Mundo

Governo Bolsonaro não trará ruptura à política externa, avalia Amado Cervo

A EXAME, Amado Luiz Cervo, um dos maiores especialistas em política externa do Brasil, falou sobre suas expectativas para o governo de Jair Bolsonaro

O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro: para Amado Cervo, política externa do próximo governo deve se aproximar do observado na gestão de Fernando Henrique Cardoso (Ricardo Moraes/Reuters)

O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro: para Amado Cervo, política externa do próximo governo deve se aproximar do observado na gestão de Fernando Henrique Cardoso (Ricardo Moraes/Reuters)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 28 de novembro de 2018 às 06h00.

Última atualização em 28 de novembro de 2018 às 06h00.

São Paulo – A política externa do presidente eleito, Jair Bolsonaro, não trará grandes novidades a não ser a sua ênfase liberal. Nesse sentido, a linha a ser adotada pelo novo governo deve coincidir com o que foi feito pela gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).

A avaliação é do historiador Amado Luiz Cervo, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e professor do Instituto Rio Branco, a escola diplomática do Brasil.

Considerado um dos maiores especialistas em política externa nacional, Cervo falou por escrito a EXAME sobre suas expectativas para o futuro das relações exteriores do país daqui em diante.

Segundo suas impressões, a tradição diplomática brasileira, seus valores e padrões de conduta não sofrerão rupturas. Mesmo com o diplomata Ernesto Araújo, cujos posicionamentos trouxeram incertezas sobre a direção que o Brasil adotará na esfera internacional, à frente da chancelaria.

Abaixo, confira na íntegra a entrevista com Amado Luiz Cervo.

EXAME - Quais as expectativas que o senhor tem para a política externa brasileira daqui em diante? 

Amado Cervo - Minhas expectativas coincidem em boa medida com o que fez Fernando Henrique Cardoso. Os dois presidentes têm uma visão de mundo e da inserção internacional do Brasil semelhantes: são liberais, nesse sentido, inovadores relativamente ao período anterior a seus mandatos, de governos mais nacionalistas e introspectivos. Isso significa, para a política exterior, um novo ciclo de abertura da economia a empreendimentos, capitais e tecnologias vindas de fora.

Nada de novo, a não ser a ênfase liberal. Pois o Brasil sempre implementou uma política exterior a serviço do desenvolvimento econômico. E sempre implementou uma concepção de desenvolvimento que podemos denominar de desenvolvimento inconcluso, capenga, a meio caminho. Tocado por insumos externos, os três apontados acima.

Poucos governos, como Vargas e Geisel, tentaram modificar essa estratégia incorreta, tentaram promover acumulação interna, sobretudo em pesquisa e inovação com aplicação na área produtiva. Sem domínio do conhecimento e de sua aplicação, a inovação tecnológica, um país ficará eternamente em desenvolvimento, a meio caminho, nunca alcançará as nações de desenvolvimento maduro. Terá um desenvolvimento inconcluso. Infelizmente essa é minha expectativa quando à funcionalidade da política exterior sob o governo eleito.

EXAME - Como o senhor avalia as declarações sobre política externa que vêm sendo dadas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, como a possível mudança da embaixada brasileira de Israel, hoje em Tel-Aviv, para Jerusalém? 

Amado Cervo - Bolsonaro não tem ideias precisas sobre o que pretende fazer em termos de política exterior. Ainda não sabe bem o que fazer no miúdo da ação. Dizer que pretende mudar a embaixada para Jerusalém é algo impensado e pouco conveniente. O volume de negócios que o Brasil tem com os países árabes é enorme e seria algo insensato sacrificar relações proveitosas aos interesses nacionais com estes países árabes por meio de uma decisão inesperada e inoportuna. Creio que vai reconsiderar.

EXAME - Como o senhor vê a nomeação de Ernesto Araújo para o posto de chanceler?

Amado Cervo - Uma decisão coerente com as convicções políticas e econômicas: são dois liberais que falam a mesma língua e não terão atritos de gestão.

EXAME - O que essa nomeação representa para a política externa brasileira? Podemos falar em ruptura? Quais os riscos que essa ruptura pode trazer? 

Amado Cervo - Não haverá ruptura na política exterior. O Itamaraty é uma das máquinas diplomáticas mais bem equipadas em termos humanos e profissionais entre todos os países do mundo. A política exterior brasileira apresenta há séculos três traços que compõem a estratégia de longo prazo: universalismo, cooperação e pacifismo.

Mantém relações com qualquer país do mundo sem importar-se com o regime político ou a ideologia política do outro. É o universalismo. O que importa para a ação externa é o resultado esperado a favor do desenvolvimento interno. Isso é cooperação. A cultura brasileira é marcada pela tolerância e pela convivência de diferenças internas e esse traço da índole nacional é repassado para a ação externa. Isso é pacifismo.

Uma política exterior universalista, cooperativa e “não confrontacionista”. O Itamaraty é guardião desses valores e desses padrões de conduta desde o século XIX. A continuidade sobrepõe-se, historicamente, à ruptura.

EXAME - Ao anunciar a nomeação de Araújo, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, falou em “regeneração do Brasil” e que a política externa será parte disso. Na sua avaliação, a política externa e a diplomacia brasileira precisam ser regeneradas? 

Amado Cervo - É uma questão de ênfase. Não se trata de regenerar, nada há na estratégia externa para regenerar, apenas imprimir nova feição quanto à gestão das relações exteriores no miúdo.

O Brasil sempre teve parceiros fundamentais e com eles implementa relações históricas estreitas, contínuas e proveitosas. Parceiros como Estados Unidos, Argentina, Alemanha, Itália, Portugal, Japão, Coreia, recentemente China devido a seu dinamismo econômico, e outros.

Nada disso vai mudar, apenas a gestão da política exterior requer inovação ante as circunstâncias e as estruturas cambiantes do mundo. Pragmatismo e eficiência: o Itamaraty sabe disso e sabe como conduzir-se, movido pelos interesses nacionais.

A regeneração diz respeito a desvios de conduta diante da funcionalidade esperada da estratégia externa, conforme avaliação da equipe de Bolsonaro. Por exemplo, privilegiar parceiros ideológicos de esquerda, conforme a ideologia de esquerda do governo do PT: Venezuela, Bolívia, Cuba etc. Isso significa regenerar? Bolsonaro talvez entenda dessa maneira.

Dois desafios talvez sejam considerados na ideia de regeneração: libertar o sistema político da corrupção e da ineficiência da gestão. Se estes males forem erradicados, teremos sim uma regeneração. Não me parece que a ação externa do país deva ser regenerada em outra coisa. A ação externa foi por certo corrompida, citando agora outro exemplo, por algumas empresas transnacionais brasileiras, que integraram à sua conduta no exterior a prática da propina, exigida pelo sistema político interno apodrecido. Se for isso regenerar, devemos aplaudir.

Acompanhe tudo sobre:DiplomaciaErnesto AraújoGoverno BolsonaroItamaratyJair Bolsonaro

Mais de Mundo

Manifestação reúne milhares em Valencia contra gestão de inundações

Biden receberá Trump na Casa Branca para iniciar transição histórica

Incêndio devastador ameaça mais de 11 mil construções na Califórnia

Justiça dos EUA acusa Irã de conspirar assassinato de Trump; Teerã rebate: 'totalmente infundado'