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'IA determinará o futuro da desigualdade', diz autor do livro 'Co-Inteligência'

Ciborgue e centauro: as duas formas de simbiose entre humanos e IA, segundo o autor do livro 'Co-Inteligência'

Ethan Mollick, professor em Wharton e autor do livro "Co-Inteligência" (Divulgação)

Ethan Mollick, professor em Wharton e autor do livro "Co-Inteligência" (Divulgação)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 31 de maio de 2025 às 07h00.

Há duas formas principais de trabalhar com a inteligência artificial. Na primeira, apelidada de centauro, homem e máquina fazem cada um sua parte do trabalho, tendo claro quem fez cada coisa. A outra se chama ciborgue, em que a integração é tão profunda que não se sabe mais quem fez o quê.

A metáfora é usada por Ethan Mollick no livro "Co-Inteligência", que entrou na lista de mais vendidos do jornal The New York Times e agora é lançado no Brasil pela editora Intrínseca. Ele chega nas livrarias do país em 2 de junho.

Mollick, que é professor na faculdade Wharton, da Universidade da Pensilvânia, faz uma análise interessante e fluída de como a IA está mudando o mundo do trabalho, do estudo e do empreendedorismo.

Um dos dados que ele destaca é que a IA traz mais ganhos de performance para alunos e funcionários de menor desempenho, enquanto empregados de alta performance tendem a ter avanços menores, em termos comparativos, embora isso ainda esteja sendo medido.

"Há muita pesquisa que mostra que as pessoas de baixa performance recebem um grande aumento de desempenho com a IA. Mas a pergunta real é se quem já tinha desempenho mais alta também receberá um grande aumento. Há um pouco de evidência que isso acontece, mas em menor proporção. Essa questão vai determinar o destino da desigualdade", afirmou, em conversa com a Exame.

Leia a seguir os principais trechos da conversa.

Como saber se seu emprego está em risco e ele pode ser extinto pela IA, ou se a função poderá sobreviver?

Essa é uma pergunta muito boa. A resposta é que geralmente não sabemos, mas temos algum senso dos trabalhos que são mais sobrepostos pela IA. Sobreposto não quer dizer substituído. A IA não está substituindo muitos trabalhos, mas transformando eles. Geralmente, quanto mais formação o trabalho requer, quanto mais paga e quanto mais criatividade requer, mais sobreposição com a IA. Há uma lista de trabalhos que se sobrepõe com a IA, feita por economistas. Eu discuto isso no livro. Eu penso nisso muito, porque, de todos esses trabalhos, há 1.016 em uma lista, e o professor da escola de negócios é o 22º. Já vejo o meu trabalho se transformando. Sei que a IA faz um trabalho melhor em avaliações do que eu. Pesquisas mostram isso.

Que dados comprovariam isso?

Uma das coisas que eu faço no meu trabalho é a avaliar estudos. Eu não uso a IA para avaliar ainda, porque meus alunos ficariam doidos, mas ela faz melhor do que eu. Mas isso não quer dizer que meu trabalho desapareça. Ele muda. Se a IA me ajuda a escrever pesquisa, eu passo mais tempo fazendo outras coisas. Os trabalhos mais mudam do que desaparecem, pelo menos com o estado atual da IA. 

A IA vai criar trabalhos que ainda não imaginamos?

Também não sabemos isso. Até agora, ela não criou. O engenheiro de prompt, algo assim, ainda não é realmente um trabalho. Em cada onda, novas tecnologias tiraram alguns trabalhos e criaram novos. Economistas acham que isso é o que vai acontecer desta vez, mas ainda não temos evidência.

No livro, o senhor mencionou que a IA ajuda os alunos com notas baixas na escola a melhorar e isso nivelar o campo entre estudantes bons e ruins. Você acha que isso pode levar a menos desigualdade de renda no futuro? 

Há muita pesquisa que mostra que as pessoas de baixa performance recebem um grande aumento de desempenho com a IA. Mas a pergunta real é se quem já tinha desempenho mais alta também receberá um grande aumento. Há um pouco de evidência que isso acontece, mas em menor proporção. Essa questão vai determinar o destino da desigualdade.

Países como o Brasil têm dificuldades por ter menos acesso à tecnologia. A IA poderá mudar isso e ajudar países como o Brasil a se desenvolverem melhor? Ou isso pode aumentar a distância entre os países?

De uma perspectiva global, a IA fecha lacunas. Todo mundo no Brasil tem, essencialmente, acesso às mesmas ferramentas que todo mundo em qualquer outro lugar.  Não há melhor IA que você pode comprar. A Gemini 2.5 ou a OpenAI o3 são as mesmas ferramenta que você encontra em qualquer uma das empresas mais avançadas do mundo, porque elas não têm uma versão mais avançada. Na verdade, eu diria que no Brasil você provavelmente tem melhor acesso do que as pessoas no Goldman Sachs ou em muitos dos grandes bancos dos EUA, porque eles proíbem o uso da IA. Então, é uma grande oportunidade para fechar as lacunas. Essas coisas são também incríveis em tradução, e não só em tradução de línguas, mas em tradução de estruturas. Por exemplo: me ajude a explicar minhas propostas brasileiras de uma forma que faria sentido para alguém no México ou nos EUA, ou na Arábia Saudita.

Sobre o futuro da IA. Você vê um futuro em que várias empresas dominam a tecnologia, ou um futuro mais concentrado, onde poucas empresas em poucos países concentram os serviços, como ocorre com as redes sociais?

Há dois tipos de produtos da IA. Há modelos abertos e fechados. Os modelos fechados são como o ChatGPT, o Google Gemini, o Anthropic Claud. Esses são modelos controlados por uma empresa. E há poucas empresas competindo nesse espaço. Depois há modelos abertos. Meta Llama e DeepSeek são dois exemplos. Qualquer um pode descarregar e usar esses modelos ou modificá-los. Os modelos abertos estão um pouco atrás dos modelos fechados agora, mas há muita competição nesse espaço. 

Falando agora sobre empreendedorismo e o seu trabalho na Wharton. A IA está reduzindo o custo de inovação. É mais fácil fazer protótipos, testes, criar estratégias de mercado. Mas como competir nesse espaço quando todo mundo tem acesso a essa criatividade, e a criatividade talvez não seja tão importante quanto antes?

A IA é criativa. Mas não é tão criativa quanto a pessoa mais criativa. As pessoas criativas ainda são mais criativas. Pelo menos, ainda são. Tudo pode mudar no futuro. Essa é a primeira coisa. A segunda é que a ação, fazer coisas, ainda é uma barreira. A IA não pode executar coisas de forma completa no mundo. São empreendedores que fazem o trabalho, e terminam as coisas e impulsionam as mudanças. Ainda há uma grande oportunidade para agir. 

E em que funções a IA pode ajudar a empreender?

Um dos meus colegas em Wharton tem um estudo mostrando que a IA é uma boa geradora de ideias para empreendedores e ele chama de “Ideias custam 12 por 10 centavos”. As ideias são fáceis, a execução é difícil. O empreendedorismo é realmente algo sobre ser muito melhor do que todos os outros em uma coisa e então tentar não falhar em todo o resto. Você é realmente bom em venda. Você tem uma boa ideia para um produto, mas, você geralmente não é bom nas outras coisas. Você é um ótimo chefe, mas não é bom contador. Você é um ótimo jornalista, mas não sabe escrever um plano de marketing. Então, uma das coisas boas da IA é que ela é muito boa em todas as outras coisas em que você é ruim. Então, um bom empreendedor se foca nas coisas em que é bom.

Temos algumas evidências ou números sobre ideias geradas para negócios pela IA que foram ao mercado e foram testadas no mundo real?

Muito das evidências ainda são muito iniciais. Eu falo no livro sobre um estudo dos meus colegas que mostra que eles pediram a empreendedores para gerar 200 ideias. E pediram para a IA para gerar outras 200. Avaliadores externos escolheram ideias para investir. De 40 ideias escolhidas, 35 vieram da IA e apenas 5 dos humanos da sala, em uma escolha feita por pessoas. Algumas dessas ideias foram lançadas. Nós ainda estamos no início disso. Acabamos de completar um estudo em Procter & Gamble, que é uma grande empresa de produtos de consumo, e eles encontraram mais inovação entre as pessoas que usam a IA. Mas ainda precisa de um trabalho humano para fazer o sucesso acontecer. A IA é mais um companheiro, uma cointeligência para a geração de ideias.

O senhor diz no livro que a IA é bom para os estudantes. Ela pode ser como um professor, para ajudar nos estudos, nos testes e tudo mais. Mas, ao mesmo tempo, temos um movimento, especialmente aqui no Brasil, para tentar remover os celulares da sala de aula e das escolas. Como vê essas duas coisas? Se as escolas, às vezes, retiram os celulares na escola, isso pode trazer efeitos para os estudantes, por deixá-los longe da IA?

A evidência está crescendo de que a IA pode ajudá-los muito a aprender, mas tem que ser algo guiado por professores. Estudantes não devem usar a IA em uma sala de aula sem orientação dos professores. Temos um estudo que mostra que se você tende a pedir apenas respostas, você pensa que aprendeu, mas não, você apenas escreve a resposta. No entanto, há agora um aumento de estudos que mostram que se os professores ajudam a criar os prompts certos, usados como parte de um segmento de aula, há um grande aumento na aprendizagem. As duas coisas são compatíveis. 

Qual o caminho para o uso da IA na escola?

Não queremos estudantes tirando o celular e recebendo a resposta para um problema de matemática na mesa. Precisamos pensar atentamente em como, fora da aula, um estudante pode usar a IA para se conectar com o que faz na aula. Um professor pode guiá-los em como usar a IA para aprender. Mas, como qualquer outra forma eletrônica, pode gerar distração. Quando as calculadoras surgiram nos anos 1970, professores de matemática não sabiam o que fazer e elas foram proibidas. E então descobrimos como ensinar matemática com calculadoras. Às vezes, você tem que aprender a fazer à mão e depois  usar calculadora para a matemática mais avançada. A mesma coisa tem que acontecer com a IA.

Capa do livro "Co-Inteligência", de Ethan Mollick

A IA pode ser usada para criar coisas ruins, como armas químicas e estratégias para cometer crimes. Como governos e empresas podem atuar para tentar prevenir esse uso? 

Há muitos riscos da IA. Uma das grandes vantagens do mundo é que a maioria dos criminosos não são tão inteligentes ou competentes. A maioria dos criminosos não conseguiria criar uma arma biológica. E se a IA ajudasse você a fazer esse tipo de coisa? Neste momento, os modelos não são bons o suficiente, estamos testando isso. Por outro lado, algumas pessoas dirão que a internet também te permite ver como fazer uma bomba, e isso não faz muita diferença A pergunta maior é o que acontece com a resposta do governo. Desde que escrevi o livro, os governos se afastaram da regulação da IA ainda mais do que antes. 

Quais as razões deste afastamento?

Em parte pela nova administração dos EUA e, em parte, isso se deve a uma corrida tecnológica. O DeepSeek, nodelo chinês que saiu em janeiro, foi a primeira vez em que um modelo de linguagem chinês esteve na fronteira de modelos abertos.  Ele não era necessariamente melhor que os modelos fechados, mas um grande passo à frente para a China. Isso se tornou um caso de competição internacional. Então, agora, tanto na Europa como nos EUA e na China, nós vemos menos regulação. 

Qual é a melhor ideia que a AI te deu?

Eu recebo pequenas ideias o tempo todo. Meu filho está prestes a ter um aniversário. A IA ouve tudo sobre ele e ajuda com coisas como “encontre um presente que eu não tinha pensado antes”. Quando eu escrevo algo, eu sempre escrevo sozinho. E depois a AI lê e me dá sugestões de como fazer melhor. E às vezes são ótimas sugestões para levar as coisas mais longe. Eu tenho ideias para inovações, coisas que peguei e uso. No livro, eu falo sobre ser um ciborgue trabalhando com a AI o tempo todo. Eu não poderia te dizer quais ideias são minhas, porque eu trabalho com isso de uma forma que combina o crédito.

É a metáfora sobre o ciborgue e centauro, citada no livro. 

Exatamente. Então, no modelo centauro, eu dividiria o trabalho onde tem um IA que trabalha de forma separada. A AI faz a inovação, eu faço a escrita. E depois eu poderia te dizer o que a AI fez. Em um modelo ciborgue, você combina o seu trabalho junto. Eu vou para a AI centenas de vezes por dia para pequenas coisas e para grandes coisas. Eu não poderia te dizer qual é o trabalho da AI e qual não porque é combinado com o meu trabalho.

Qual o principal conselho que o senhor daria sobre o uso de IA?

Simplesmente usar. Você tem que usar bastante. Essa é a grande barreira no caminho. Muitas pessoas simplesmente não usam. É grátis. Tente usar os melhores modelos e você vai encontrar algumas coisas interessantes no resultado.

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