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Hong Kong exige a liberdade que sempre teve, diz especialista

Para a professora Victoria Tin-bor Hui, a violência policial nos protestos é tanta que não há necessidade de o governo chinês enviar tropas do exército

VICTORIA TIN-BOR HUI ;Hong Kong tem garantias, possui um nível de autonomia. As pessoas estão exigindo o que foi prometido a elas, algo que elas cresceram tendo, não demandam algo algo novo” / Divulgação

VICTORIA TIN-BOR HUI ;Hong Kong tem garantias, possui um nível de autonomia. As pessoas estão exigindo o que foi prometido a elas, algo que elas cresceram tendo, não demandam algo algo novo” / Divulgação

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Carolina Ingizza

Publicado em 16 de agosto de 2019 às 18h55.

Última atualização em 21 de outubro de 2019 às 15h55.

Os cidadãos de Hong Kong estão enfurecidos. Protestos acontecem no território chinês, que vive sob um status especial, desde que o governo local tentou aprovar uma lei que permitiria a extradição de pessoas de Hong Kong para o governo central. A população, que desde o fim da colonização britânia em 1997, vive sob suas próprias leis, num regime democrático e capitalista, não aceitou a medida.

Depois de atos de 2 milhões de pessoas em junho, o governo local suspendeu o projeto de lei, mas isso não acalmou às ruas. Com demandas variadas e, principalmente, contra o uso excessivo de violência policial, os protestos continuam.

No começo desta semana, a violência vista em um ato no aeroporto internacional de Hong Kong foi destaque no noticiário global. O tema também foi abordado pelo presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, que disse ter sido informado de que a China mantém tropas perto da fronteira de Hong Kong. Depois, ele afirmou acreditar que o presidente chinês Xi Jinping iria resolver o problema de forma “humana”.

Para entender mais sobre o tópico, EXAME conversou com a professora Victoria Tin-bor Hui, associada da universidade norte-americana de Notre Dame e autora de uma pesquisa sobre a Revolução dos Guarda-Chuvas de Hong Kong, uma série de protestos que aconteceram na ilha em 2014. Veja os principais trechos da entrevista:

Antes de mais nada, é importante explicar qual o status legal de Hong Kong no território chinês, e por que ele é motivo de disputas?

Em 1984, foi assinada a Declaração Conjunta Sino-Britânica, e ela garantiu a Hong Kong um alto nível de autonomia, com as pessoas de lá governando a área, em um modelo de um país, dois sistemas. Quando Margaret Thatcher [antiga primeira-ministra britânica] estava negociando, a posição britânica era “talvez possamos convencer os chineses de que vamos devolver Hong Kong, mas mantemos a administração do território”.

A negociação foi tensa, mas Pequim permitiu que Hong Kong mantivesse um status especial, costumes separados e moedas diferentes. As leis, a liberdade de Hong Kong, tudo isso foi mantido. Depois, tudo isso foi oficializado na Lei Básica de Hong Kong, promulgada em 1991. Acho que é importante entender isso porque muitas pessoas me perguntam “Hong Kong faz parte da China, o que você esperava?” ou “eu posso usar Facebook e Twitter em Hong Kong, isso é maravilhoso, não posso fazer isso na China”.

Tudo porque as pessoas não entendem que Hong Kong tem garantias, possui um nível de autonomia em tudo e isso não mudou. Então, as pessoas em Hong Kong estão exigindo o que foi prometido a elas, algo que elas cresceram tendo, em vez de pedir por algo novo. Entender o status de Hong Kong explica quase tudo que está acontecendo agora com os protestos.

Por que os protestos começaram, há cerca dois meses?

Na verdade, começaram antes. O grande protesto de um milhão de pessoas foi em 9 de junho, mas não foi o primeiro. Em maio, e mesmo antes disso, havia alguns protestos, mas eles não eram tão grandes. Carrie Lam [a diretora-executiva de Hong Kong] começou a introduzir essa ideia de lei de extradição em fevereiro. Por algum tempo, as pessoas estavam quietas e parecia que ela ia conseguir aprovar isso discretamente.

Há também o fato de que, ainda que a lei fundamental prometa a Hong Kong sufrágio universal a partir de 2007, isso nunca foi implementado. Então o secretário-chefe é realmente leal a Pequim e os membros do conselho legislativo eleitos para os cargos sempre são colocados na minoria. Mesmo em 2016, depois da Revolução dos Guarda-chuvas de 2014 em Hong Kong, quando alguns jovens, que emergiram do movimento, foram eleitos para o conselho, seis foram desqualificados. Na prática, o governo tem votos suficientes para passar qualquer coisa no conselho legislativo. E parecia que isso seguiria esse caminho. Mas aí, quando o governo formalmente introduziu o projeto de lei, tentou ignorar os procedimentos legais. Isso porque os democratas estavam fazendo o máximo para atrasar o processo, até se recusando a formar um comitê em abril e no começo de maio.

Nessa época, houve protestos na frente do prédio do legislativo, e foi a primeira vez que a mídia internacional começou a prestar atenção no que estava acontecendo em Hong Kong. Também, na primeira semana de maio, os líderes da Revolução dos Guarda-chuvas foram presos por até 16 semanas. Quando eles estavam sendo levados, pediram para o povo de Hong Kong sair às ruas e protestar contra o projeto de lei de extradição. E já no primeiro domingo de maio, havia 100.000 pessoas na rua.

Em junho, quando o projeto de lei deveria ir diretamente para sua leitura e deliberação, houve o grande protesto. A polícia usou violência excessiva contra os manifestantes. Alguns dias depois, Carrie Lam disse que o projeto de lei havia sido suspenso. Só que naquele momento, as pessoas já estavam tão irritadas que se perguntavam “por que só suspender, por que não retira completamente da pauta?”. Porque enquanto estiver sobre a mesa, e ainda está, o governo pode recolocar em votação, e eles têm os votos para aprovar qualquer coisa. Por isso que o número de pessoas nas ruas no dia seguinte ao anúncio de Lam, no domingo, 16, dobrou para dois milhões. Foi a partir daí que o mundo realmente começou a prestar atenção.

O que os manifestantes pedem do governo agora que o projeto de lei está suspenso?

Agora algumas demandas principais. A primeira é que o governo formalmente retire o projeto de lei. A população também pede a abertura de investigações independentes para averiguar os abusos policiais e que as acusações contra os manifestantes presos fossem retiradas. Na lógica dos manifestantes, o governo admitiu que errou, o projeto de lei foi suspenso. Então qual a razão de prender as pessoas que protestaram contra isso? Deveria haver uma espécie de anistia para os presos e acusados. Nessa época, também começou um movimento pedindo que Carrie Lam renuncie. Agora, as demandas mudaram um pouco e pedem também há a reabertura da discussão sobre sufrágio universal. Novamente, isso não é uma nova demanda, porque isso que causou a Revolução dos Guarda-chuvas de 2014.

Como os protestos escalaram até então?

Você viu o caos na terça-feira, na segunda, quando os voos foram cancelados. A escalada aconteceu no último domingo, 11 de agosto. Todo esse tempo, o governo vem se recusando a atender qualquer uma das demandas. Carrie Lam só se pronuncia dizendo que o projeto de lei “está morto”, ao que os manifestantes respondem: “se está morto, porque não a retirar totalmente da pauta?”.

Ao mesmo tempo, o uso de força da polícia é legitimado pelo governo, que afirma que os policiais não fizeram nada errado. O povo questiona: “então por que estão com medo de uma investigação independente?”. A sociedade de Hong Kong está sob uma grande nuvem negra, e as mãos da polícia estão cada vez mais sujas de sangue. Ainda assim, o governo não atende às demandas, então os protestos continuam. Os manifestantes organizam agora esses “protestos relâmpago”, bloqueando ruas, já que a polícia se recusou a emitir licenças.

Em Hong Kong, você precisa de uma autorização para protestar. Sem isso, as manifestações são categorizadas como motim e você pode ser acusado e preso.No último domingo, a violência atingiu um novo ápice: com mais gângsters batendo nas pessoas, incluindo jornalistas. E a polícia impede que ambulâncias cheguem imediatamente aos feridos, então eles precisam esperar ou entrar para ajudar as pessoas sem autorização.

Agora, há voluntários que vão em todos os protestos para tentar fornecer primeiros socorros, e mesmo esses socorristas voluntários estão sendo atacados. Alguns foram presos. E isso tem enfurecido a população, que quer mostrar ao mundo que a polícia tem cometido crimes contra a humanidade. Assim, no domingo eles foram ao aeroporto internacional apostando que a polícia não iria utilizar força excessiva lá, por causa dos turistas e do fluxo de pessoas. Na segunda-feira, os responsáveis pelo aeroporto decidiram suspender os voos na segunda, numa tentativa de culpar os manifestantes por “estragar a economia de Hong Kong”.

Há algo que as Nações Unidas possam fazer para ajudar a população de Hong Kong?

O título de um documentário sobre Joshua, um dos líderes distritais durante a Revolução dos Guarda-chuvas, é chamado “adolescentes contra o superpoder”. Quando esses jovens apelaram ao G20 [que se reuniu no Japão, no fim de junho], ninguém os ouviu. Agora, os manifestantes querem que o Congresso dos Estados Unidos aprove o Ato de Democracia e Direitos Humanos de Hong Kong, de modo que a China, se quiser se aproveitar da economia e do status especial de Hong Kong, respeite as liberdades das pessoas de lá. Outro ponto central do ato é impor sanções às pessoas com sangue nas mãos. Quando a ONU emitiu um comunicado dizendo que há evidências de que a polícia usa força excessiva e essas armas de controle de massas de formas que violam as normas internacionais e regulações, isso já ajudou. As pessoas deveriam fazer mais comunicados e prestar atenção ao que está acontecendo, qualquer comentário nesse sentido ajuda.

A imprensa internacional mostrou algumas imagens do exército chinês perto da fronteira de Hong Kong. Se os protestos continuarem, eles pode vir a usar força militar?

O governo central quer assustar as pessoas de Hong Kong mostrando vídeos e emitindo esses comunicados para se certificar de que todos estão cientes de que eles estão prontos para usar força massiva em Hong Kong. A questão é: já há 6.000 tropas dentro de Hong Kong. Eles só têm que sair às ruas. No entanto, nós não acreditamos que eles pretendem fazer isso, porque eles não precisam.

A polícia se tornou tão bruta que os policiais e os gângsters já estão fazendo o trabalho, já há muito sangue derramado em Hong Kong mesmo sem Pequim utilizar suas tropas. Isso é importante porque muitas pessoas pensam “ok, Hong Kong ainda é diferente, Pequim não enviou tropas, está tudo bem”. A gente não sabe se policiais e militares chineses já estão atuando em Hong Kong com uniforme policial local. Mas muitos dizem que já é o caso. Eles apontam que alguns policiais falam cantonês com sotaque e usam termos muito usados na China, em vez de expressões de Hong Kong. De vez em quando, eles falam em mandarim entre si, o que é estranho, já que em Hong Kong se fala cantonês.

Esta semana, o presidente Donald Trump falou sobre a situação de Hong Kong. Ele postou no Twitter que acredita que o presidente chinês Xi Jinping quer resolver o problema de forma “humana” e propôs um encontro entre os dois sobre o tema. Como os EUA poderiam ajudar na situação?

Se você não sabe o que está fazendo, não diga coisas estúpidas. Antes de ele dizer isso, ele estava falando que a inteligência mostrou para ele que Pequim tem grandes tropas na fronteira com Hong Kong e que ambos os lados deveriam manter a calma. Foi a pior declaração que um presidente poderia fazer. Ao invés de dizer para Pequim respeitar o direito das pessoas de Hong Kong de protestar, talvez conversar com os manifestantes e responder às demandas, ele disse para todos os lados manterem a calma. Foi quase como se ele tivesse justificado a entrada das tropas em Hong Kong. Depois, ele melhorou, dizendo que “talvez Xi Jinping tenha que fazer algo”.

O problema é que Trump tem usado Hong Kong como instrumento de sua guerra comercial com a China. Dizer ao governo de Pequim, de Hong Kong e às forças policiais que eles sim precisam reduzir a violência e atender a algumas das demandas das pessoas de Hong Kong seria um tipo de atenção positiva. Agora, o quão razoável são as exigências de Hong Kong? Porque as demandas estão sendo exigidas há dois meses. Um professor local, que conduz pesquisas há décadas, fez uma pesquisa de opinião que mostra que 79% da população de Hong Kong quer que haja investigações independentes sobre os abusos policiais; 73% também disseram que desejam que o projeto de lei seja formalmente retirado. Por que o governo não pode fazer isso? Eu espero que da próxima vez que o presidente americano tuitar sobre isso, ele fale sobre essas questões.

Há chances de os protestos se espalharem para o restante da China?

As divergências entre Hong Kong e as pessoas do resto da China têm aumentado. Especialmente depois de 21 de julho, quando alguns manifestantes desfiguraram o símbolo nacional na porta do escritório de Pequim em Hong Kong. A maior parte dos chineses, por serem muito nacionalistas, não apoiam isso. Antes disso, havia pouca cobertura na China sobre o que estava acontecendo em Hong Kong. Eles nem queriam dizer que havia protestos, porque aí eles precisariam dizer sobre contra o que eles estão protestando.

Depois da desfiguração dos símbolos nacionais, começou-se a falar na China de pequenos grupos de vândalos que estavam tentando destruir os sistemas do país. E agora eles escalaram essas declarações e chamaram de terrorismo. Então, muitos chineses, por não saberem o que está acontecendo, não apoiam. E mesmo os que vivem fora da China não têm muita empatia, eles cresceram acreditando que as pessoas de Hong Kong são mimadas. “Vocês têm tanto já, nós cuidamos bem de vocês, porque vocês estão protestando?”. Depois, na terça-feira, os manifestantes do aeroporto estavam tão nervosos que bateram em duas pessoas. Ambos estavam tirando fotos de perto dos manifestantes, normalmente as pessoas não tiram fotos assim. Os manifestantes colocam máscaras para não serem reconhecidos pela polícia e evitarem de serem presos. Então, as pessoas que tiram fotos dos rostos são suspeitas. Na terça, eles foram cercados e confrontados. O primeiro homem, quando confrontado, derrubou sua identidade chinesa e as pessoas pesquisaram seu nome.

Descobriram que ele é um oficial de polícia de Shenzhen [região chinesa vizinha a Hong Kong]. O segundo confrontado disse que é um repórter do Global Times [jornal chinês], mas ele não estava utilizando o colete de identificação de imprensa. Então, só o que as pessoas chinesas enxergam é como este rapaz foi amarrado a um carrinho de bagagem e foi maltratado, o que as enfurece. De vez em quando ainda vemos algumas pessoas do resto do território chinês dizendo que apoiam Hong Kong, mas é bastante difícil.

É possível que os protestos derrubem Xi Jinping do poder?

Não, não acho que é o caso. As pessoas de Hong Kong realmente não se importam com o que acontece na China, eles só se importam com o que acontece em Hong Kong. Então, chamar isso de Primavera Árabe, dizer que vai derrubar o regime, isso não é algo importante para eles. Eles não ligam se o resto dos chineses amam o sistema, o regime de ditadura do partido único, se eles se importam somente com ganhar dinheiro e não com liberdade. As pessoas de Hong Kong não têm nenhum desejo de derrubar a ditadura do partido único, eles só querem que Pequim cumpra o que prometeu e não interfira.

Mas isso pode levar à independência de Hong Kong?

Qualquer pedido de independência é realmente fraco agora. É importante apontar também que não houve nenhum pedido de independência durante a Revolução dos Guarda-chuvas, nenhuma vez. Os pedidos de independência aconteceram depois, quando as pessoas sentiram que Hong Kong não tinha futuro se a autonomia já estava sendo extinta por Pequim. A legislação expira em 2047, e muitos jovens ainda serão adultos lá, então eles pensaram “se vocês já estão matando Hong Kong agora, então talvez seja melhor só pedir independência”. Mas há pouco apoio a esses pedidos. Só o partido nacionalista de Hong Kong pede por isso e eles tem cerca de 30 membros.

O que deve acontecer nos próximos dias?

Nessa semana, há alguns protestos programados contra os abusos policiais. Os trabalhadores médicos têm organizados atos, em vez de aproveitar suas folgas, com o lema “Polícia de Hong Kong tenta matar cidadãos de Hong Kong”, para explicar a extensão das lesões que essas pessoas sofreram durante seu período sob custódia da polícia. Outro problema é que muitos jovens têm evitado ir ao hospital depois dos protestos porque a polícia vai até lá para prendê-los. Os funcionários dos hospitais estão realmente indignados e fazem protestos diários. Além disso, estudantes estão chamando uma assembleia para pedir atenção internacional e que o Congresso americano aprove o projeto de lei e que outros países façam o mesmo, aplicando sanções contra o governo chinês.

Este domingo, a Aliança Cívica pediu permissão para uma marcha, mas a polícia só permitiu demonstrações no Victoria Park. O problema é que se as pessoas saírem da zona permitida, isso se torna aglomeração ilegal. O que os organizadores estão falando é para as pessoas simplesmente andarem, não necessariamente em direção ao parque, porque qualquer atitude da polícia seria rebatida com “vocês estão dizendo que não temos autorização nem para andar na rua?”. Então, por isso que é importante que haja atenção internacional, assim a polícia talvez tenha mais cuidado do que teve, por exemplo, no último domingo.

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