Casa Rosada, sede do governo da Argentina, em Buenos Aires (Exame/Exame)
A Argentina é aquele país onde a inflação não é mais um mero problema monetário. É parte integrante da cultura nacional.
Buenos Aires convive há quase um século com taxas de inflação de dois ou até três dígitos. Tanto que a inflação média na Argentina entre 1944 e 2022 foi de 191,73%.
Um descontrole dos preços que devastou a economia argentina, transformando um dos países mais ricos do mundo em um lugar onde 44% da população vive abaixo da linha de pobreza.
Dessa vez, todavia, a inflação está superando qualquer previsão.
Começando a disparar. Ou, melhor, a galopar.
Os preços na Argentina subiram 6,7% em março, atingindo uma média anual de 55,1%.
Uma alta que não acontecia desde 2002, ano após a derrocada provocada pelo calote que o governo de Buenos Aires deu aos detentores de títulos da dívida pública.
O espectro do "corralito", a grande crise cambial e econômica que abalou o país vizinho, arrasando as poupanças de quem investiu no "Tesouro Direto" local, volta a pairar.
O aumento dos preços atinge principalmente o setor de alimentos, com 7,2% de alta. E isso se reflete sobre os bens de consumo básicos.
Consequência direta: dados oficiais mostram que quase metade dos argentinos passa fome. E outro 25% luta para chegar ao final do mês.
O peso, a moeda local, não para de se desvalorizar.
Os protestos populares estão crescendo. Os sindicatos da oposição voltaram às ruas, ocupando por horas a famosa Calle 9 de Julio, a principal avenida que atravessa o centro de Buenos Aires, e divide a Casa Rosada, sede da Presidência da República, do palácio do Congresso Nacional.
Além de ser assolada por uma crise econômica endêmica, a Argentina tem que lidar com uma crise política.
O governo está dividido. Desde novembro passado, quando a esquerda governista registrou uma pesada derrota nas eleições regionais, as tensões entre o presidente, Alberto Fernández, e sua vice, Cristina Kirchner, não param de subir.
Segundo fontes da EXAME Invest em Buenos Aires, os dois não se falariam há meses.
E Fernández já considera a Kirchner sua principal inimiga interna.
Isso pois ex-presidente não perde ocasião de apontar sua decepção com o aliado.
Ela não esconde seu arrependimento de ter oferecido à seu ex-chefe de gabinete a possibilidade de alcançar a Presidência da República.
Algo impensável até poucas semanas antes da eleição.
Para ela, se a Fernández está no comando do país, é apenas mérito seu.
Por isso, Cristina joga gasolina em cima do descontentamento da base peronista, e a estimula mais protestos com discursos inflamados.
A distância entre os dois se tornou sideral por causa da inflação descontrolada.
O presidente não se considera um fantoche de ninguém, e reivindica sua ação. Mas pede que ala rival dos peronistas não atrapalhe.
Mas é justamente essa linha que divide os dois rivais no comando da Argentina.
Os economistas ligados ao kichrnerismo, estão convencidos de estar diante da chamada "oferta distributiva".
Uma extravagante sub-teoria econômica, desconhecida mundo afora, cuja popularidade se limita, basicamente, à um só país: a própria Argentina.
Essa contorção intelectual tem como ponto de chegada o mesmo objetivo de sempre: controlar os preços por decreto do governo.
A receita econômica desastrosa que já deixou a economia da Argentina em frangalhos nas última décadas. Mas que, regularmente, volta a ser reapresentada pelos "economistas" kirchneristas.
Fernández, em vez disso, considera que a espiral inflacionária está ligada à guerra na Ucrânia, e só pode ser vencida com reformas macroeconômicas.
Isso significa menos déficit fiscal, menos subsídios públicos - principalmente para a energia, que gasta 11% do PIB - menos desvalorização do câmbio. Em suma, controle das contas públicas e alta nos juros.
Anátema para o kirchnerismo radical dos seguidores de Cristina.
O presidente segue a linha do Fundo Monetário Internacional (FMI) com o qual acordou recentemente o novo reembolso do famoso empréstimo de US$ 44 bilhões (cerca de R$ 180 bilhões) concedidos ao então presidente MauricioMacri, pouco antes da eleição de 2018, que consagrou Fernández.
Os espantalhos históricos de todos os argentinos, a inflação e a dívida externa, continuam dividindo o país. Até dentro do próprio peronismo.
De um lado, o governo, tentando evitar uma debandada para o caos econômico.
Do outro, Cristina Kircnher que já declarou se opor imediatamente ao novo acordo com o FMI, sabendo que a maioria dos argentinos concordam com ela.
Os resultados eleitorais que penalizaram a coligação esquerdista demonstram essa divisão interna.
Os mercados estão nervosos. Se de um lado continuam convencidos que o Ministro da Economia, Martín Guzmán, cumprirá seus compromissos.
Do outro, existem boatos rumores de uma mudança de ministros que vai acabar depurando o Executivo dos Kirchneristas.
E uma decisão dessa deixaria Fernández sem sua principal base eleitoral, mesmo preservando o presidente de um possível fogo amigo.
Entretanto, a Argentina estará sujeita a revisões trimestrais por parte do FMI, que começam em maio.
Naquela ocasião, o país vai pagar a segunda parcela de US$ 4,1 bilhões.
Se a Argentina fizer a mesma coisa nos próximos 30 meses, finalmente pagará o enorme empréstimo. Poderá voltar página e tentar retomar os trilhos da estabilidade.