DIQUE NA HOLANDA: mar de um lado e um grande lago de água doce do outro (Elm3r/Flickr)
Flávia Furlan
Publicado em 10 de março de 2018 às 10h51.
Última atualização em 10 de março de 2018 às 10h51.
Leeuwarden — A estrada de 200 quilômetros que liga a capital Haia, no sudeste da Holanda, ao extremo norte do país, só existe porque na década de 1920 os holandeses decidiram construir, entre as províncias da Holanda do Norte e da Frísia, o dique gigante Afsluitdijk, de 32 quilômetros de comprimento, 90 metros de largura e uma altura de mais de 7 metros acima do nível do mar.
De um lado está o mar e, do outro, um lago de água doce que foi formado depois da construção do dique e que, no início de março, com as temperaturas negativas na região, fica todo congelado. Algumas vezes ao dia, o tráfego na estrada é interrompido para a passagem de embarcações. Toda essa estrutura permitiu a existência de um pedaço da Holanda que está abaixo do nível do mar e poderia estar submerso devido a enchentes e tempestades frequentes. É um exemplo de como os holandeses têm uma história longa de desenvolvimento de tecnologia para lidar com os desafios hídricos.
E é justamente naquela região, na cidade de Leeuwarden, que a Holanda criou em 2003 um polo internacional para estudos sobre a água. Chamado de Water Campus, é um dos principais centroseuropeus de tecnologia no setor. A sede é parecida com as das empresas de tecnologia do Vale do Silício, com paredes abertas, jovens jogando pingue-pongue na entrada e almofadas para quem precisa descansar. Mas, por ali, o foco não é descobrir o próximo aplicativo que vai ganhar o mundo ou o dispositivo que vai conquistar a garotada, e sim o equipamento que vai ajudar as pessoas e as empresas a ser mais eficientes no uso da água.
A especialidade do campus é unir setor público e privado. Ele conecta mais de 180 empresas do mundo a 50 institutos de pesquisa, todos interessados em desenvolver novos produtos para economizar ou tratar a água em fábricas ou casas. No total, o campus tem 65 pesquisadores de áreas como química, engenharia e biologia com nível PhD, de 20 universidades europeias. Normalmente, eles ganham bolsas para desenvolver estudos no campus e, ali, são conectados a empresas que acabam direcionando o trabalho — há reuniões a cada três meses com as empresas. À sua disposição, há alunos de mestrado e cursos que podem ser feitos em qualquer universidade da Europa. “As empresas procuram desenvolver novas soluções por aqui, porque temos uma abordagem de tecnologia voltada para o mercado”, diz Hein Molenkamp, diretor da Water Alliance, um dos parceiros que administram o campus.
A estrutura desenvolvida ali incentiva a inovação. O campus mantém à disposição dos alunos e das empresas laboratórios de biologia, outros para montagem dos equipamentos, impressora 3D para imprimir peças inéditas e áreas para testar os demos — neste último caso, um acordo com o governo desobriga os empreendedores de obter uma licença para os testes. Na última década, 27 empresas surgiram com base no desenvolvimento dessas tecnologias, e muitas outras se beneficiaram do que foi feito ali. O campus conta com financiamento do Parlamento Europeu e de parceiros.
E o que tem sido desenvolvido ali? No campus, já foi criado um chuveiro que trata a água usada, de uma forma que ela não é despejada pelo ralo e pode ser usada novamente para o banho. Outro é um equipamento que detecta as bactérias na água em 4 horas, um processo que pode levar quatro dias em um laboratório comum. Num outro projeto desenvolvido ali, um equipamento é capaz de misturar água doce e salgada e gerar energia. O projeto, em desenvolvimento há 10 anos, está em fase de testes no dique gigante de Afsluitdijk, que tem água doce de um lado e salgada de outro. Com o sucesso alcançado, o empreendedor que o desenvolveu agora procura recursos para montar uma usina de geração de energia elétrica utilizando essa tecnologia. O plano é ficar pronta em 2022, com capacidade de 1 megawatt.
O Water Campus tem ganhado projeção pelo mundo. Ali será testada uma tecnologia que deve ajudar a brasileira Cenibra, fabricante de celulose de eucalipto, a reduzir o consumo de água na fábrica em Belo Oriente, Minas Gerais, uma região afetada pelo acidente da Samarco em 2015. O equipamento permitirá que a empresa trate a água usada na produção, em vez de descartá-la. “O que a Cenibra consome de água daria para abastecer uma cidade de 1 milhão de pessoas”, diz o brasileiro Luewton Agostinho, professor na universidade holandesa NHL e um dos participantes do projeto.
Não é à toa que a Holanda desenvolveu um polo de estudos nessa área. A preocupação com a água no país é histórica. Um terço de seu território está abaixo do nível do mar. Desde 1800, a Holanda começou a criar conselhos públicos, que no modelo atual são eleitos pela população a cada quatro anos e têm permissão para cobrar impostos e fazer as obras necessárias para abastecer, armazenar e tratar a água, bem como para manter a segurança contra enchentes e tempestades. No total, 98% das casas na Holanda estão ligadas à rede pública de saneamento (no Brasil, são 30%). Esses conselhos, que eram 1700 no século 19, hoje são 24. Em 2014, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico reconheceu a gestão do sistema de água do país como modelo para o mundo.
O investimento público do setor de água holandês é de cerca de 4 bilhões de euros ao ano. Na Holanda, a água é um tema prioritário e não compete no orçamento com outras rubricas. Os recursos são praticamente públicos para as obras e serviços, ou do governo federal ou da coleta de impostos dos conselhos. “O governo identifica o problema, e o setor privado e centros de pesquisa tentam encontrar a solução”, diz Jan Busstra, diretor de políticas internacionais para a água do ministério de Infraestrutura e Gestão de Água. Um modelo a ser observado pelo Brasil.