralisado pelo protecionismo das indústrias argentina e brasileira, que dificultam acordos com parceiros como a União Europeia, e a interinidade do governo em Brasília, que também inibe iniciativas internacionais, Macri tem ensaiado um voo solo.

No início de julho, o presidente argentino fez um giro por Paris, Bruxelas, Berlim e Hamburgo, tentando impulsionar as negociações comerciais. Em reunião com a chanceler Angela Merkel, ele pediu que a Alemanha use a sua “liderança” para obter uma posição mais “flexível” da França, que resiste a abrir mão de seu protecionismo agrícola. Isso, depois de discutir o tema com o presidente francês, François Hollande. “Pode ser que no passado a Argentina tenha atrasado esse acordo, mas hoje tanto a Argentina como o resto dos países do Mercosul queremos ir adiante, e claramente o capítulo agrícola é o mais complicado”, disse Macri em Berlim.

No dia 23, os países fundadores do Mercosul — Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai — devem encontrar uma saída para preencher o vazio da presidência do bloco, que os três primeiros não aceitam que seja ocupada pela Venezuela. Em seguida, deve ser formalizado no Senado o impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff. A partir daí, o presidente interino Michel Temer e seu chanceler, José Serra, terão mais liberdade para se lançar na diplomacia comercial. Um dos desafios é o de flexibilizar a Tarifa Externa Comum, de maneira a permitir que os membros do Mercosul negociem acordos bilaterais, sem a necessidade de carregar o bloco inteiro consigo.

Se isso for alcançado, tanto o Brasil quanto a Argentina defrontarão com suas próprias contradições internas. Ambos possuem setores agrícolas competitivos e ávidos por novos mercados, mas também parques industriais que sobrevivem, em grande medida, graças às barreiras comerciais. Bastante atrasados no processo de integração global, os vizinhos terão então a sua hora da verdade.

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