Wolfgang Ischinger, presidente da Fundação Conferência de Segurança de Munique, durante entrevista para a EXAME (Kuhlmann/MSC/Divulgação)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 23 de novembro de 2024 às 06h04.
Rio de Janeiro - Wolfgang Ischinger, ex-embaixador da Alemanha nos EUA, acompanha as grandes questões internacionais de posição privilegiada há 50 anos. Para ele, o mundo vive uma série de crises, mas há sinais de esperança. Uma delas é a expectativa de que a Guerra da Ucrânia, perto de completar três anos, pode acabar em breve.
“Há uma chance real, no próximo ano, de realmente encontrar um caminho para terminar esses conflitos, pelo menos para terminar os combates militares. Há uma diferença entre terminar os combates e escrever e concordar com um acordo de paz”, diz Ischinger, em conversa com a EXAME.
Ele avalia que a resistência ucraniana está tirando a disposição da elite russa de seguir apoiando os planos militares de Vladimir Putin. Ao mesmo tempo, a chegada de Donald Trump ao poder abre caminho para que o novo governo dos EUA possa buscar formas de convencer o líder russo a aceitar algum tipo de cessar-fogo, sendo que as questões territoriais ficariam para serem resolvidas no futuro. “Tivemos situações, quando guerras terminaram, em que o acordo final, em termos de assentamento legal, levou anos após o fim das hostilidades”, diz.
Wolfgang Ischinger é presidente do conselho da Fundação Conferência de Segurança de Munique (MSC), entidade que organiza um dos principais eventos anuais sobre defesa e questões militares do mundo. A entidade realizou um encontro de líderes no Rio de Janeiro nesta semana, após a reunião do G20, com autoridades de dezenas de países.
Hoje com 78 anos, ele atua na diplomacia há cinco décadas. Começou como funcionário da ONU em Nova York nos anos 1970, depois fez carreira na diplomacia alemã e chegou ao posto de embaixador nos Estados Unidos em 2001, pouco antes dos atentados de 11 de setembro. Ficou no país até 2006 e em seguida, assumiu o posto de embaixador da Alemanha no Reino Unido. Depois, se tornou presidente da MSC, um dos principais fóruns de defesa do mundo, entre 2008 e 2022.
Ele conversou com a EXAME no dia seguinte ao final da reunião de líderes do G20, no Rio de Janeiro, em um hotel na Barra da Tijuca, onde ministros e chefes militares de vários países, como Argentina, Brasil, Alemanha e Índia, debatiam saídas para as crises de segurança global. Na conversa, ele dá sua visão sobre o risco de a China invadir Taiwan, qual poderá ser o papel e como começar a sair deste ambiente de multicrises que marca o cenário internacional.
Como avalia a atual escalada no conflito entre Rússia e Ucrânia? Há risco de a situação evoluir para uma guerra direta entre EUA e Rússia?
Vamos, antes, definir o que significa escalada no contexto da guerra da Ucrânia. O Ocidente, considerando aqui os Estados Unidos e seus aliados da Otan, desde o início do conflito tem exercido uma extrema contenção. Como Ocidente, dissemos que não seremos parte desta guerra. Não vamos enviar tropas para esta guerra. O chanceler alemão (Olaf Scholz) tem sido particularmente enfático sobre isso. Segundo, temos observado, pelos últimos dois anos e meio, que o agressor, a Rússia, decidiu escalar repetidamente, primeiro ao iniciar a invasão em fevereiro de 2022. Depois, ao trazer de várias maneiras a ameaça do uso de armas nucleares, o que surgiu novamente agora. E terceiro, ao usar força militar deliberadamente contra instituições civis e infraestruturas, incluindo energia, estações de trem civis, hospitais etc. São violações de todas as normas do direito internacional que conheço. E, por último, não é o Ocidente, mas é a Rússia que agora trouxe capacidades militares de um terceiro país; falando da Coreia do Norte, se os relatos forem corretos, então estamos lidando agora com literalmente milhares de soldados norte-coreanos sendo implantados no território russo. A escalada aconteceu nesta guerra apenas do lado russo e não do lado ocidental.
Como avalia a reação do Ocidente?
Não sou porta-voz do presidente Joe Biden ou do chanceler Scholz, mas pesamos muito cuidadosamente como deveríamos calibrar nosso apoio à Ucrânia em termos de apoio financeiro, econômico, político e militar, e sempre fizemos isso com um senso de que queremos ajudar a Ucrânia, mas sem criar um pretexto para que esta guerra se amplie. Houve um senso significativo de responsabilidade e contenção do lado ocidental e o exato oposto do lado russo. Sugestões foram feitas, inclusive por mim, de que deveríamos mudar nossa estratégia. Sugeri dizer aos russos que, se continuarem bombardeando instalações civis em violação ao direito internacional, eles deveriam estar cientes de que isso poderia levar à consequência de nós entregarmos armas mais capazes, de maior alcance, mais significativas à Ucrânia, que poderiam realmente atingir alvos dentro da Rússia. O governo da Alemanha até agora não deu um único passo nessa direção. Continuamos a exercer uma contenção muito determinada.
Como sair deste impasse e evitar uma crise ainda maior?
A questão da escalada é uma questão que precisamos dirigir à Rússia. Espero que o início da administração Trump não signifique que os russos possam escalar ainda mais, mas que eles precisarão ser mais cuidadosos em suas tentativas de destruir a Ucrânia, o que tem sido o objetivo original da guerra. Putin não o abandonou, porque ele acredita que somos fracos, que vamos ficar cansados e perder nossa energia. Isso é um problema não apenas para a Ucrânia, mas para a Europa como um todo. É uma questão fundamental de segurança europeia, e por isso devemos ajudar a Ucrânia a defender sua integridade territorial e soberania porque, caso contrário, a caixa de Pandora será aberta.
Poderia detalhar mais sua visão de como o novo governo de Trump? Se ele suspender ou reduzir a ajuda militar para a Ucrânia, a Europa conseguiria compensar isso?
Eu não estou tão preocupado quanto alguns estão de que veremos, em 21 de janeiro, uma decisão de Donald Trump de parar todo tipo de apoio à Ucrânia. Ele tentará avançar para um fim relativamente rápido do conflito. Para isso, ele precisa não apenas convencer o Sr. Zelensky, ele precisa convencer o Sr. Putin. Tenho certeza de que os conselheiros na futura Casa Branca dirão a Donald Trump: "Sr. Presidente, temos que garantir que não vamos permitir que Putin vença, porque se isso acontecer, você parecerá o perdedor. E não é do interesse americano ser visto como o perdedor em uma guerra que durou tanto, quase três anos”. Acho que Trump está interessado em um fim rápido para a guerra, mas não em uma capitulação pela Ucrânia e uma vitória de Putin. Vamos lembrar, aliás, quem foi o primeiro presidente dos Estados Unidos que deu armas letais à Ucrânia. Não foi Obama, não foi Biden. Foi o governo Trump, em 2017. Espero não estar sendo muito otimista, mas acho que há uma chance real, no próximo ano, de realmente encontrar um caminho para terminar esses conflitos, pelo menos para terminar os combates militares. Há uma diferença entre terminar os combates e escrever e concordar com um acordo de paz.
Por que o senhor está tão otimista sobre a possibilidade de fim destas guerras? Como isso poderia ser alcançado?
Quando penso em uma situação de negociação, a primeira pergunta é: a liderança russa está realmente interessada em uma negociação? A liderança russa não estará interessada se seus líderes militares disserem a eles, no Kremlin, todas as manhãs: "Sr. Presidente, estamos fazendo progresso. Acabamos de recuperar mais 10 quilômetros, mais uma vila aqui, uma cidade ali." A primeira condição é que ajudemos a Ucrânia a se manter firme e assim por diante. Isso, esperançosamente, criará uma mentalidade em Moscou de que pode realmente ser vantajoso sentar-se à mesa de negociações e concordar com arranjos que possam, conceitualmente, levar a algum tipo de arranjo territorial.
Avalia que a Ucrânia aceitaria ceder territórios?
A questão é que os arranjos territoriais podem ser provisórios ou permanentes. Até hoje, o governo da China, que continuamos acusando de ser muito próximo da Rússia, recusou-se a reconhecer a anexação da Crimeia pela Rússia [feita em 2014]. Recusou-se a aceitar e reconhecer a anexação das quatro regiões no Donbas. Se uma das maiores potências do mundo, uma amiga da Rússia, se recusa a reconhecer essas anexações, então isso poderia significar que poderíamos ter uma cessação das hostilidades. Mas isso não significa que a Crimeia e as quatro regiões, ou qualquer parte da Ucrânia que for retirada da Ucrânia, serão necessariamente, legalmente, em termos de direito internacional, aceitas. Isso pode significar um arranjo provisório. Tivemos situações, quando guerras terminaram, em que o acordo final, em termos de assentamento legal, levou anos após o fim das hostilidades. Então, mesmo que a Ucrânia precise aceitar perdas dolorosas de certos territórios, espero que isso possa ser colocado em uma linguagem que deixe aberta a questão de um arranjo legal e aceito internacionalmente no longo prazo. Os chineses são muito inteligentes nesse ponto.
Como vê o risco de a China invadir Taiwan nos próximos anos?
Deixe-me falar dois pontos sobre isso. Primeiro, muitas pessoas comentem o erro de achar que China e Taiwan e Rússia e Ucrânia são conflitos totalmente separados. Eles fazem parte de um jogo maior. Se o Ocidente deseja garantir que a China pense duas vezes antes de atacar Taiwan, uma boa maneira é demonstrar determinação em apoiar a Ucrânia. Estive na China no início deste ano. Os chineses estão assistindo ao que está acontecendo na Ucrânia todos os dias, a cada hora, com muito cuidado. Se eles tiverem a impressão de que os Estados Unidos estão prestes a abandonar um aliado, como abandonaram o Afeganistão três anos atrás, isso seria um sinal para algumas pessoas em Pequim de que poderiam começar algo com Taiwan. Segundo ponto: na minha análise, a verdadeira prioridade para a liderança chinesa neste momento não é uma vitória militar contra Taiwan. Eles continuarão a dizer que não descartam uma ação militar, mas a verdadeira prioridade para a liderança chinesa é restaurar o crescimento econômico.
Como o senhor vê a situação econômica chinesa?
Eles têm enormes questões: problemas demográficos, crise imobiliária, não têm crescimento. Nossa própria indústria automobilística sofre porque não consegue vender automóveis de luxo suficientes na China, o que é um sinal de que algo não está funcionando bem lá. Se a prioridade deles é a restauração do crescimento econômico, eles sabem muito bem que, se começarem uma aventura militar contra Taiwan, o crescimento deles cairá para zero, porque os americanos e os taiwaneses bloquearão o Mar do Sul da China. Haverá sanções. Talvez a Europa seja convidada a se juntar às sanções etc. Em outras palavras, todo um inferno se abrirá para a economia chinesa, e isso não é o que eles querem neste momento. Minha suposição é que, no futuro previsível, 2025-2026, não olho além de 2026, não acho que a China tomará uma ação militar sobre a questão de Taiwan. Isso não significa que não devamos ficar alarmados, mas não há um grande risco de acordarmos amanhã de manhã ouvindo sobre um ataque militar chinês contra Taiwan.
O senhor disse aqui no Rio de Janeiro que temos múltiplas crises, em que governos autoritários fazem gestos agressivos e não são responsabilizados por isso. Como chegamos a isso?
Novamente, uma resposta em duas partes. A primeira parte é sobre os padrões duplos. Nós, no Ocidente, acreditamos que o mundo todo deveria nos apoiar ao confrontar a Rússia porque o país viola o direito internacional. Outras partes do mundo acreditam que Israel deveria ser confrontado porque acreditam que Israel está violando o direito internacional, e alguns de nós, no Ocidente, têm um problema com isso. Então há um problema de padrões duplos, para o qual não tenho uma receita de como isso pode ser superado rapidamente, mas vamos admitir que esse problema existe. Leio muitos comentários de jornalistas sobre o desejo de um mundo multipolar. Se assumirmos que, no passado, tínhamos um mundo bipolar, com os Estados Unidos, o Ocidente, e a Rússia, agora, no futuro, teremos a China. Se você imaginar um chamado mundo multipolar, quem seriam os principais atores nesse mundo multipolar? Haveria, claro, China e Rússia, que não são nações democráticas, pelo menos não como as definimos. Haveria países como Turquia, que é um caso limite de democracia. Haveria outros que não têm credenciais democráticas verdadeiramente confiáveis. Não tenho tanta certeza de que, ao olhar para o tipo de mundo multipolar que poderia emergir, seria um mundo muito mais seguro ou melhor do que aquele em que vivemos.
Vê caminhos para começarmos a sair desta situação?
O que precisamos é de uma restauração de arranjos institucionais internacionais estáveis e confiáveis. O arranjo institucional mais importante é o Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova York, que, por muitas razões, não apenas perdeu credibilidade, mas se tornou bastante disfuncional nos últimos anos. Mesmo durante a Guerra Fria, era disfuncional. Isso não é novo, mas o Conselho de Segurança não tem sido capaz de resolver um único grande conflito internacional nos últimos anos. Temos um enorme problema de credibilidade e funcionalidade de nossas instituições internacionais. Acho que essa é uma área onde, na Europa, temos muita experiência na construção de instituições. Lembre-se da União Europeia e de outras instituições. Lembre-se de como, há 30 ou 35 anos, criamos a OSCE como uma organização de segurança para todo o espaço europeu. Espero que outros no mundo, incluindo os países da América Latina, possamos trabalhar juntos para tentar nos opor às forças que gostariam de ver a destruição de um sistema internacional baseado no Estado de Direito e em instituições fortes. As grandes decisões sobre o futuro da comunidade global não serão mais tomadas em Washington ou em Bruxelas. Outros países desempenham um papel cada vez mais importante, incluindo o Brasil, África do Sul, Indonésia e outros países associados ao termo Sul Global.
Que papel o Brasil poderia desempenhar nesses esforços, especialmente considerando que presidirá o Brics em 2025?
Não estou impressionado com a linguagem da cúpula do G20, que acabou de terminar, no que diz respeito aos conflitos. Por causa da questão dos padrões duplos, do desacordo sobre quais princípios devem ser aplicados, não foi possível alcançar uma linguagem mais forte, sobre a guerra na Ucrânia e no Oriente Médio. Espero que 2025 possa ser definido por futuros historiadores como o ano após a guerra. E, se isso for verdade, o Brasil tem uma enorme oportunidade. O Brasil poderia ser o defensor das coisas que precisam ser feitas uma vez que os combates na Ucrânia, e, esperamos, também na Faixa de Gaza e no Líbano, cheguem ao fim. Acho que isso é também o que Donald Trump deseja alcançar, e se ele conseguir mover as coisas nessa direção, o Brasil, nesse cenário dos Brics, poderia desempenhar um papel extremamente importante. Poderia ser um líder no período pós-guerra, não apenas pós-Segunda Guerra Mundial, mas pós-guerra na Ucrânia e na Faixa de Gaza.